Como as desigualdades afetam o Brasil?
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“Da beca pra toga”, de Kika Carvalho. A pintura ilustra a capa de "O impacto das cotas" (Autêntica, 2024), de Luiz Augusto Campos e Márcia Lima

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Conversas

Luiz Augusto Campos: "Precisamos avançar em políticas de ação afirmativa no mercado de trabalho"

Para sociólogo, cotas no ensino superior foram eficazes na busca por equalizar oportunidades sociais e modelo deveria ser replicado na educação básica privada e em empresas

Isabelle Moreira Lima 27 de Abril de 2025

Luiz Augusto Campos: “Precisamos avançar em políticas de ação afirmativa no mercado de trabalho”

Isabelle Moreira Lima 27 de Abril de 2025
“Da beca pra toga”, de Kika Carvalho. A pintura ilustra a capa de "O impacto das cotas" (Autêntica, 2024), de Luiz Augusto Campos e Márcia Lima

Para sociólogo, cotas no ensino superior foram eficazes na busca por equalizar oportunidades sociais e modelo deveria ser replicado na educação básica privada e em empresas

Com duas décadas de história, as cotas raciais no ensino superior mudaram a universidade pública no Brasil para sempre. Agora, políticas de ação afirmativa semelhantes são fundamentais para reduzir desigualdades em diferentes esferas da sociedade: da educação básica privada, povoada por alunos brancos da elite, ao mercado de trabalho. Neste último caso, com a ascensão da direita em diferentes partes do globo e a reformulação de programas de diversidade dentro das grandes empresas, leis parecem ser o único caminho para reduzir o abismo da desigualdade brasileira.

“Do mesmo jeito que falamos das escolas privadas, temos que falar de grandes empresas que movimentam o PIB, que fazem grandes contratações; tem de ter compromissos de equidade. Não tenho a mínima vergonha de ser estatista. Na minha opinião, isso não vem das iniciativas pontuais e voluntaristas dessas empresas, mas da lei”, afirma Luiz Augusto Campos, professor de sociologia e ciência política no IESP-UERJ (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro) em entrevista a Gama.

Coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, o Gemaa, ele lança em maio o livro “O Impacto das Cotas: Duas décadas de ação afirmativa no ensino superior brasileiro”, pela editora Autêntica, em coautoria com Márcia Lima. “Há uma lista de impactos, sendo o primeiro uma quebra — ainda que mínima — na reprodução da condição de classe. Você tem efeitos disso também no próprio funcionamento da universidade pública”, afirma.

 Divulgação

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A má notícia é que, na sua visão, o valor do diploma universitário caiu: “À medida que você expande o número de diplomados, ele perde o poder de distinção. Quando a ação afirmativa dá, a jovens negros, oportunidades de acesso a um diploma, ele não terá o mesmo valor do passado”, explica.

Campos entende que as desigualdades de raça e classe não podem ser separadas, pois o racismo tem como principal efeito o isolamento de pessoas pela identidade racial na base da pirâmide de classes. Para reduzir ou acabar com essas diferenças, ele pega emprestada a ideia do economista e sociólogo Marcelo Medeiros, que consiste em transformar todas as políticas em ações para a redução da desigualdade. Soma ainda uma ideia ao mesmo tempo “fácil”, mas ousada: as políticas tributárias progressivas, como ele explica na entrevista que você lê a seguir.

A maior expressão do racismo no Brasil é o fato de que pessoas negras são impedidas de obter maior renda ou ascender na pirâmide social porque são negras

  • G |Quando falamos em desigualdade, é comum que se oponha raça e classe, algo que você considera falso. Pode explicar essa ideia?

    Luiz Augusto Campos |

    Quando pensamos em desigualdades, sempre pensamos em classe, mas nos processos de reprodução das desigualdades há a intervenção das discriminações e, dentre elas, o racismo. O principal efeito dele é isolar pessoas pela pertença racial, em determinadas posições no mercado de trabalho, na estrutura de classe, na pirâmide social. Durante muito tempo, a sociologia brasileira pensou desse jeito: o problema no Brasil é classe ou raça. Mas essa divisão não faz muito sentido. A maior expressão do racismo no Brasil é o fato de que pessoas negras são impedidas de obter maior renda ou ascender na pirâmide social porque são negras.

