Conheça vozes que fortalecem comunidades — Gama Revista
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Semana

Como fortalecer comunidades

Uma artista visual, um educador social, um regente, um aspirante a rabino e duas roteiristas. Em comum, o desejo de juntar pessoas para compartilhar ideias e transformações

12 de Março de 2023

Como fortalecer comunidades

Uma artista visual, um educador social, um regente, um aspirante a rabino e duas roteiristas. Em comum, o desejo de juntar pessoas para compartilhar ideias e transformações

12 de Março de 2023
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    “O tambor e o rádio têm uma linha de articulação direta entre comunidades”

    Ana Lira, artista visual, fotógrafa, pesquisadora e especialista em Teoria e Crítica da Cultura

    Em uma sala do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ) escutamos uma rádio funcionando ao vivo, rodeada de tambores. Trata-se da obra “Nos traquejos do tempo [Vibração 01]”, da artista recifense Ana Lira, um projeto que propõe vivências a partir de musicalidades negrodescendentes.

    Com um trabalho que se iniciou em 2022, ela relaciona o tambor e o rádio como elementos agregadores das comunidades negras de todo o mundo. “O que eu sinto é que a dinâmica da comunicação com o tambor e a dinâmica da comunicação com o rádio tem essa linha de articulação direta entre comunidades”, diz a Gama. Ela cita rádios direcionadas a pessoas que migraram do continente africano para outros países e as chamadas de piratas, em que experimentações musicais podem ser aprofundadas.

    Ao longo de cinco meses a artista recebeu, no MAM, convidados para conversas ao vivo, em formato de programa de rádio e transmitidas pelas redes sociais. Eram nomes que dialogavam com o projeto, como Laísa Lima e Luciene Del Rey, da bateria da Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis; e Regina Café, da Escola de Possibilidades Sonoras, um projeto que busca a educação musical e inclusiva por meio da confeção da instrumentos musicais.

    Os tambores, como lembra a artista, são capazes de passar informação entre comunidades vizinhas, de ativar a presença dos orixás nos terreiros e como um objeto de transmissão e da materialização de conhecimento cultural e histórico das diásporas africanas no Brasil.

    “O tambor não é só um instrumento, mas a produção de conhecimento em si”, diz Lira. “Ele é a síntese da comunidade da qual pertence.” O rádio, por sua vez, é uma ferramenta possível de unir comunidades e transmitir conhecimento, mesmo que não exista internet ou energia elétrica. Daí a união de rádio, tampor e diálogo em um mesmo espaço. (Luara Calvi Anic)

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    “Somos destinados a aprender a conviver com outras pessoas”

    Ricardo Castro, regente, pianista e fundador do NEOJIBA (Núcleos de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia)

    Ricardo Castro começou a tocar piano aos três anos de idade. Aos cinco, foi admitido com caráter excepcional no Seminário de Música de Salvador, que hoje é parte da UFBA. Aos oito, deu seu primeiro recital, e aos dez, junto à orquestra da universidade, tocou o Concerto em Ré Maior de Haydn. A história e experiência do pianista e regente na música clássica é longa. E foi nesse universo que ele encontrou terra fértil o suficiente para criar uma grande comunidade.

    “Somos destinados a aprender a conviver com outras pessoas. Só que esse aprendizado tem sido cada vez mais difícil”, conta ele a Gama. “Nesse contexto, o diálogo se torna fundamental. Mas, para escutar, precisamos criar dentro de nós o silêncio, e é aí que entra a música, uma arte feita de sons e de silêncios.” Em 2007, Ricardo Castro fundou o NEOJIBA (Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia), que tem como objetivo promover mudanças na vida de jovens e crianças por meio da prática coletiva da música.

    Toda a ideia do projeto veio de seu contato, em 2006, com o programa venezuelano El Sistema, também de educação musical. Desde sua concepção, o NEOJIBA é um exemplo de comunidade: mais de 12 mil crianças e adolescentes em toda a Bahia foram beneficiados com as ações, e atualmente são mais de 2,3 mil integrantes diretos em seus 13 núcleos e 4,5 mil indiretos, por meio de iniciativas parceiras.

