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Depoimento

Como salvar e preservar a escrita em tempos de IA?

Escritores, editores, poetas e professores contam a Gama o que pensam sobre o fazer literário na era dos robôs que geram textos em segundos

Ana Elisa Faria 06 de Julho de 2025

Como salvar e preservar a escrita em tempos de IA?

Ana Elisa Faria 06 de Julho de 2025

Escritores, editores, poetas e professores contam a Gama o que pensam sobre o fazer literário na era dos robôs que geram textos em segundos

Na era da inteligência artificial generativa, textos surgem na nossa frente em segundos, após um “enter”. É, ao mesmo tempo, fascinante, assustador e faz pensar: o fazer literário — com desvios, tropeços, nuances, obsessões e revisões intermináveis — ainda é uma atividade intrinsecamente humana? O que cabe aos escribas de carne e osso em tempos como estes?

Escritores, editores, poetas e professores têm debatido sobre como preservar a escrita, esse ofício milenar e artesanal, em meio à ascensão das tecnologias que prometem eficiência e uma dita “perfeição”.

Gama reuniu vozes que defendem a importância do processo criativo e da autenticidade na produção textual. Para Sérgio Rodrigues, que acaba de lançar um livro sobre o tema, só continuará escrevendo quem atribuir valor ao próprio ato de escrever. Lilia Guerra duvida que a IA seja capaz de dar voltas que trazem charme ao texto, por ser tão objetiva. Já Monique Malcher compara a criação literária a uma cumbuca de barro: o que vale é moldar com as próprias mãos, sem atalhos.

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Se ChatGPT, Deepseek e afins podem ajudar em etapas técnicas, como organizar dados, esses bots não alcançam o que há de mais humano na literatura: a capacidade de errar com graça, de experimentar a linguagem, de emocionar sem propósito, de recorrer a memórias do que foi vivido. É esse “delírio controlado”, como define Ana Guadalupe, que mantém a escrita viva — e incômoda, como sugere Ingrid Fagundez.

Para a preservação da literatura, portanto, talvez o foco não seja tentar protegê-la dos robôs, que já estão no nosso dia a dia, mas insistir no que eles ainda não sabem fazer: olhar para o mundo com espanto, sensibilidade e curiosidade, brincar com as palavras, mergulhar no caos e transformá-lo em arte.


“Só vai escrever quem quiser bastante, quem atribuir ao próprio ato da escrita um valor”
Sérgio Rodrigues, escritor e jornalista

 Foto: Alexandre Sant’Anna

“A escrita é o trabalho braçal da mente; um serviço, como instalar encanamento.” A frase é de John Gregory Dunne, jornalista e escritor americano, mais conhecido como marido de Joan Didion. Ele tem razão: escrever é trampo, um serviço mental. Como, por exemplo, fazer contas ou decorar dezenas de números de telefone – habilidades que nossos antepassados próximos, seres humanos pré-calculadora eletrônica e pré-celular, tinham. Habilidades que fomos perdendo e que hoje, de modo geral, estão perdidas, delegadas por nossa espécie preguiçosa. Quem vai querer instalar encanamento se pode, com a IA generativa, gerar um edifício pronto num segundo? Só vai escrever quem quiser bastante, quem atribuir ao próprio ato da escrita um valor — pouca gente. Não creio haver muito que se possa fazer para evitar isso.” Sérgio Rodrigues é autor de livros como “Escrever É Humano: como dar vida à sua escrita em tempos de robôs” (Companhia das Letras, 2025) e “A Vida Futura” (Companhia das Letras, 2022).