  • G |Era uma questão na sociologia, você mencionou. E hoje? Ao menos na academia já foi superada?

    LAC |

    De modo geral, essa premissa já está razoavelmente disseminada na sociologia. O que ainda não está bem resolvido é como essas desigualdades efetivamente se estruturam. Então, o que se deve à herança do passado? O que se deve ao presente, qual é o papel da discriminação racial, como é que ela opera? Essas perguntas ainda estão para ser respondidas.

  • G |Estamos em sexto lugar no ranking do índice Gini, que mede desigualdade, no relatório publicado no ano passado pela PNUD, da ONU. O que é preciso fazer para mudar essa posição?

    LAC |

    O Marcelo Medeiros, que é sociólogo e economista, tem uma frase que eu gosto muito: não existe uma política pública que vai reduzir as desigualdades. O ponto é como converter todas as políticas públicas em operação no Brasil em políticas de redução das desigualdades. O Brasil é o paraíso — ou o inferno — das desigualdades. Não só muito extremas e profundas, mas muito complexas, no sentido de que elas se interseccionam de modos muito complicados. Há a desigualdade racial na estratificação de renda, a desigualdade de gênero, que também se intersecciona com a racial. E há a regional. Então como é que você faz com isso tudo? A partir de pesquisas de economistas mais recentes, quando você tem esse cenário de desigualdades muito imbricadas, talvez a solução “mais fácil” seja investir em políticas tributárias progressivas, que é o que parece que o governo vem tentando fazer, ainda que de forma bastante modesta, mas que é bastante ousada se pensarmos na nossa história de políticas tributárias bastante regressivas.

  • G |Como a população negra pode ter as mesmas oportunidades socioeconômicas que a branca no Brasil hoje? Quais políticas públicas dos últimos anos você considera exemplares?

    LAC |

    Na transição de classe, há gargalos fundamentais, sendo o primeiro o acesso ao ensino superior, que historicamente se refletia no mercado de trabalho e na estruturação das nossas desigualdades. O diploma era o que dava grande chance de ascensão social e o acesso a ele era injusto. Os mais renomados eram os das universidades públicas, até hoje gratuitas, mantidas com o dinheiro da maior parte dos contribuintes pobres e negros. Historicamente, no entanto, beneficiavam uma elite e uma classe média branca que “recebia um prêmio” quando passava no vestibular. Nesse sentido, as políticas que mais equalizaram oportunidades raciais no Brasil foram as de ação afirmativa no ensino superior. Agora, a gente vive hoje dois processos que reduzem os efeitos dessas políticas. Um deles é a deflação do valor do diploma, que é menor do que já foi no passado: à medida que você expande o número de diplomados, ele perde o poder de distinção. Quando a ação afirmativa dá, a jovens negros, oportunidades de acesso a um diploma, ele não terá o mesmo valor do passado. E há a discussão sobre ações afirmativas para o mercado de trabalho. Como garantir que a inserção em espaços de poder e prestígio no mercado de trabalho se dê de forma minimamente equitativa? Nesse aspecto, outros países como EUA, África do Sul e Índia têm uma experiência melhor que nós.

Por que não podemos pensar, como outros países já pensaram, em cotas nas escolas?

  • G |Mas e antes mesmo do diploma, no ensino infantil, fundamental e médio, como reverter essa situação? E o que reverter essa situação significaria também para a desigualdade social?

    LAC |

    O ponto é essa estruturação do nosso sistema educacional, que é pensada desde o início para promover injustiças. Tradicionalmente, tem uma troca: a família que pagou caro por um ensino privado recebe, no final da trajetória, o prêmio de entrar numa universidade pública gratuita e de qualidade; enquanto aqueles e aquelas que tiveram acesso apenas ao ensino público vão ser obrigados a pagar um ensino superior de menor prestígio e qualidade. A ação afirmativa mitiga um pouco isso no ensino superior, mas a gente fala muito pouco do ensino básico. Nele, 80% é público e, em grande maioria, negro. Mas e os 20% do privado? As escolas que vão formar os filhos da elite tem espaços 100%, 90% brancos. Lá, a discussão de raça não emerge porque não tem a mínima convivência racial. O Brasil nunca fez esforço para dessegregar a sua educação básica privada, enquanto escolas privadas na África do Sul e nos EUA têm regras claras sobre matrículas. Quais são as consequências disso em termos de estruturação das desigualdades, de formação dessas elites? E quais são as consequências disso em termos de percepção das desigualdades? Um filho ou uma filha da elite pode passar toda a sua educação básica sem conviver com nenhum colega negro como um igual, apenas como subalternos. Por que não podemos pensar, como outros países já pensaram, em cotas nas escolas? E também políticas de bolsa mais amplas do que as que existem, que são muito pontuais e que quase sempre querem garantir que aquela escola tem ali 1%, 2%, 5% de alunos negros para propaganda.