    “Pela complexidade e variedade do repertório, a prática musical em orquestras sinfônicas desafia e desenvolve nossas capacidades cognitivas e de interação”, explica Castro. “A existência de grupos orquestrais profissionais, como grupos amadores de excelência, além da construção de espaços de ‘silêncio’, deveria fazer parte de qualquer projeto de vida comunitária.” (Manuela Stelzer)

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    “Considero um privilégio poder contribuir com a transformação de realidades”

    Wagner Silva (Guiné), coordenador de fomento a agentes e causas na Fundação Tide Setubal

    Foi participando de concursos de rap e hip hop na adolescência, na década de 1990, que Wagner Silva entrou em contato com moradores de diferentes comunidades das periferias de São Paulo. Nascido na Vila Prudente, Silva, conhecido como Guiné, passou a maior parte da juventude em Cidade Tiradentes, ambos bairros da periferia da zona leste de São Paulo. Os amigos que fez, de bairros como Capão Redondo e a periferia da zona norte, o levaram para o Geledés [organização social em defesa de mulheres e negros], onde começou a trabalhar na formação política e cidadã de moradores das comunidades.

    “Nesse momento, ainda não entendia meu papel como educador social. Eu era um jovem negro periférico contribuindo para que outros meninos pretos continuassem vivos”, lembra Guiné. A partir desse movimento, em 2001, ele acabou entrando para o Instituto Sou da Paz, onde iniciou como educador social e terminou como coordenador de articulação comunitária três anos depois. “Trabalhava no fortalecimento das organizações de favelas e periferias, adicionando esses territórios a uma rede mais ampla que criava pontes e oportunidades.”

    O trabalho junto às comunidades também incentivou Guiné a se formar em ciências sociais, mais tarde cursando especializações em gestão de projetos. Ao longo da sua trajetória, ele passou ainda pelo Projeto Casulo, que oferece atividades socioeducativas, culturais e de educação para jovens e famílias de comunidades carentes em bairros nobres da região oeste da cidade.

    Na Fundação Tide Setubal, onde entrou em 2008, Guiné finalmente ganhou uma oportunidade de expandir seus horizontes. Hoje, por lá, ele trabalha como coordenador de fomento a agentes e causas, identificando e injetando recursos em iniciativas periféricas, com potencial de reduzir as desigualdades não apenas em São Paulo, mas no Brasil. “Isso me permite contribuir com diferentes comunidades, seja numa periferia urbana seja dentro da periferia rural, como nos quilombos espalhados pelo país. Comunidades fora de uma realidade como São Paulo”, conta. “Considero um privilégio poder chegar nesses lugares e contribuir com a transformação da realidade dessas pessoas e territórios.” (Leonardo Neiva)

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    “Dá satisfação ver que nosso espaço fez alguma diferença positiva na vida das integrantes”

    Letícia Bulhões Padilha e Helena Schoenau, roteiristas e fundadoras de uma comunidade online para mulheres que trabalham na área

    No Ano Novo de 2018, na iminência do início do governo Bolsonaro, as roteiristas Letícia Bulhões Padilha e Helena Schoenau conversavam com algumas amigas da área sobre como a mudança poderia afetar tanto a cultura quanto a existência de minorias políticas no país. Foi a partir dessa troca, ocorrida no Facebook, que as duas decidiram fundar um grupo no Whatsapp voltado exclusivamente para mulheres cis, trans e pessoas não-binárias que atuassem como roteiristas no Brasil. “O grupo foi crescendo aos poucos. Fomos convidando colegas de trabalho, do nosso círculo de amizade que, por sua vez, foram seguindo o movimento. Foi tudo muito orgânico”, conta Padilha.

    A ideia era que as profissionais se unissem buscando sua sobrevivência e o avanço na área. Especialmente num setor como o audiovisual, que, como boa parte dos espaços de poder, segue sendo predominantemente masculino. “A principal motivação era criar um espaço de resposta mais rápida, em que pudéssemos nos apoiar e oferecer entre si o suporte que nós já fornecíamos uma para a outra”, diz Schoenau, que trabalhou em empresas como ViacomCBS e Movioca, e hoje é roteirista freelancer.

