O que podemos aprender com o circo? — Gama Revista
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Reportagem

O que podemos aprender com o circo?

O poder da comunhão nas lonas circenses: uma arte que ensina valores comunitários às crianças, e é também um meio para ações sociais

Manuela Stelzer 12 de Março de 2023

O que podemos aprender com o circo?

Manuela Stelzer 12 de Março de 2023

O poder da comunhão nas lonas circenses: uma arte que ensina valores comunitários às crianças, e é também um meio para ações sociais

O circo, em todos os seus aspectos, é uma espécie de comunidade. Seja pela união e trabalho em grupo que são necessários para manter a lona em pé, seja pela diversidade de funções e especialistas que convivem e participam do show – malabaristas, palhaços, acrobatas, mágicos, contorcionistas, trapezistas –, ou mesmo pela integração familiar que acontece na característica arquibancada circular. Pais, filhos, irmãos e avós se sentam juntos e apreciam o espetáculo.

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Quando o circo é itinerante, o senso de comunidade é ainda mais natural. Os artistas convivem dia e noite entre si, às vezes até constroem famílias. Nessa vida meio nômade, conforme os filhos crescem, os aprendizados passados de geração em geração tem mais a ver com acrobacias e malabares do que jeitos de arrumar a cama e cuidar das finanças. É o que parece acontecer entre Paulo Maeda e seu filho de pouco mais de um ano.

“Essa questão de famílias do circo é algo muito recorrente. Tenho amigos que tem filhos trabalhando no circo, ou com pais que trabalharam no circo”, conta Maeda. Ele, que é artista circense, já deu aula, já se apresentou no palco e hoje gosta dos movimentos mão a mão, onde há alguém em cima, o volante, e alguém embaixo, na base. Maeda viu nesses exercícios de força e concentração uma possível conexão com o filho, onde poderia ensiná-lo valores importantes, como confiança em si e em seus pares.

Essa transmissão de aprendizados é apenas um dos aspectos que fazem do circo uma referência de comunidade. Gama foi investigar como essa convivência funciona e o que ela tem a ensinar, em especial para as crianças, sobre a potência do coletivo e da diversidade.

Respeitável público!

Era a frase de abertura do espetáculo circense, as duas palavras que concentravam o olhar das famílias no picadeiro (o palco central na lona). Mas nem sempre essa foi a organização do circo. Chineses, gregos, egípcios, indianos e quase todas as civilizações antigas praticavam algum tipo de arte circense, e foi durante o Império Romano, tendo como grande expoente o Circus Maximus, que a atividade ganhou força. Inaugurado no século 6 a.C. e mais tarde destruído em um incêndio, trazia atrações como corridas de carruagem, luta de gladiadores e apresentações de animais e pessoas com habilidades incomuns. Foi só na Inglaterra, no século 18, que o circo moderno com seu picadeiro circular se estabeleceu.

Nessa história, duas características nunca mudaram: primeiro, a diversidade de funções necessárias para montar um bom espetáculo e a maneira como essas pessoas diferentes precisam trabalhar em comunhão; e segundo, o movimento e a euforia que a chegada do circo provocava (e ainda provoca). “Essa arte milenar, quando chegava em carreatas nas cidades antigamente, gerava todo um encanto, uma integração sistêmica“, afirma Cleiton Lisboa, um entusiasta do tema e coordenador do projeto Circo Social, que usa técnicas e atrações circenses para realizar ações filantrópicas. “Afinal, você nunca vai no circo sozinho.”

O circo na infância

Há também um potencial pedagógico nas acrobacias, malabares e outras atrações circenses. Na Unicamp, o CIRCUS (Grupo de Pesquisa em Circo) é um coletivo que desenvolve estudos, eventos, projetos de iniciação científica, orientações de mestrado e doutorado,tudo relacionado ao circo e as suas aplicações. Uma das publicações do grupo é o título “Circo: Horizontes Educativos” (Autores Associados, 2016), que se debruça justamente sobre as práticas pedagógicas que acontecem dentro da lona. Outra publicação é a pesquisa “Vamos brincar de circo”, de 2021, que explora os efeitos da arte circense na educação infantil.

Saindo da teoria, há exemplos práticos que usam a arte milenar com fins pedagógicos: o projeto Giz de Ser, da artista Isadora Faro, leciona um curso de circo para crianças a partir de três anos. “É um espaço de experimentação por meio do corpo, com ferramentas do circo”, explica. “Não estamos muito preocupados se a criança vai fazer acrobacias com ponta de pé, perna esticada. O que nos interessa é o aspecto convidativo à diversidade que o circo proporciona.”

