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Ilustração de Isabela Durão

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Reportagem

Como lidar com uma demissão inesperada

Num período de incerteza e precarização dos vínculos trabalhistas, uma demissão pode ter impacto relevante também para a saúde mental

Leonardo Neiva 15 de Junho de 2025

Como lidar com uma demissão inesperada

Leonardo Neiva 15 de Junho de 2025
Ilustração de Isabela Durão

Num período de incerteza e precarização dos vínculos trabalhistas, uma demissão pode ter impacto relevante também para a saúde mental

Muitos de nós já enfrentamos uma situação parecida — e, se ainda não aconteceu com você, pode se considerar com sorte. O primeiro sinal de alerta vem do nada, na forma de uma chamada aparentemente inofensiva do RH ou de uma convocação à sala da chefia. Em tempos de home office, também se tornou comum que demissões aconteçam por videochamadas ou no mais alto pódio da impessoalidade: por uma mensagem de e-mail.

Sem tempo para se recuperar do baque, você é obrigado a recolher suas coisas, dizer adeus aos colegas e sair pela porta como em qualquer outro dia de trabalho. Pode demorar um pouco para cair a ficha, mas o mais comum nos primeiros dias após uma demissão é que um ex-funcionário fique meio perdido, sem saber que passo tomar ou a quem recorrer. Entra ainda nesse cálculo o impacto psicológico de uma demissão, já que as responsabilidades da vida pessoal nunca deixam de se acumular e o horizonte financeiro e profissional de repente parecem sombrios.

O tema está em alta. As buscas pelo termo “demissão” no Google dispararam 173% só no último ano — boa parte dos usuários também quer saber o que fazer e se vale a pena pedir demissão neste momento. Alguns estudos já comprovam que perder o emprego pode trazer um impacto negativo tanto para a saúde mental quanto física.

As buscas pelo termo “demissão” no Google dispararam 173% só no último ano

Além disso, vivemos em tempos de demissões em massa, que vêm acontecendo especialmente em empresas de tecnologia — “passaralho” é o termo carinhoso no meio jornalístico para esses cortes massivos nas redações. Além de tudo isso, somos obrigados a viver com a sombra da Inteligência Artificial que, mais dia menos dia, ameaça tornar diferentes profussões obsoletas.

Que ser demitido sem alerta prévio é complicado para a maioria das pessoas todos nós sabemos. Mas tem como lidar melhor com esse período ingrato da vida, sem deixar que ele afete nossa saúde ou autoestima? E ainda por cima não desanimar na hora de buscar novas oportunidades?

Por mais desconfortável que seja uma demissão, o professor de recursos humanos da FAAP Eduardo Felix ressalta a importância de estarmos atentos a nossa própria empregabilidade. No sentido de que é preciso estar de olho em diferentes oportunidades e investindo na formação. Mesmo que a demissão ainda não tenha apontado no horizonte, ele sugere continuar sempre ativo no mercado de trabalho, enviando currículos e fazendo networking. “A maior dificuldade que eu percebo é de gente que passou muito tempo empregada e nunca mais fez uma entrevista, então não sabe como a coisa funciona hoje”, conta.

A maior dificuldade que eu percebo é de gente que passou muito tempo empregada e nunca mais fez uma entrevista, então não sabe como a coisa funciona hoje

Continuar se atualizando e fazendo cursos também não é só um refrão para repetir em entrevistas de emprego. O que Felix aponta é que, num momento em que as coisas evoluem muito rapidamente, o aprendizado precisa ser constante e contínuo — e melhor ainda se aplicado no dia a dia do trabalho. É o que vem acontecendo com o uso das IAs, que ainda requerem um olhar humano para seu funcionamento. Então, aprender e se adaptar a elas pode se mostrar um passo crucial para a carreira.

O especialista também considera importante dedicar atenção especial às redes sociais, que têm bastante impacto até mesmo num processo de seleção. Mas faz um alerta: é preciso usá-las sempre de acordo com seus objetivos profissionais e evitar tratar nelas de temas muito sensíveis, que podem gerar uma visão negativa para o seu perfil.

“Não precisa esperar uma demissão para entender que a carreira é responsabilidade sua. Você não pode depender do plano de carreira de uma empresa, porque muitas vezes é mais fácil crescer de cargo mudando de uma para outra”, declara.

O que será o amanhã?

Uma coisa que os especialistas consultados por Gama reforçam é que a demissão e o desemprego têm efeitos bastante variados de acordo com certos fatores: classe social, raça, gênero e idade. Paparelli aponta o caso de mulheres em idade fértil ou recém-casadas, que muitas vezes precisam jurar que não pretendem engravidar para conseguir uma vaga.