    Hoje, as fundadoras participam e moderam diariamente as discussões no grupo, que conta com 270 integrantes, com idades, origens e etnias variadas. Elas preferem não expor o nome da comunidade para não atrair gente demais, evitando que a dinâmica se torne muito difícil de administrar. “Nem sempre a gente acerta em como lidar com as divergências, mas tentamos tornar o ambiente o mais pacífico e inclusivo possível”, afirma Padilha, que já trabalhou em programas de TV como “The Masked Singer Brasil” (2021- ) e “A Culpa É da Carlota” (2020- ). Além de publicar vagas de trabalho e criar uma rede mais conectada entre as profissionais do setor, as integrantes também discutem questões como valores de cachê e contratos, divulgam obras e eventos, e também falam constantemente sobre temas ligados à arte do roteiro e do audiovisual.

    A dupla ainda admite que o grupo dá bastante trabalho, até porque funciona em paralelo com suas carreiras profissionais. Mas elas também enxergam a comunidade como um espaço de resistência. “É uma forma de persistirmos, de seguirmos juntas na busca por um mercado melhor”, considera Schoenau. “Dá muita satisfação ver que nosso espaço fez alguma diferença positiva na vida das integrantes.” (Leonardo Neiva)

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    “A gente não pode nunca deixar alguém sozinho e todo mundo tem um lugar no mundo judaico”

    André Liberman, estudante de rabinato e coordenador do Gaavah, coletivo LGBTQIA+ judaico

    Um episódio de homofobia vivido aos 14 anos quase afastou para sempre o ativista André Liberman, 23, da religião. De família não muito praticante no Recife, ele havia se encantado pelo judaísmo aos 11, ao participar de um bar mitzvah de um primo em São Paulo. Ao voltar para a cidade natal, passou a frequentar uma sinagoga, onde acabou sofrendo o ataque de outro frequentador. Ao comentar sobre um trecho da Torá, o homem afirmou que o livro sagrado da religião dizia que “travecos ou abominações desse tipo” não podiam estar em ambientes como aquele.

    “Eu tinha acabado de me assumir gay para minha família, então foi claramente uma direta para mim”, lembra Liberman. “Olhei para aquele cara, que devia ter uns 50 anos, e tive que me defender sozinho, aos 14 anos, porque ninguém da congregação se levantou para me defender.” Magoado, se afastou da religião até ser convidado pelo pai, numa viagem a Nova York no ano seguinte, a visitar uma sinagoga progressista. No templo Emanu-El, primeira congregação judaica reformista da cidade, Liberman se surpreendeu ao ver entrar uma jovem com uma camiseta estampada com a bandeira do arco-íris e uma estrela de Davi ao centro. Ali mesmo fez novos amigos e iniciou uma troca de experiências que mudaria totalmente sua trajetória.

    De volta ao Brasil, voltou a frequentar a mesma sinagoga e se tornou cada vez mais ativo na comunidade. Em 2019, convidado por um amigo a substituí-lo durante uma viagem, ele realizou um “Pride Shabat”, primeira cerimônia tradicional do shabat dedicada à diversidade do país. Imagens e relatos sobre o evento se espalharam por organizações judaicas no mundo todo. Sinal dos tempos, além de algumas críticas de setores mais conservadores, Liberman passou a ser convidado para relatar sobre a experiência em eventos e virou uma referência para jovens LGBTQIA+ que, como ele, achavam ser incompatível sua orientação sexual com a fé judaica.

    No ano seguinte, junto com a amiga Carol Beraja, ele fundou o Graavah (palavra que significa orgulho em hebraico), primeiro coletivo LGBTQIA+ judaico do país. Impulsionado pelos eventos online durante a pandemia e por uma religião mais aberta à diversidade do que na época do episódio de sua adolescência, o grupo hoje reúne 120 integrantes em Recife, Rio de Janeiro, São Paulo, Manaus e Porto Alegre. “Gosto de olhar para trás e pensar que eu quase saí do judaísmo e, hoje, estou indo para Londres para falar sobre a questão LGBTQIA+ num encontro mundial e estudando para me tornar rabino”, contou ele a Gama. “Tem uma frase no judaísmo que diz: ‘Todo judeu é responsável pelo outro’. A gente não pode nunca deixar alguém sozinho e todo mundo tem um lugar no mundo judaico.” (Amauri Arrais)