A monogamia pode ser diferente?
Com regras mais flexíveis, relações chamadas de neomonogâmicas vêm se tornando mais comuns e refletem um processo de mudança de mentalidade
“Quer namorar comigo?”, ele pergunta. “Sim!”, responde a moça — ou poderia ser um rapaz. “E você topa um relacionamento monogâmico, mas com algumas exceções?”, questiona o proponente. “Claro. É importante fazermos um tratado desde o dia um do nosso namoro. Afinal, o combinado não sai caro”, sugere a garota. Há poucas décadas, esse diálogo pareceria um tanto absurdo. Hoje, faz parte de muitas conversas iniciais entre casais, dos mais jovens aos maduros.
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Em tempos de relações customizadas, acordos sobre exclusividade amorosa estão mais explícitos e comuns — e, em alguns casos, bem flexíveis. Seja a permissão para ficar com alguém durante o Carnaval, seja a liberdade para um flerte em viagens, para uma transa sem compromisso após uma festa ou uma ficada com uma celebridade-crush, o que antes era considerado traição e mau-caratismo agora faz parte de uma combinação prévia. E é nesse território intermediário entre monogamia e não monogamia que surge um novo termo, a neomonogamia.
A lógica é simples: o casal mantém o compromisso afetivo e exclusivo, no entanto, estabelece brechas consensuais. Diferente de um relacionamento aberto, que pressupõe envolvimentos transparentes e frequentes com outras pessoas, as neomonogamias preservam a ideia de um vínculo prioritário, central, com pequenas aberturas somente em momentos pontuais e esporádicos. As circunstâncias podem ser diversas, depende do que foi acordado.
Para a psicanalista e escritora Regina Navarro Lins, autora de livros como “Sexo na Vitrine” (BestSeller, 2022), “Amor na Vitrine” (BestSeller, 2020) e “Novas Formas de Amar” (Planeta, 2017), esse fenômeno não é apenas um modismo, mas parte de uma transição ampla e gradual que está em curso desde os anos 1960, a partir da criação da pílula anticoncepcional e da contracultura, com os movimentos hippie, LGBTQIA+ e feminista, além da revolução sexual.
“Estamos assistindo a uma transformação. A monogamia ainda é um imperativo na nossa cultura, entretanto, há uma mudança de mentalidade acontecendo. Eu sempre digo que nós devemos refletir sobre essas crenças e esses valores aprendidos para nos livrarmos de preconceitos e moralismos, se quisermos viver melhor”, afirma.
A monogamia ainda é um imperativo na nossa cultura, entretanto, há uma mudança de mentalidade acontecendo
Lins comenta que o amor romântico, aquele com o qual aprendemos a idealizar por séculos, dá sinais de recuo. “Ao sair de cena, ele leva a sua característica básica: a exigência de exclusividade, abrindo espaço para outras formas não só de amar, mas de casar, de namorar, de se relacionar.”
O que é monogamia — e até onde ela pode ir?
Na definição clássica, a monogamia é um sistema de relacionamento em que os indivíduos têm apenas um parceiro sexual e romântico por vez. Esse modelo, predominante no Ocidente, sempre foi tido como norma social. Mas, na prática, o desejo extraconjugal nunca deixou de existir. A infidelidade, que está aí desde que o mundo é mundo, prova isso.
O que muda agora é que, em vez de trair às escondidas, casais preferem negociar limites, mantendo assim o compromisso monogâmico sem sufocar a atração por terceiros, antes reprimida ou consumada de um jeito escuso.
“Não é natural sentir tesão por alguém e se reprimir. Você pode se reprimir, mas vai ter um preço para a relação. A monogamia implica em não admitir que o parceiro ou a parceira deseje outra pessoa. É um controle”, diz Regina Navarro Lins.
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A psicanalista fala ainda que o amor romântico vende a ideia de que uma única parceria pode suprir todas as nossas necessidades emocionais e sexuais. Essa expectativa, conforme conta, é irreal e gera frustrações. Nessa forma relacional, as duas pessoas vão se transformar em uma só. “É uma coisa horrível, não existe respeito à individualidade, porque os dois são um só, um se mete na vida do outro, tudo é compartilhado com o outro. Há ainda uma crença que provoca um sofrimento terrível, o pensamento de que quem ama não pode transar com mais ninguém.”
A não monogamia, por sua vez, não deve ser encarada como um rótulo fixo, ela está aberta a experimentações mil. Algumas pessoas permitem beijos, mas não sexo. Outras aceitam os casos da namorada ou do marido, desde que essas ligações não tenham apego emocional. Já alguns não veem problema em dormir depois de transar com o ficante da vez, porém de conchinha, jamais. Há também quem limite a abertura da relação a um evento específico, como uma despedida de solteiro.