Dou uma volta danada sem precisão, só por capricho mesmo. Duvido que a IA se preste a um papel desse”
Lilia Guerra
, escritora, auxiliar de enfermagem e pesquisadora

 Foto: Renato Parada

“Ah… vai ser muito difícil concorrer com a inteligência artificial. Ela é concentrada, objetiva. Não se distrai com qualquer borboletinha amarela. Eu, por exemplo, tenho uma coisa com ruas sem saída, sabe? Uma ternura, não sei. De vez em quando, cismo que a história que estou construindo tem que ter uma rua sem saída e largo tudo pra trabalhar nisso. Fica a mocinha apaixonada de lado por uns tempos, esperando o prometido e eu dedicada a aplicar a tal ruela no meio do conflito. Dou uma volta danada sem precisão, só por capricho mesmo. Duvido que a IA se preste a um papel desse. Duvido.” Lilia Guerra é autora de livros como “Perifobia” (Todavia, 2025) e “O Céu para os Bastardos” (Todavia, 2023).


“Preservar a autenticidade que torna cada obra única é uma forma de preservar a escrita”
Tiago Rogero, jornalista

 Foto: Lipe Borges

“A inteligência artificial, se usada com cuidado e de forma ética, pode ser útil ao processo de escrita, como, por exemplo, na organização da pesquisa. Mas não deve substituir o ato da escrita em si — a organização das ideias e da estrutura narrativa; a escolha de personagens e de cada palavra; a cadência das frases; as intermináveis revisões e a reflexão ao fim: ‘Será que isto soa natural?’, para reescrever, se não. Uma das belezas da escrita recai justamente na imprevisibilidade desses processos, movidos por aspectos tão íntimos — e, por vezes, aleatórios ou até incoerentes — que, ao menos por ora, a IA não consegue replicar. Preservar a autenticidade que torna cada obra única é uma forma de preservar a escrita em tempos de IA.” Tiago Rogero é autor de “projeto Querino: um olhar afrocentrado sobre a história do Brasil” (Fósforo, 2024).


“O fenômeno das ‘alucinações’ das IAs me fascina um pouco, porque é a máquina sendo ridícula”
Ana Guadalupe, poeta e tradutora

 Foto: Fernanda Valois

“Acho que um caminho é escrever o que é mais errático. O fenômeno das ‘alucinações’ das IAs me fascina um pouco, porque é a máquina sendo ridícula, e sei que a ideia é que a tecnologia evolua pra alucinar menos, mas o ser humano sabe fazer isso muito bem na literatura. Esse delírio controlado. Claro que uma IA pode simular confusão e estranhamento e imitar um estilo excêntrico com o prompt correto, mas a gente sabe cobrir a linguagem com as nossas obsessões.” Ana Guadalupe é autora de livros como “Preocupações” (Edições Macondo, 2019) e “Relógio de Pulso” (7Letras, 2011).


“O maior diferencial e poder que temos é escrever com a sensibilidade que máquina nenhuma é capaz de reproduzir”
Mariana Felix, escritora e militante social

 Foto: Divulgação

“Em tempos de inteligência artificial, o maior diferencial e poder que temos como escritores é, cada vez mais, escrever sobre temas profundos, trazendo a sensibilidade do olhar que máquina nenhuma é capaz de reproduzir. Temas mais amplos, até globais, são passíveis de reprodução, mas a forma como eles são tratados pela IA e por nós humanos são completamente diferentes quando colocamos empatia, sentimentos humanos reais e a possibilidade de ‘brincar’ com a estrutura gramatical de uma forma autêntica e única. Talvez esses diferenciais sejam nossa única chance.” Mariana Felix é autora de livros como “Minha Liberdade Não te Serve” (WMF Martins Fontes, 2023) e “Sexo, Drogas, Feminismo e Outros Amores” (Autonomia Literária, 2020).


