A atividade física e a saúde mental — Gama Revista
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Saúde

Corpo são, mente sã

Especialistas explicam a Gama como e por que a prática de esportes pode ajudar no tratamento de transtornos de saúde mental

Cristina Nabuco e Mariana Payno 24 de Janeiro de 2021

Corpo são, mente sã

Cristina Nabuco e Mariana Payno 24 de Janeiro de 2021
Thiago Quadros

Especialistas explicam a Gama como e por que a prática de esportes pode ajudar no tratamento de transtornos de saúde mental

Retirada de uma sátira do poeta romano Juvenal, a célebre máxima reconhece o valor da atividade física para a paz de espírito desde a Antiguidade – “Mens sana in corpore sano”. Parte de uma espécie de lista de desejos para a vida, a frase aparece no verso “Deve-se orar para que a mente seja sã em um corpo são”. Bem, dois mil anos depois não é preciso apelar aos deuses: estudos e especialistas atestam que praticar esportes melhora a saúde mental. Mesmo para quem nunca foi diagnosticado com algum tipo de transtorno, colocar o corpo em movimento pode trazer benefícios contra a baixa autoestima e a tristeza.

O psiquiatra Arthur Guerra que o diga. Supervisor do Grea (Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas) do Hospital das Clínicas, em São Paulo, ele descobriu as vantagens da atividade física na vida pessoal antes de associá-las ao trabalho com seus pacientes. “Há uns 18 anos, meu filho chamou minha atenção, dizendo que eu estava sedentário. Respondi que eu trabalhava muito e não tinha tempo. Ele me indicou um nutricionista, procurei depois um personal trainer e, com a orientação dele, comecei a correr. De repente eu me encontrei”, conta.

Hoje maratonista e triatleta, Guerra levou os exercícios para o tratamento de dependentes químicos e deprimidos e, embora tenha enfrentado a resistência de alguns no começo – não raro, ele ouvia frases do tipo “Esporte? Nem pensar, nunca fiz, não faço e nunca vou fazer” –, observou bons resultados. “Os que aderiam tinham recuperação mais rápida e mais eficiente, inclusive necessitando de menos remédios. O esporte é um estímulo para a recuperação não só da saúde física, mas também da saúde mental”, diz o médico.

O esporte é um estímulo para a recuperação não só da saúde física, mas também da saúde mental

E ele não é o único que tem apostado nesse tipo de abordagem. “Não dá pra pensar em tratamento de saúde mental sem considerar várias frentes: psicoterapia, medicação, se necessário, e atividade física”, defende Lívia Basseres, mestre pelo IPQ-FMUSP (Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).

Ela participa de uma pesquisa, ainda em fase inicial, que pretende avaliar a diminuição de recaídas em usuários do álcool por meio da atividade física e tem trabalhado em parceria com o educador físico Eduardo Rocha na elaboração de treinos específicos para cada tipo de transtorno psiquiátrico. Existem indícios, por exemplo, de que a musculação ajuda a combater a depressão e exercícios aeróbicos, como corrida e bicicleta, são bons para quem sofre de ansiedade ou dependência química.

Gama conversou com Guerra, Basseres e outros especialistas para entender como e por que o esporte pode melhorar nossa saúde mental. As explicações incluem da produção de hormônios àquele empurrãozinho que faltava para ser mais disciplinado. Spoiler: ao final do texto, dá vontade de sair correndo em direção ao prometido (e comprovado) bem-estar.

O esporte produz endorfinas

Mais do que escultora do corpo, a atividade física “é praticamente uma musculação cerebral”, diz Lívia Basseres. “Libera vários mensageiros químicos – endorfinas, serotonina, noradrenalina. Promove mais sinapses (ligações entre os neurônios) e aumenta a vascularização cerebral, beneficiando o hipocampo, estrutura relacionada à memória”, explica. Por possuir todo esse poder químico sobre o corpo, o esporte melhora a frequência cardíaca, o sono e a qualidade de vida de uma forma geral.

Os hormônios produzidos durante os exercícios conferem sensação de bem-estar, como se fossem uma droga – não à toa, os remédios mais usados para tratar transtornos mentais, como fluoxetina e paroxetina, são inibidores da recaptação de serotonina, ou seja, aumentam a disponibilidade desse hormônio no organismo. “Você está cansado, e a tendência é pensar: nunca mais na minha vida. Mas esse pensamento não dura mais de 15 minutos, logo em seguida você está exaurido e feliz. A adrenalina produzida provoca uma sensação viciante”, diz Arthur Guerra.

