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Isabela Durão

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Reportagem

Não caia no projeto verão

Exercícios intensos e dietas restritivas com o objetivo do corpo “perfeito” em poucos meses para a temporada de calor, praia e piscina podem causar problemas graves, como lesões musculares e transtornos alimentares

Ana Elisa Faria 07 de Janeiro de 2024

Não caia no projeto verão

Ana Elisa Faria 07 de Janeiro de 2024
Isabela Durão

Exercícios intensos e dietas restritivas com o objetivo do corpo “perfeito” em poucos meses para a temporada de calor, praia e piscina podem causar problemas graves, como lesões musculares e transtornos alimentares

É assim todos os anos: logo que o verão dá as caras no horizonte, academias lotam, influenciadores digitais fitness bombam nas redes sociais com ofertas de programas ou produtos milagrosos de emagrecimento imediato e hipertrofia na velocidade da luz e aparece aquele parente que sempre tem uma dieta da moda infalível para indicar. Tudo com o objetivo do corpo “perfeito”, “ideal”, da barriga negativa e do #bumbumnanuca para exibir nas praias e piscinas durante o calorão que toma o país de meados de dezembro até a metade de março.

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No entanto, o famoso projeto verão, esse combo de ações realizadas em poucos meses que inclui cirurgia plástica, prática de exercícios intensos e regime alimentar restritivo, não passa de um mito, segundo profissionais da área, da nutrição à educação física.

De acordo com especialistas, ninguém consegue transformar o corpo de uma estação à outra sem prejuízos à saúde — física e mental. Além disso, o conceito oprime, sobretudo, as mulheres, que dia a dia são socialmente pressionadas a atingir padrões estéticos irreais. “A gente sabe que o valor da mulher na sociedade é o valor da imagem, da beleza, da juventude, do corpo”, diz a maquiadora e colunista da Gama Vanessa Rozan no Podcast da Semana sobre autoimagem.

Exemplos dessa pressão temos aos montes. Paolla Oliveira é alvo constante de críticas relacionadas ao seu corpo. Recentemente, um vídeo da atriz dançando em um ensaio da escola de samba Grande Rio viralizou nas redes, gerando uma onda de ataques de ódio. Os comentários contra a artista de 41 anos foram feitos majoritariamente por homens e tinham teor machista, misógino, gordofóbico e etarista.

Por todas essas questões, o ciclo anual imediatista rumo à forma física magra e sarada adoece cada vez mais as pessoas. Lesões musculares, traumas, fadiga, tontura, fraqueza, insônia, ansiedade, depressão e transtornos alimentares, como bulimia, anorexia, compulsão e ortorexia, são alguns dos impactos negativos que o chamado projeto verão pode causar.

Os riscos do #projetoverão

Ligiê Helena Moreira Brito, nutróloga e integrante da comissão científica da Abran (Associação Brasileira de Nutrologia), destaca os principais riscos associados às dietas restritivas feitas às pressas para o verão.

Ela fala que os regimes alimentares que diminuem não apenas a quantidade dos alimentos ingeridos (ou seja, que baixam as calorias consumidas) como também os que alteram a qualidade do que se come são “perigosos à saúde humana”, principalmente nos períodos de intenso calor, em que temos uma necessidade maior de consumir água.

O chamado projeto verão é uma cilada para o cérebro humano, que se engana com propagandas, acreditando de maneira quase pueril que haverá ganhos à saúde e à estética

“Frutas ricas em água, legumes, arroz, feijão, batatas, entre outros alimentos, são muito importantes para a nossa saúde. O chamado projeto verão é uma cilada para o cérebro humano, que se engana com propagandas, acreditando de maneira quase pueril que haverá ganhos à saúde e à estética. Costumo dizer que o verdadeiro projeto é o projeto de vida, em que todos os dias se honra o corpo e o nosso organismo com alimentação adequada, hidratação e exercícios físicos”, alerta.

A médica enfatiza também que seguir um plano alimentar cheio de restrições e atividades físicas pesadas focando o emagrecimento veloz para a temporada de festas, férias e biquínis é uma “péssima combinação”. Porque, segundo a especialista, além do corpo ficar sob estresse pelo baixo nível de “combustível”, ele é submetido a exercícios extenuantes. E essa sobrecarga corporal, associada à baixa ingestão de nutrientes, pode comprometer o sistema imunológico, aumentando a vulnerabilidade a doenças e infecções.

As chances de a pessoa adoecer são grandes, pois essa é a junção perfeita para a redução da imunidade e o crescimento do risco de contrair doenças e vírus que ainda estão entre nós, como o da herpes, as gripes, viroses intestinais, além da Covid-19”, lista.

Mas, para Ligiê, essas práticas exageradas são temerárias especialmente pela alta probabilidade de desenvolvimento de algum transtorno alimentar. “Temos no nosso DNA o gene para a bulimia e a anorexia. Há uma estimativa de que 30% da população brasileira tenha esses genes, que permanecem ‘adormecidos’ enquanto buscamos uma vida mais equilibrada. Porém, os comportamentos restritivos se tornam gatilhos metabólicos para a ‘abertura’ desses genes que fazem com que essas e outras doenças possam se manifestar.”

Projetos da moda não se sustentam

A nutricionista Fernanda Imamura, especialista em transtornos alimentares, complementa a discussão salientando que dietas extremas para o emagrecimento rápido não são sustentáveis e podem afetar a relação das pessoas com a comida. Ela reforça que, embora essas abordagens possam levar à perda de peso temporária, a tendência é que, posteriormente, o indivíduo recupere o que foi perdido.

