Os desafios da paternidade negra no Brasil — Gama Revista
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Isabela Durão

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Conversas

Luciano Ramos: "Para o homem negro, ser pai no Brasil é um ato de resistência"

Coordenador do primeiro relatório sobre paternidades negras no Brasil aborda desafios históricos que homens negros enfrentam até hoje para ser pais

Leonardo Neiva 13 de Agosto de 2023

Luciano Ramos: “Para o homem negro, ser pai no Brasil é um ato de resistência”

Leonardo Neiva 13 de Agosto de 2023
Isabela Durão

Coordenador do primeiro relatório sobre paternidades negras no Brasil aborda desafios históricos que homens negros enfrentam até hoje para ser pais

Embora 83% dos pais negros no Brasil se sintam plenamente capazes de cuidar de seus filhos pequenos, 65% também afirmam já ter sido alvos de discriminação em algum momento ao exercer sua paternidade. E impressionantes 95% sentem dificuldade para falar sobre racismo ou empoderar racialmente a criança. Esses são só alguns dos achados do “Primeiro relatório sobre as paternidades negras no Brasil”. Apesar de ter saído apenas em 2022, é literalmente o primeiro documento abrangente com esse enfoque no Brasil — país onde, vale lembrar, mais da metade da população é negra, de acordo com o Censo mais recente.

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“Só se fala do homem negro quando se trata da paternidade ausente”, aponta o historiador Luciano Ramos, 40, que coordenou o relatório produzido pelo Instituto Promundo, organização que busca combater o racismo e promover a igualdade de gênero na infância.

Segundo Ramos, que é também diretor adjunto da instituição e especialista em paternidades e masculinidades, o objetivo do relatório é não apenas questionar a visão estereotipada que se tem sobre pais negros no Brasil, mas também destacar os acontecimentos que levaram ao abandono paterno em várias gerações de famílias negras. Entre eles, a profunda desigualdade social no país, a noção herdada da escravidão de que homens serviam apenas para procriar e a incapacidade que ainda existe de enxergar homens negros como seres afetuosos.

Também abandonado pelo pai ainda no hospital, Ramos conta que, assim como milhões de outros jovens negros, ele cresceu sem uma referência do que significa a paternidade. Apesar de muitos homens negros das gerações mais recentes terem melhores condições financeiras que seus pais, avós e bisavós de criar seus filhos, o historiador afirma que eles ainda precisam construir seus próprios modelos de paternidade, já que não tiveram esse exemplo em casa.

Pais negros também precisam ter maior repertório para falar sobre racismo e empoderamento com os filhos, apesar de boa parte deles não terem aprendido sobre o tema nem em casa nem na escola — apenas a partir de uma legislação de 2003, o ensino sobre história e cultura afrobrasileira passou a ser obrigatório. “A questão não é se a criança negra vai sofrer racismo, mas quando. Esse pai deve estar preparado para contribuir no processo de empoderamento dela”, diz o especialista.

A seguir, veja um resumo da entrevista de Luciano Ramos a Gama, onde fala também sobre a importância da saúde pública para pais negros, o impacto do planejamento familiar e como a literatura infantil pode ser uma boa forma de introduzir diálogos complexos sobre racismo e machismo com os pequenos.

 Arquivo pessoal

Gerações de pais negros

“Anualmente, institutos como o IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família) fazem relatórios sobre o número de crianças sem o nome do pai no registro de nascimento no Brasil. Quando a gente começa a olhar essas crianças, vê que a maioria são negras, pobres e periféricas. Então, historicamente, costumamos falar de que tipos de paternidades?

O ‘Primeiro relatório sobre as paternidades negras no Brasil’ é o único estudo racializado desse tipo na América Latina. O documento aponta muitas diferenças geracionais entre as paternidades negras. Vivemos um processo de 135 anos de abolição da escravatura, precisamos entender quem eram os homens negros que chegaram ao Brasil sequestrados da África como força bruta de trabalho e reprodução.

O percentual de pais negros em trabalhos subalternizados continua sendo maior

Nossos avós e bisavós não tinham nenhuma experiência de paternidade. Eles vinham apenas para reproduzir, mas não para ser pais. Então a memória afetiva deles é quase inexistente, porque historicamente não paternaram. Enquanto isso, homens brancos tiveram toda a oportunidade de exercer a paternidade.

Os homens negros da minha geração, de 30 a 40 anos, passaram a exercer a paternidade porque hoje existem maiores oportunidades sociais para serem pais. Eles começaram a ter um pouco mais de tranquilidade para gerar renda pois conseguiram — ao menos os entrevistados na pesquisa — alcançar a academia, alguns até com mestrado ou doutorado.