As fronteiras são permeáveis. Tem gente que vivencia práticas não monogâmicas, mas ainda se identifica como monogâmica
A linha divisória entre monogamia e não monogamia não é tão rígida assim. A psicóloga e pesquisadora Camila Ribeiro, membro do grupo de pesquisas Políticas, Afetos e Sexualidades Não-Monogâmicas, explica. “As fronteiras são permeáveis. Tem gente que vivencia práticas não monogâmicas, mas ainda se identifica como monogâmica. Da mesma maneira, há os adeptos do poliamor, que vivem em um trisal fechado, mas que se reconhecem e se nomeiam enquanto monogâmicos, se relacionando exclusivamente entre si, dentro daquele trio”, menciona.
Mas, se há permissão para ficar com outros, o modelo pode ser chamado de monogâmico? Ribeiro responde: “Não tem mais como falar de uma só monogamia, da forma de quando o termo foi cunhado. Nas minhas investigações, eu chamei esse entrecruzamento de neomonogamia. Não é nem uma monogamia nem uma não monogamia”.
Ela analisa que existe um paradoxo no momento atual que, ao mesmo tempo em que traz uma abertura e maior disponibilidade para essas experimentações, por outro lado aumenta o risco de que os relacionamentos poliamorosos ou não monogâmicos, no geral, sejam institucionalizados. “Quando entramos nesses cenários e não questionamos ou não tensionamos os sistemas normativos, é possível que se caia em uma espécie de institucionalização”, resume.
Neomonogamia: um passo para a não monogamia?
De acordo com Regina Navarro Lins, a tendência é cristalina: em um futuro próximo, pouca gente estará disposta à exclusividade total. “Acredito que daqui a pouco tempo, podem ser cinco, oito, dez, 15 anos, não dá para precisar, muito menos gente vai querer se fechar numa relação a dois, monogâmica, e muito mais gente vai querer relações múltiplas, variadas”, frisa a autora.
Menos gente vai querer se fechar numa relação a dois, monogâmica, e mais gente vai querer relações múltiplas
Ela acredita que essas concessões pontuais podem ser um ponto de partida para a não monogamia. “Se um casal já experimentou ficar com outras pessoas, cada um transou com quem quis e deu tudo certo, ambos ficaram bem e confortáveis, eles estão praticamente sendo não monogâmicos. Quer dizer, de repente eles combinaram aquilo como um primeiro passo. E aí vão sendo dados passos intermediários. É uma meia monogamia.”
As regras do jogo: maturidade para lidar
Se, por um lado, esse novo modo de se relacionar parece mais honesto e realista, por outro, ele exige um nível avançado de maturidade e comunicação. Em entrevista a Gama sobre o tema, de 2024, Maria Silvério, jornalista, doutora em antropologia especializada em gênero, sexualidade e relações não monogâmicas e autora do livro “Swing – Eu , Tu…Eles” (Chiado Brasil, 2014), comentou que indica a não monogamia para pessoas com maior estabilidade emocional e mais experiências de vida.
“Requer um nível de amadurecimento, não só pessoal, mas também relacional, para lidar com as complexidades das relações não monogâmicas, senão pode ser uma coisa realmente muito avassaladora e destruidora para o casal”, alerta.
Um casal que decide mudar o status do relacionamento precisa estar na mesma página, como apontou a Gama, em reportagem publicada em 2022 sobre como abrir a relação, a psicóloga e terapeuta de casal Adelita Monteiro, cofundadora do perfil Reflexões & Conexões Não Mono. “É preciso combinar como vai ser essa abertura, se será apenas sexual ou afetiva, se posso me envolver, se vamos só transar com outras pessoas estando os dois juntos etc.”
Há variáveis que não são possíveis de serem controladas [no relacionamento]
Abrir e “ver no que vai dar” raramente é um bom jeito de levar a situação. “Aí chegam os conflitos, os desafios, o ciúme, tudo junto e atropelado”, enumera. A profissional ainda atenta para o fato de que o processo nunca sairá exatamente como planejado, por mais que acordos sejam feitos. Mas mesmo assim é importante estabelecer regras, conversar e acolher o outro. “Só não dá para fazer uma lista gigante. Há variáveis que não são possíveis de serem controladas.”
Além disso, o modelo pode ser usado como uma forma de concessão forçada. Há casos em que um parceiro aceita essa flexibilidade apenas para não perder o outro, mas se sente desconfortável, o que pode gerar ressentimentos e, ao invés de fortalecer o relacionamento, acaba por enfraquecê-lo.
Regina Navarro Lins destaca que, muitas vezes, os casais que adotam as neomonogamias acabam mantendo velhos padrões possessivos e controladores. “A ideia de que ‘pode transar, mas não pode beijar’ ou ‘pode ficar, mas não pode dormir de conchinha’ mostra que ainda existe a vontade de regulamentar o desejo do outro. No fundo, os acordos, mesmo que maleáveis, demonstram um controle sobre o outro”, defende.
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