Outro ponto relevante é a idade. Se entrar no mercado é um desafio para os jovens, o psicólogo do trabalho Antonio José de Carvalho afirma que lidar com uma demissão ainda é muito mais complicado para um trabalhador mais velho. Além da dificuldade de encontrar outro emprego, para muitos também é preciso nesse meio tempo manter uma família e uma certa qualidade de vida.

“O idoso, que eu chamo de jovem há mais tempo, não é aproveitado. Existe programa para jovem, aprendiz, para estagiário, mas não para pessoas com mais idade, que reúnem experiências em empresas, e poderiam ser excelentes contratações”, diz Carvalho. Para ele, o momento da demissão precisa ser visto como oportunidade de repensar a carreira, buscar novos desafios, desenvolver habilidades e não se isolar, o que pode ser perigoso.

“É importante criar um plano de ação com metas concretas. Organizar seu currículo, conectar-se com pessoas da sua área, procurar vagas ativas. E cuidar da saúde mental e física, é bom sempre lembrar disso”, recomenda.

É importante criar um plano de ação com metas concretas. Organizar seu currículo, conectar-se com pessoas da sua área, procurar vagas ativas. E cuidar da saúde mental e física

Segundo Paparelli, precisamos até mesmo começar a reinventar a ideia de demissão e desemprego, já que, numa realidade de precarização dos vínculos trabalhistas, muitos atuam sem trabalho fixo, em esquema PJ ou freelancer. “O fenômeno é parecido, mas o PJ não tem seguro-desemprego nem seguridade social, então é uma situação difícil.”

Após uma demissão, ela diz ser importante não só fazer projetos para um futuro distante, mas também para amanhã de manhã. “Quando devoradas por processos de trabalho canibais, as pessoas esquecem das coisas que gostam de fazer“, justifica a psicóloga. Então, retomar atividades de lazer e pequenos prazeres da vida é uma forma de lidar com esse momento. “Mas tudo isso é muito complexo, porque você entra numa instabilidade que dificulta a vida concreta.”

Por mais que a empresa queira evitar que pensemos nisso, a docente considera importante ter consciência de que todos podemos ser demitido a qualquer momento. “Trabalhei numa faculdade em que o cartão de estacionamento só podia ser utilizado até o final do semestre letivo. Era muito ruim, mas também providencial, porque ajudava a lembrar que o meu trabalho ia até o final do semestre. Depois, eu podia ser desligada”, conta.

Por outro lado, ela reforça que a estabilidade profissional é crucial para nossa saúde mental — e algo cada vez mais difícil de conseguir numa realidade precarizada de trabalho. “Você precisa de segurança para comprar suas coisas, pagar boletos, ter filhos, projetar-se no futuro. Para isso, é necessário ter um lugar sólido do qual partir. E é esse lugar que vem sendo retirado.”

Demissão não define capacidade

O que costuma ficar após uma demissão é uma série de dúvidas não respondidas, aponta a professora de psicologia do trabalho na PUC-SP Renata Paparelli. A principal é “o que eu fiz para ser demitido?”. A perguntas como essa, seguem-se sentimentos de culpa, derrota, impotência, raiva, desamparo e até a sensação de ter sido traído.

“É muito comum que as empresas, para engajar os trabalhadores, fortaleçam a ideia de que são uma família, de que você é muito querido e admirado”, explica a psicóloga. Porém, esse feitiço se desfaz como num passe de mágica quando você é desligado da empresa — eufemismo, aliás, muito apreciado por gestores. “Aí a demissão é muito mais dramática, porque você é demitido por sua própria família.”

A professora também ressalta a vergonha que costuma restar como resultado de uma demissão. Ela conta que já atendeu casos de colaboradores que, afastados do trabalho, seguiam todos os dias colocando seus ternos e saindo de casa num mesmo horário, para que os vizinhos não desconfiassem que estavam desempregados.

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O que ajuda a explicar esse sentimento é o fato de o desemprego vir acompanhado de uma série de preconceitos, especialmente em relação ao homem, que ainda é colocado num papel de provedor da família. Trata-se de um estigma que perdura ao longo da história. De acordo com o psicólogo do trabalho Antonio José de Carvalho, alguns séculos atrás, o homem que não trabalhava era visto como se tivesse uma deficiência psicológica.

Também é importante lembrar que demissão não define a capacidade de ninguém, assegura Carvalho. Prova disso, segundo ele, é que é raro encontrar justiça no setor privado. Em meio a um corte coletivo, gestores costumam tomar decisões rápidas e não muito bem pensadas, que pouco têm a ver com a qualidade do trabalho.