Os hormônios produzidos durante os exercícios conferem sensação de bem-estar, como se fossem uma droga

A social media Gabriela Marques, 24, experimentou esse sentimento pela primeira vez aos 18 anos. Diagnosticada com transtorno bipolar desde os 14, ela estava em uma recaída quando a irmã a convidou a participar de uma corrida de cinco quilômetros. “Eu nunca fui do tipo esportista. Falava que estava com cólica para fugir da Educação Física na escola. Mas resolvi participar. Durante a corrida, me lembro de ter parado e olhado o sol. Fazia anos que eu não sentia aquela vontade de viver. Passei uma semana dolorida, mas queria aquela sensação de novo”, conta.

Para o psiquiatra e nutrólogo Frederico Porto, os treinos podem ser bons aliados no tratamento da depressão – como aconteceu com Gabriela. Isso porque, além dos hormônios do bem-estar, se colocar em movimento aumenta em 30% os fatores de crescimento nervoso, responsáveis por prevenir a morte de células nervosas, que tendem a ser mais baixos em quem tem depressão. “Em casos leves e moderados, a atividade física tem efeito comparável ao remédio e provavelmente mais durável”, diz o médico.

O esporte aumenta a autoestima

De novo, não é só pela consequente perda de peso e eventual adequação a um tipo de corpo considerado padrão que os exercícios dão um up na autoestima. Segundo os especialistas, um dos efeitos mais evidentes do hábito é a melhora do humor. “O foco sai da doença, criando um fato novo que interfere na autoimagem e na autoestima”, explica Páblius Staduto, especialista em medicina do esporte pela Sociedade Brasileira do Exercício e do Esporte. “A pessoa relata que se sente mais disposta.”

Um dos efeitos mais evidentes do hábito é a melhora do humor

É o caso de Sara Vigiano, 29, que sofre de transtorno afetivo bipolar. A empreendedora começou a correr pouco depois que sua filha nasceu, quando ela tinha 21 anos. “Foi amor à primeira passada. Era um momento só meu, 50 minutos, duas vezes por semana”, relata. Para ela, a trail run (ou corrida de montanha) é uma forma de encontrar o melhor de si. “Estou na corrida não em busca de performance, mas da minha melhor versão. Estar na natureza me reconecta com a minha essência.”

Além disso, mesmo que não esteja em uma modalidade coletiva, como vôlei ou futebol, o praticante pode criar vínculos de amizade no grupo de treinamento – um combate à solidão. “Gosto da energia da largada, da interação com as outras pessoas, daquele barato no final do treino. É a minha dose de euforia”, conta Sara. Na pandemia, ela tem corrido sozinha na rua, mas não deixou de participar de aulas online e lives com outros esportistas, se arriscando até em novas modalidades, como a yoga. “Foi o que me salvou.”

O esporte dá mais disciplina

Treinar diariamente, se alimentar bem e diminuir a ingestão de álcool estão entre as mudanças na vida de quem passa a praticar esportes regularmente – o que ajuda a administrar os transtornos de saúde mental. “O esporte ensina a criar estratégias de resistência, a fazer planejamento”, avalia Basseres. De acordo com ela, isso pode ser especialmente importante para os dependentes químicos, que tendem a ser mais impulsivos e a buscar prazeres instantâneos. “Os que mantêm a rotina de exercícios físicos a longo prazo têm um ganho maior, ficam mais tempo abstinentes.”

O esporte ensina a criar estratégias de resistência, a fazer planejamento

Foi exatamente o que aconteceu com Murilo de Campos, 50. Durante anos ele foi dependente de álcool, cigarro e remédios para dormir. Em 1999, quando conheceu os Alcoólicos Anônimos, percebeu que não bastava apenas se manter sóbrio, seria preciso reformular a própria vida e tirar os maus hábitos. Começou uma mudança radical: transformou sua alimentação e passou a praticar exercícios – primeiro caminhada, depois foi migrando para a corrida. Hoje, sóbrio há 21 anos, faz academia diariamente e corre no mínimo 15 quilômetros quatro vezes por semana. Nos outros dias, anda 50 quilômetros de bicicleta. “O treino dá uma adrenalina gostosa, você se sente bem e a autoestima vai lá em cima”, diz.