  • G |Vê algo nessa direção?

    LAC |

    Há apenas a obrigação das escolas de terem um número de bolsas, inclusive para atender estudantes que são filhos de professores. Você tem algumas ONGs e alguns fundos que estão financiando isso, mas está longe de ser uma política pública vultuosa. Vemos uma multiplicação de reportagens sobre casos de suicídio, alunos relatando racismo… O modo como se desenha hoje, de pegar um aluno de periferia e dar uma bolsa para um colégio altamente competitivo, é uma medida pontual com efeitos não intencionais piores do que uma política pública mais ampla que determinasse 20% de estudantes negros em colégios privados. Não me parece também que esse percentual de 20% vá abalar as contas desses colégios ou vá produzir um cenário muito complicado.
    Existe uma naturalização muito forte da elite da classe média de que “é isso mesmo”, você quer o colégio que dê a melhor condição de competição para o seu filho desde a creche, seu filho de cinco anos estuda inglês. É um investimento vultuoso na reprodução das desigualdades. Essa sanha competitiva pela reprodução das desigualdades no Brasil precisa ser contida pelo Estado. Pode ser contida com uma política tributária, com uma política de ação afirmativa, com inúmeras políticas, mas precisa ser contestada.

  • G |Você coordena o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa na UERJ. Qual a avaliação que faz das ações afirmativas no Brasil hoje?

    LAC |

    O impacto das cotas raciais e socioeconômicas no Brasil é francamente positivo. Cerca de 70% dos estudos da área apresentam mais resultados positivos do que negativos. Há uma lista de impactos, sendo o primeiro uma quebra (ainda que mínima) na reprodução da condição de classe. Você tem efeitos disso também no próprio funcionamento da universidade pública.
    No passado, houve um ministro da Educação que disse que a universidade pública no Brasil serve para reproduzir as elites. A grita foi muito grande na época, mas era verdade. Um dos efeitos das cotas é que a universidade passa a operar minimamente para toda a população. Um outro efeito indireto mas simbólico é o fato de que nunca se discutiu tanto desigualdades no Brasil, tampouco as raciais. Há 20 anos, termos racializados como preto, pardo, negro eram malditos, tabus. Hoje, não há mesa de bar incólume em relação a esse debate.

  • G |Acha que o impacto das cotas foi reconhecido?

    LAC |

    Boa parte dos jornalões, que no início dos anos 2000 batiam nas cotas, mudaram suas posições: O Globo escreveu editorial indicando mudar de posição depois de mais de 20 em que foi contrário; e Folha de S.Paulo não se retratou, mas publica muitas reportagem sobre o tema e diversificou redação e colaboradores. Uma certa direita moderada que anda apagada também mudou de posição em relação a isso. Agora, esse reconhecimento também se deve em parte à deflação da importância do ensino público superior. Uma certa elite não precisa mais temer tanto os efeitos dessas cotas, se os seus filhos não mais precisam frequentar o ensino superior público para reproduzir o seu estatuto de classe. Ao mesmo tempo, o potencial de redução das desigualdades diminuiu muito no tempo. Temos o que comemorar, mas não é muito.

Temos que discutir cotas no mercado de trabalho a partir de leis estatais

  • G |Isso pode ter a ver com a ideia de que o empreendedorismo vale mais a pena?