Mas outro achado desse estudo é que o percentual de pais negros em trabalhos subalternizados continua sendo maior. Eles também não conseguem acessar programas paternos de pré-natal ou participar do parto e do puerpério. Isso aponta para a falta de acesso a políticas públicas racializadas.”

Espelhos e ferramentas

“Eu tenho uma irmã gêmea. No dia em que nascemos, meu pai foi embora. Ele e minha mãe já tinham outros dois filhos. Meu pai era um homem preto, um padeiro. Não tinha formação e se desesperou quando descobriu que vieram duas crianças. Falou que ia para casa buscar nossas roupas e nunca mais voltou. Minha mãe acabou nos criando sozinhos.

Meu pai tomou um rumo muito parecido com o de outros homens negros da geração dele, se alcoolizando até morrer, quando eu tinha dez anos. Não pude conhecê-lo nem me relacionar com ele. Por isso, entender o que é uma paternidade cuidadosa foi muito difícil para mim. Na família, os companheiros das minhas tias também foram embora, deixando os filhos para elas criarem. Era algo muito naturalizado naquele cotidiano. Como trabalhar a masculinidade e paternidade nesse contexto?

A paternidade, assim como a masculinidade, ocupa um lugar de construção que se dá por referências. Quem é o cuidador desse homem negro? Que espelho de paternidade ele tem? Na ausência disso, é preciso trabalhar esse novo modelo de paternidade num âmbito psicológico. Só que estamos falando de figuras negras, que social e historicamente não entram em clínicas de psicologia.

A paternidade, assim como a masculinidade, ocupa um lugar de construção que se dá por referências. Quem é o cuidador desse homem negro?

Então a construção desse modelo acontece muitas vezes de forma solitária, porque tudo que o pai negro teve foram paternidades distantes ou ausentes. Nas comunidades de maioria negra, as grandes cuidadoras de crianças e adolescentes são as mulheres. Como mudar a chave, se esse homem não foi protegido nem cuidado para exercer uma paternidade que cuide e que proteja?

No Brasil, temos a política de Saúde do Homem e o Programa Pré-Natal do Pai/Parceiro. Quando esse homem descobre a gestação, também pode ser cuidado no sistema de saúde, que oferece até atividades em grupo para ajudá-lo a cuidar da criança no puerpério e no processo do desenvolvimento infantil. A política pública é essencial para dar ferramentas a esse homem no processo de cuidar.

É uma pena que poucas pessoas conheçam esses projetos. Por isso é tão importante ter grupos de masculinidades negras nos territórios onde esses meninos e homens estão, sejam escolas, espaços de assistência social ou ONGs.

O menino negro tem na primeira infância toda uma sociedade olhando para ele, ainda que com muitos estereótipos e situações de racismo. A partir da segunda infância, as políticas públicas deixam de acompanhar esse jovem. A única que permanece é a de segurança. Por isso, a maioria dos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas é negra.

O homem negro não é visto como alguém que cuida, e sim um indivíduo violento e agressivo. Só se fala do homem negro quando se trata da paternidade ausente. Essa foi nossa maior dificuldade. O relatório deveria ter sido produzido em três meses, mas acabou saindo em um ano, dado o tamanho da pesquisa.”

Machismo e racismo

“Falando na paternidade em geral, o grande desafio do homem no Brasil é trabalhar contra o machismo. É um ponto básico entender que o homem também cuida e pode desenvolver as mesmas tarefas que a mãe. Porque a mãe não nasce com o dom da maternidade, é algo desenvolvido no cotidiano.

A ausência paterna costuma se basear no machismo, mas a ausência paterna do homem negro inclui também o racismo. Para o homem negro, ser pai no Brasil é um ato de resistência. O psiquiatra martinicano Frantz Fanon dizia que o negro não é visto como homem pela sociedade. Ele é animalizado, sem qualquer possibilidade de humanidade. Com base nisso, o racismo estrutural, institucional e interpessoal dificulta que exerça a paternidade.

O homem negro precisa ainda de um letramento racial para cuidar dos filhos. A questão não é se a criança negra vai sofrer racismo, mas quando. Esse pai deve estar preparado para contribuir no processo de empoderamento dela. Também necessitamos de uma sociedade que olhe para os pais negros com todo seu potencial e contribua para seu fortalecimento.

O homem negro precisa de um letramento racial para cuidar dos filhos. A questão não é se a criança negra vai sofrer racismo, mas quando

As políticas públicas devem favorecer essa paternidade. Não dá para desenvolver um grupo de pré-natal com homens periféricos numa segunda-feira à tarde. Tem que ser num horário mais flexível. Essas políticas devem sensibilizar e incentivar esses homens a participar do processo de paternidade, fazendo com que se sintam incluídos na responsabilidade pelo desenvolvimento infantil.