“Não me faz brilhar os olhos a pressa de terminar um livro ou ter opiniões da IA”
Monique Malcher, escritora, artista plástica e jornalista

 Foto: Renato Parada

“Preservo a escrita como quem preserva uma cumbuca de barro, gosto do processo da pesquisa em livros, de fazer trabalho de campo, entrevistar pessoas. Não me faz brilhar os olhos a pressa de terminar um livro ou ter opiniões da IA. Quero que outros profissionais e amigos leiam e palpitem, isso fortalece nosso trabalho em comunidade. É no encontro com o outro que se nasce uma história, um caminho, uma arte. Escrever sem atalhos me parece uma metáfora de vida, o processo é o que me mantém viva, abrir mão dele é abrir mão de todos os sentimentos que essa profissão me dá. O erro, a falha, a busca, o cansaço, o encantamento… quero tudo. E da minha cumbuca de barro, cuido eu.” Monique Malcher é autora de livros como “Degola” (Companhia das Letras, 2025) e “Flor de Gume” (Moinhos, 2025).


“No século 20, o artista dominava a máquina, hoje a máquina domina o artista”
Sérgio Vaz, poeta

 Foto: Jairo Goldflus

“Nós, poetas, somos praticamente dinossauros, ainda praticamos essa arte milenar de forma artesanal. Acho que o século 20 foi da arte e o século 21 é do artista. Mas, no século 20, o artista dominava a máquina, hoje a máquina domina o artista. Eu tento me manter como leitor assíduo, estou aprendendo a jogar xadrez e faço palavras cruzadas, que é para salvar a minha mente. Nunca testei uma ferramenta de inteligência artificial — não tenho nem inteligência natural [risos]. Por enquanto, não tenho curiosidade, mas sei que, mais tarde, terei de me encontrar com isso porque a tecnologia é implacável e ela segue independente de mim. Continuo curtindo um pouco essa coisa do antigo. Eu sou do Velho Testamento.Sérgio Vaz é autor de livros como “Flores da Batalha” (Global Editora, 2023) e “Literatura, Pão e Poesia” (Global Editora, 2021).


“Quem sabe a solução seja continuarmos livres — e incômodos”
Ingrid Fagundez, professora de escrita criativa, jornalista e escritora

 Foto: Luiza Sigulem

“Não sei se ‘preservar’ e ‘salvar’ a escrita são a mesma coisa. ‘Salvar’ a escrita, num contexto de inteligência artificial, talvez seja justamente não a preservar e sim estimular sua transformação constante pela sensibilidade humana: o jogo, a experimentação com a linguagem, afinal, são dessas brincadeiras que vive a literatura. A IA cria sobre o que já existe, é treinada por nós e, claro, aprende exponencialmente, mas, pelo menos até agora, ela deseja nos servir, suprir as nossas necessidades. A literatura, no entanto, não precisa agradar ninguém. Pelo contrário, ela é até mais interessante quando sacode nossas certezas, nos cutuca, nos faz ‘derrapar em nós mesmos’, como disse Macedonio Fernández, escritor que adoro. Quem sabe a solução seja continuarmos livres — e incômodos.” Ingrid Fagundez é autora de “Diário do Fim do Amor” (Fósforo, 2025).


“A IA não chegou no nível de substituir o escritor, no sentido do manejo da língua”
Vanessa Ferrari, editora

 Foto: Divulgação

“As tentativas que fiz de uso da inteligência artificial para a literatura foram desastrosas. Eu pedi para ela criar, a partir de uma ideia, um texto de prosa poética. A resposta foi a prosa poética mais cafona que já li. Também pedi para ela fazer um texto literário a partir de um trecho ‘X’. E veio o clichê do que é literário: palavroso, soberbo, usando palavras antigas. Tudo o que veio é o que o senso comum entende como literário, e não necessariamente literário, o que acho bom, na verdade, porque os escritores não vão perder o ofício. A IA não chegou no nível de substituir o escritor, no sentido do manejo da língua. Um bom escritor tem um grau de sofisticação, tem um ir e vir de refazer frases, reescrever tudo. Quanto melhor o escritor, mais inteligente ele é no manejo das nuances, da sensibilidade.” Vanessa Ferrari é autora do livro “O Lugar das Palavras” (Moinhos, 2023).

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