“Dietas malucas para perder peso rapidamente, retirando do cardápio certos grupos alimentares e reduzindo quantidades, são insustentáveis. Pode haver perda de peso, mas depois, normalmente, o peso volta. E, além disso, essas mudanças radicais são capazes de comprometer a relação com a comida, fazendo com que a pessoa sinta muita culpa ao comer, gerando, às vezes, consequências físicas, como sentir fome e fraqueza por falta de nutrientes”, comenta.

Fernanda realça a importância de adotar práticas mais equilibradas, centradas na saúde como um todo, ao invés de apostar em táticas drásticas que podem comprometer tanto o bem-estar físico quanto o mental.

“Ninguém tem que fazer esse tipo de coisa para chegar ao verão com o corpo X ou Y. A pessoa tem que se alimentar bem e praticar exercícios para ter, de fato, saúde, com corpo e mente saudáveis. Ao invés de projeto verão, é preciso de um projeto para o ano todo, realizado com mudanças mais graduais. Não dá para a gente colocar, sei lá, um mês para que a pessoa mude toda a vida. Os comportamentos vão mudando devagar, gradualmente, para que a mudança seja realmente sustentável.”

Ninguém tem que fazer esse tipo de coisa para chegar ao verão com o corpo X ou Y. A pessoa tem que se alimentar bem e praticar exercícios para ter corpo e mente saudáveis

A voz da experiência

Jornalista e criadora de conteúdo, Mirian Bottan, 37, compartilha nas redes sociais reflexões sobre transtornos alimentares, vícios e saúde mental a partir das próprias experiências. Infelizmente, ela é expert nos temas, com os quais está familiarizada desde muito nova, já tendo passado por inúmeros “projetos verão”, concursos de beleza, ansiedade, vício em drogas e bebidas alcoólicas, além de ter superado a anorexia, a bulimia, a ortorexia e a compulsão alimentar.

Para chegar à fase da superação, Mirian resume a sua trajetória. Ela conta que dos cinco aos 12 anos participou de concursos de beleza e fez cursos de modelo e manequim, espaços que incentivam a competição e a comparação entre garotas e o culto excessivo à magreza. “Eram ambientes complicados para uma criança que está formando a própria identidade, mas, na época, pareciam experiências inofensivas. Só que ali eu já tinha desenvolvido um transtorno de ansiedade sem saber”, revela.

Na pré-adolescência, com a autoestima minada por reprovações nesses concursos, a jornalista diz que começou a fazer dieta escondida da família. Ficava horas e horas sem comer e, de repente, comia tudo compulsivamente. O vício em bebidas alcoólicas e nas drogas veio na sequência, como uma fuga, uma forma de se sentir segura. Depois, “descobriu” a existência da bulimia e, então, comia, vomitava e corria na esteira, além de usar diuréticos e laxantes. Foi aí que, aos 15, Mirian chegou a pesar 38 quilos.

Até os 28, ela lidou com a bulimia, a anorexia, a compulsão alimentar e a ortorexia, e atravessou fases corporais diversas, como em 2016, quando ficou viciada em atividades físicas e comidas saudáveis. Nesse tempo, Mirian atingiu o seu corpo “ideal”, o “mais definido” que já teve, com 14% de gordura.

Será que estamos nos inspirando no transtorno alimentar de alguém?

Assim, compartilhava no Instagram a rotina de exercícios, “os pratos coloridos” e “os sucos nutritivos”. Recebia elogios, inspirava quem estava do outro lado da tela, porém, às custas de muito sofrimento e vários transtornos. Sobre esse período — e os perfis fitness em geral, muitos que, inclusive, vendem programas de “projetos verão” —, ela questiona: “Será que estamos nos inspirando no transtorno alimentar de alguém?”.

“Naquele ano em que eu estava super fitness, as pessoas comentavam, me elogiavam e falavam que queriam ter o meu foco, mas por trás, eu vomitava, tinha ataques de raiva ao sair um pouco da dieta. Quando eu já estava melhor, fazendo tratamentos e havia mudado o meu tipo de conteúdo, passando a focar na nutrição comportamental, por exemplo, algumas amigas vieram agradecer por eu ter mudado o que postava porque aquele conteúdo ‘perfeito’ fazia mal a elas. Elas se sentiam um lixo”, relata.

#ProjetoVidão

Para inspirar positivamente os amigos e seguidores — e ela mesma —, em 2017 Mirian Bottan criou a hashtag ProjetoVidão, que vai contra o que prega o famigerado #projetoverão. Desde então, a criadora de conteúdo posta sobre autoestima, autoamor, autoimagem, autocuidado, padrões irreais de beleza e bem-estar.

Criei o #ProjetoVidão porque olhei para a minha vida e, por anos, a cada verão, as minhas preocupações eram: ‘Como eu vou estar na praia?’ e ‘Será que vou poder colocar um biquíni?’. Enfim, eram essas questões todos os anos, desde a pré-adolescência. Foi um insight: ‘Não quero viver minha vida assim, quero ser feliz um pouco, quero relaxar’. E aí criei essa hashtag, na verdade, para ir compartilhando coisas do meu processo psicoterapêutico, as reflexões que eu estava começando a ter sobre o assunto, sobre o porquê eu queria ser magra a todo custo e acima de tudo.”