O sistema de saúde também deve ajudar o pai negro a estabelecer um vínculo com a criança. O pai que cria uma relação de afeto não abandona. Homens negros foram criados acreditando que não se relacionam através do afeto. Esse é o primeiro ponto para animalizar alguém: retirar a afetividade. Descobrir-se como alguém que tem afeto por outro indivíduo é um processo revolucionário. Estamos começando a construir esses pontos, mas com passos curtos. Podemos intensificar o processo.”

Uma educação antirracista

“Mais de 90% dos pais têm dificuldade de falar com os filhos sobre racismo e empoderamento. Não falamos sobre racismo porque viemos de uma geração de pais que também não falavam do tema. O letramento racial é um processo muito recente. Nem as escolas nos ensinaram a falar sobre isso. A Lei 10.639 [que instituiu o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas] é extremamente recente de um ponto de vista histórico, e ainda enfrenta resistência. Segundo a última pesquisa do Todos Pela Educação, a maioria das escolas não implementa uma educação antirracista.

Ainda assim, sofremos racismo todos os dias, um lugar de muita dor e sofrimento. Como lidar com a minha dor e ainda falar com meus filhos sobre o tema? Quando um filho sofre racismo, o responsável também vivencia uma violência. Como ressignificar isso?

Um ponto extremamente importante são os livros infantis, que nos ajudam a falar com as crianças sobre empoderamento racial. Nos grupos de paternidades com homens negros, é algo que utilizo muito. Os livros podem inaugurar esse debate no ambiente doméstico.

Minha filha tem três anos, e já estamos atentos ao processo dela de educação escolar. Poucos dias atrás, a escola fez um projeto com autoras infantis. Nenhuma delas era negra. Quando entrei em contato, me responderam que não encontraram autoras negras que tivessem cinco livros de sucesso. Argumentei que autoras negras e brancas não partem do mesmo lugar. Não posso cobrar que uma escritora negra tenha o mesmo sucesso de uma branca, porque livros infantis de autoras negras começaram a ter sucesso apenas na última década. Quero que minha filha, assim como as outras crianças, conheça autoras negras para entender que também pode ser uma quando crescer.

Minha filha estuda numa escola privada, que só tem mais uma ou duas crianças negras. No segundo dia de aula, um dos poucos alunos negros olhou para mim e disse: ‘você é igual ao meu pai’, Naquele contexto, eu e o pai dele éramos os únicos homens negros aos quais tinha acesso.

Sabemos que minha filha vai sofrer racismo, mas estamos participando desse processo de letramento racial com a escola. Na maioria das vezes em que ela leva um brinquedo, é uma boneca negra que a professora coloca para todo mundo brincar. Não estamos ajudando a educar só nossa filha, mas contribuindo para a educação das outras crianças, provocando os pais a uma prática antirracista.”

Assunto em ascensão

“Óbvio que olhamos primeiro as vítimas da ausência paterna, mas também existe o sofrimento desse homem negro. Não estou romantizando, eu mesmo levei muito tempo para compreender isso. Esse sofrimento é não poder se vincular, estabelecer uma relação de afeto, se sentir parte de uma família. Prover uma família com quatro filhos é desesperador para um homem sem emprego formal, com um trabalho subalterno.

A paternidade responsável passa sim pelos aspectos financeiros, mas também pelo afeto, cuidado e proteção. Precisamos trabalhar com esses homens a perspectiva de que paternidade não é só prover. E é preciso abordar o planejamento familiar. Jovens negros ainda são maioria entre os pais adolescentes. Trabalhar o assunto desde a infância faz com que meninos negros entendam que a paternidade pode acontecer mais tarde.

A paternidade responsável passa sim pelos aspectos financeiros, mas também pelo afeto, cuidado e proteção

Esse assunto vem ocupando mais espaço na sociedade. Não tem como varrer para debaixo do tapete. Ele é necessário porque, quando um homem abandona um filho, há uma sobrecarga para a mulher. Paternidade participativa é dividir cuidado e tarefas domésticas, o que permite à mulher ascender socialmente. É um movimento que faz bem para todo mundo: a criança, o pai e a mãe.

O tema precisa estar presente em seminários e eventos para que a gente desconstrua o racismo que apaga essas paternidades, mas sem deixar de desenvolver o debate nos espaços que homens negros ocupam. Tenho medo de me tornar muito academicista e me afastar dos homens negros de comunidades periféricas e tradicionais, em empregos subalternizados. Esse é o público que mais interessa.”