Páblius Staduto explica que estabelecer uma rotina diferente é um benefício que vale para qualquer pessoa que sofra de algum distúrbio de saúde mental. “A pessoa passa a se preocupar com o tempo de caminhada, com as competições de que vai participar, num ciclo virtuoso.”

O esporte ensina a lidar com as frustrações

Afinal, não são só vitórias. Você pode não conseguir correr cinco quilômetros logo de cara ou cair da bicicleta e se machucar; em uma prova, às vezes começa bem e depois tem uma queda de energia que prejudica o rendimento. Segundo os médicos, enfrentar os desafios e os resultados negativos faz bem para a mente. O importante é insistir, diz Staduto, “ainda que você fique cansado durante o treino e com medo de não conseguir”.

Até porque é preciso ter resiliência: os efeitos não surgem da noite para o dia, como sabe Gabriela Marques. Na pandemia, depois de uns meses parada, ela tem retomado os exercícios aos poucos. “Sem me cobrar, respeitando o meu corpo. É preciso entender o que está acontecendo na sua cabeça. Não dá para ficar buscando só a performance. Há alguns meses consegui voltar para a minha estabilidade”, conta.

É preciso ter resiliência: os efeitos dos treinos não surgem da noite para o dia

Staduto afirma que o bem-estar aparece à medida que a atividade física se torna uma repetição. “O corpo passa a jogar na sua rotina a sensação de bem-estar.” Como hábito recorrente, o exercício vai ficando cada vez mais fácil e é comum aparecer até uma espécie de necessidade. “O treino regular cria um ambiente fisiológico diferenciado, depois é difícil tirar. Para a pessoa que pratica, a sensação de ficar sem fazer é muito pior do que em quem nunca fez nada.”

Como começar (ou recomeçar)

Com os impactos físicos, emocionais e sociais trazidos pela pandemia que parece não ter um fim tão próximo, retomar ou começar do zero a prática de esportes é uma forma de combater a exaustão do corpo e da cabeça. Já nos primeiros meses da quarentena, um estudo da Escola de Educação Física e Esporte da USP de Ribeirão Preto mostrava que manter uma rotina de exercícios ajuda a fortalecer tanto a saúde mental quanto o sistema imunológico. Os especialistas ouvidos por Gama compartilham suas dicas para fazer da atividade física uma aliada:

  • Escolha algo de que você goste

    “Pode ser academia, dança. Toda atividade é válida. O que importa é a regularidade: no mínimo três vezes por semana por 40 minutos”, explica Lívia Basseres. É essencial que você sinta prazer com o exercício para ter ânimo de continuar e transformá-lo em um hábito.

  • Comece aos poucos e tenha paciência

    O ideal é ter um bom educador físico para traçar metas e fazer um acompanhamento. “Ainda que esteja ansioso para correr uma maratona, é preciso dar um passo por vez”, diz Basseres. Afinal, ninguém nasce com corpo de atleta e forçar a barra pode provocar lesões. Na impossibilidade de receber orientação profissional, o sedentário deve começar levinho, com caminhadas ao ar livre ou bicicleta ergométrica sem carga. “No início a pessoa não deve ficar cansativa demais, sentindo respirar mais forte. Nada de correr por conta própria se estiver obeso, com pressão alta”, recomenda Páblius Staduto.

  • Mantenha a rotina

    Para sentir os efeitos de bem-estar, o tempo mínimo de atividade tem que ser de 30 minutos, de preferência cinco vezes na semana; se for um exercício mais intenso, de três a quatro vezes na semana. É preciso ter em conta que os benefícios não aparecem logo de cara e são mais sentidos quando já estamos um pouco em forma – por exemplo, sendo capazes de correr por pelo menos 20 minutos. Por isso, não desista. “Ninguém começa correndo 20 minutos, não tem músculo, não tem joelho, nem tem pulmão para isso. O ganho é cumulativo”, diz Frederico Porto.

  • Tome cuidado ao recomeçar 

    Se você já era praticante ou mesmo um atleta de alta performance que ainda não conseguiu retomar os treinos no ritmo de antes, é importante se orientar com um médico do esporte para avaliar sua condição física e reorganizar o treinamento. “O praticante preserva a memória esportiva e muscular da atividade e o cérebro lembra de como fazer o treino, mas é preciso cuidado porque o corpo pode estar meio enferrujado”, explica Staduto.