“O brasileiro, de modo geral, ainda acha que estar empregado numa CLT é garantia, quando na verdade não é. Essa visão está acabando aos poucos”, afirma o psicólogo, autor do livro “Síndrome de Burnout: uma ameaça invisível no trabalho” (Interciência, 2023). “Cada vez mais vemos o pessoal trabalhando de forma autônoma, PJ, e a sensação de insegurança, ansiedade, até desespero, é perfeitamente compreensível.”

Cada vez mais vemos o pessoal trabalhando de forma autônoma, PJ, e a sensação de insegurança, ansiedade, até desespero, é perfeitamente compreensível

Além das preocupações financeiras, Carvalho ressalta o impacto para a autoestima e a identidade profissional. “A pessoa começa a se questionar, porque, às vezes, não tem um feedback da empresa.” Nesse momento, os sintomas mais comuns são o estresse e a ansiedade, gerados pela incerteza quanto ao futuro e a um estado constante de preocupação, além da tristeza que pode levar à depressão, diz o especialista.

Paparelli lembra que uma demissão também pode acontecer ao final de um longo processo de desgaste, exploração e adoecimento do colaborador. “Um motivo muito comum é o fato da pessoa não conseguir mais oferecer o desempenho que a empresa exige”, afirma a psicóloga. Nesses casos, ela diz que a demissão acontece como uma espécie de descarte. “É uma sensação muito horrível de traição, de que o mundo virou de ponta-cabeça.”

Desemprego autofictício

J. foi desligada numa segunda-feira em que, nas suas próprias palavras, “o patrão ficou maluco”. Só que, diferente daquelas propagandas de supermercados e lojas de departamento, não foram os preços que caíram, e sim 20% dos funcionários da empresa. Ela foi só mais uma das vítimas desse corte coletivo.

“Julgo importante dizer que daqui a umas semanas, ou dentro de alguns meses, tudo isso me causará uma tremenda depressão, e as noites sem dormir e as tardes sem ter o que fazer me causarão uma lesão emocional por esforço repetitivo, o de pensar obssessivamente ‘e agora?'”, descreve ao lembrar da experiência.

J. é a protagonista do romance “Manual da Demissão” (Record, 2018), da escritora e agente literária Julia Wähmann. Ao contrário do que sugere o título, a obra não vai te guiar pelos melhores caminhos a seguir quando você é demitido. O livro na verdade acompanha a personagem enquanto ela se arrasta pelos trâmites legais pós-desligamento, pela falta de perspectivas e o fantasma da depressão, enquanto colegas também passam por experiências semelhantes.

É uma sensação muito horrível de traição, de que o mundo virou de ponta-cabeça

A história reflete muito do que a autora viveu após ser vítima de uma demissão em massa na editora onde trabalhava em 2015. “Embora já tivessem sinais no ar, foi inesperado. Por ingenuidade, a gente tende a achar que não vai chegar às últimas consequências”, conta a autora. O romance é resultado dos pequenos textos que foi escrevendo enquanto enfrentava as dificuldades típicas do período. “Entrei nessa lógica de rir para não chorar, que é um pouco a tônica do livro.”

“Senti um certo desespero, de só ver gente saindo de todos os lugares que eu poderia ocupar”, lembra Wähmann, em referência à crise no mercado editorial. Para ela, a escrita do livro foi também uma forma de romper a paralisia. “Entrou para preencher esse buraco, mostrar que estava fazendo alguma coisa.”

Uma certa tristeza

Dez anos depois da demissão, Wähmann está muito bem reposicionada no mercado, atuando em uma agência literária. Também continua escrevendo — seu lançamento mais recente é o livro “Triste Cuíca” (mapa lab, 2024). Porém, ainda lembra da experiência da demissão com uma certa tristeza, o que bate de frente com o humor e leveza que muita gente encontra no livro.

“Lembro de sentir até uma certa irritação quando alguém falava que o livro é muito leve. Eu dizia: não é, tem uma angústia, uma tristeza ali. Mas acho que o humor se sobrepõe ao que ele tem de mais duro. Permite que a gente leia sem se deprimir.”

Logo no início do livro, a personagem do livro de Wähmann encontra conforto na convivência com dois colegas que também foram dispensados. Mas o sentimento de solidão se intensifica quando ambos fazem as malas e se mudam para Portugal em busca de oportunidades.

Isso também vai de encontro a uma recomendação da psicóloga Renata Paparelli sobre evitar a noção individualista do processo de demissão. Segundo ela, se abrir e compartilhar essa vivência, por mais negativa que seja, é uma forma de ter um posicionamento mais crítico e menos culpabilizante. Outra ação importante é recorrer a redes de amigos e familiares, dentro das quais é mais fácil se restabelecer. “É importante sair do isolamento, acessar suas redes de cuidado e também pessoas que vivem situações parecidas, que possam te ajudar a questionar essa lógica.”

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