    LAC |

    Certamente tem, mas eu não sei o que é a causa e o que é o efeito. Quando preciso contratar um profissional de TI, no passado era assim: qual é o seu diploma? Hoje em dia, ou é experiência prévia ou um teste momentâneo, uma certificação, o que mostra uma mudança da estrutura do mercado de trabalho. Quando você cria a possibilidade de pejotização indeterminada, você também dificulta esses processos de diplomação, porque você não é mais contratado como pessoa física que tem um diploma, mas como uma empresa que terceiriza o serviço, que garante que vai entregar aquele resultado, independentemente da modalidade de contratação. Mas tem mudanças um pouco mais estruturais, de lei, de norma, de estrutura do mercado de trabalho, de plataformas, que são uma coisa maluca, e também da própria economia.

  • G |O que falta para que o Brasil se veja como um país bem sucedido nas políticas de ações afirmativas?

    LAC |

    Precisamos avançar em políticas de ação afirmativa no mercado de trabalho. Do mesmo jeito que falamos das escolas privadas, temos que falar de grandes empresas que movimentam o PIB, que fazem grandes contratações; tem de ter compromissos de equidade. Não tenho a mínima vergonha de ser estatista; na minha opinião, isso não vem das iniciativas pontuais e voluntaristas dessas empresas, mas da lei. As pessoas falam assim: mas como uma lei vai regular uma empresa privada? É isso que o Estado faz, basicamente. Temos que discutir cotas no mercado de trabalho a partir de leis estatais.

  • G |Como o crescimento da direita em todo o mundo pode afetar as nossas desigualdades? Fica mais difícil propor e implementar políticas sociais que busquem mitigar esse cenário?

    LAC |

    Essa extrema direita emerge e se fortalece contra essas conquistas. Essas conquistas vêm acompanhadas de muito conflito. É inocente acreditar que vai reduzir desigualdades e as pessoas vão dizer “estamos em um mundo mais justo, que legal”. Não, reduzir desigualdade é sempre tirar de alguns grupos e passar para outros. A energia que o Trump tem dedicado à perseguição das políticas de ação afirmativa em empresas e universidades, como pesquisador da área, me surpreende. Eu proponho inverter um pouco a causa e efeito da sua pergunta: essa extrema direita vem também como reação desses pequeníssimos avanços em termos de redução das desigualdades complexas de gênero, de raça, de classe também.

  • G |E como conter isso?

    LAC |

    Há algumas pistas. Primeiro, os avanços conquistados, embora modestos, não retroagem, como a sociedade brasileira que discute raça hoje cotidianamente. Grande parte dessa sociedade gostaria de não estar discutindo isso. Agora, esse tema volta para a cartola? Eu acho difícil. Outro tema: gênero. Até as novelas da Globo estão discutindo gênero. A sociedade sobre a qual a extrema direita avança não é a mesma que a extrema direita sonha em reconstruir. Tem um caldo para a gente pensar em como a esquerda, o campo progressista pode reagir e conter a extrema direita, mas de fato o momento não é para otimismos.

  • G |O fim das políticas de diversidade em muitas empresas já é visto como um efeito dessa virada política no cenário mundial. Isso aumenta as desigualdades por aqui também. Vê saída em âmbito nacional?

    LAC |

    Um dos ensinamentos, quando a gente olha para as desigualdades de modo geral no mundo, é que a tendência natural é que elas aumentem. As desigualdades caem por algum movimento que se faça contra elas. Agora, se a gente deixar o capitalismo solto, a desigualdade aumenta. O governo Trump não só não incentiva as ações, mas está perseguindo empresas que tenham ações afirmativas. Isso também se repete no Brasil. Esse mundo corporativo multinacional, enquanto a gente conversa, está desmontando políticas de equidade que, no Brasil, eram bem modestas. A empresa que topa discutir e adotar políticas para reduzir desigualdades vai ter que enfrentar problemas que não tinha antes. Se ela encontrar um cenário propício a abandonar políticas de ação afirmativa, ela vai abandoná-las.

Produto

  • O Impacto das Cotas
  • Luiz Augusto Campos e Márcia Lima
  • Autêntica
  • 272 páginas

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Esse conteúdo é parte de uma série produzido com apoio da Fundação Tide Setubal, uma instituição que fomenta iniciativas que promovem a justiça social e o desenvolvimento sustentável de periferias urbanas e contribuem para o enfrentamento das desigualdades socioespaciais das grandes cidades, em articulação com diversos agentes da sociedade civil, de instituições de pesquisa, do Estado e do mercado. Para saber mais, visite o site.

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