Durante a pandemia, o projeto se lançou ao desafio das aulas online, e Faro se surpreendeu. Em casa, ela conta que as crianças, sempre sob supervisão adulta, conseguiram reproduzir, mesmo que de maneira adaptada, o que era ensinado no presencial. “Desenvolvemos uma metodologia que expandia o lugar de criação. Era malabarismo com o que tivesse em casa e por aí vai.” De novo, o propósito era menos a postura ereta e a ponta de pé, e mais a experiência, a brincadeira, os testes com o corpo. “Isso permitia que os alunos não ficassem olhando a tela o tempo todo, porque não tinha nada pra imitar.” Até em isolamento o senso de comunidade do circo se fez presente: “Iam brincando e experimentando juntas, mesmo à distância”.

Faro acredita que, muitas vezes, o circo pode recair num lugar de virtuosidade, o que, principalmente no caso da infância, se torna um problema. “Vejo muitas escolas focarem na técnica, na reprodução de um corpo acrobático, nas pernas sempre estendidas, na flexibilidade total do espacate”, comenta. “Isso acaba não gerando um lugar de representatividade nem de identificação.”

Por isso, relembra o que quer ensinar de fato no Giz de Ser: “Nesse contato com as telas, com o crescer, vamos tornando o jeito de viver muito formal. O circo expande as possibilidades de se mover no mundo, e digo fisicamente mesmo”. Segundo a artista, é possível inventar maneiras de se movimentar, que vão além do andar com os dois pés no chão, por exemplo. “Podemos andar com as mãos e os pés, com os cotovelos e a barriga, etc. Isso cria uma referência de que podemos existir de jeitos diferentes, mais criativos, mesmo quando somos adultos.”

Paulo Maeda, que também é artista circense, quer transmitir esses ensinamentos ao filho: “Comecei no circo sem saber fazer nada. Fui aprendendo, ganhando força, habilidade. Escutamos muito que o que fazemos é impossível reproduzir. Mas quero que meu filho saiba que é sim possível, e que ele pode fazer o que quiser”.

Além da autoconfiança, algo que ele busca mostrar ao pequeno, e já ensinou nas aulas de circo, é crença no outro e no trabalho conjunto. Quando lecionava acrobacias em solo, fazia muitos exercícios em grupo, já que é uma modalidade que exige força e atenção para manter em segurança os artistas envolvidos. “Algo que sempre dizia era: ninguém cai. A pessoa que fica em cima jamais pode cair. O grupo ao redor, a pessoa que fica na base, todo mundo deve ficar olhando e cuidando. E esse exercício atento do cuidado com o outro extrapola os limites da lona.”

Voluntariado circense

Outra vertente que passou a usar as atrações do circo como meio de atuação são os projetos sociais. O Circo Crescer e Viver, no Rio de Janeiro, e o Circo Social, no Paraná, são apenas alguns projetos que fazem apresentações beneficentes, dão aulas em comunidades e escolas públicas, entre outras ações. São iniciativas que usam a imagem e o conceito do circo para criarem o mesmo espaço de igualdade presente na lona: “O circo é sempre coletivo, e carrega esse símbolo do círculo, onde todos são semelhantes, sentam em roda”, analisa Isadora Faro, do Giz de Ser. “E no caso das crianças, pais e professores estão sempre em diálogo, o que também cria uma espécie de comunidade.”

O espetáculo jamais é feito sozinho, como reitera Paulo Maeda. “Na creche do meu filho, a diretora me perguntou se faria uma apresentação. Disse a ela que sozinho não conseguiria, mesmo se fizesse um número solo.” Maeda diz que por trás de toda atração, por mais individual que seja, há um grupo coeso de pessoas trabalhando para fazer tudo funcionar. “Tem a pessoa que controla o motor da corda que te puxa e te coloca de volta no chão, a que manipula as luzes, que coloca som, que faz a coreografia. Tudo isso mesmo se o público vê apenas um artista no picadeiro.”

O clássico Circo Zanni, que faz apresentações itinerantes desde 2003 e tinha como um dos fundadores o artista Domingos Montagner (1962-2016), é um belo exemplo do show que deve continuar e a comunidade, se manter, mesmo que uma peça-chave não esteja mais presente. Depois da morte de Montagner, em 2016, o circo continua suas atividades, “unidos e fortes, como ele gostaria”, disse um dos colegas do ator na época.

Esse caráter de comunhão e da força do coletivo é um prato cheio para as iniciativas sociais. “É exatamente isso que precisamos em um projeto: disponibilidade dos voluntários e muita união para manter o circo em pé”, afirma Cleiton Lisboa, do Circo Social. Segundo ele, o circo tem esse poder agregador, “não separa por idade, cor, religião, e isso reverbera na sociedade”. “Brinco que a lona se abre, recebe e entretem crianças de zero a cem anos. O intuito é realmente remeter à infância, unir famílias, levar esperança.”