Entrevista com presidente do Esporte Clube Bahia: 'O momento agora é de assumir posturas' — Gama Revista
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Veridiana Scarpelli

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Conversas

Guilherme Bellintani: 'O momento agora é de assumir posturas'

Para Guilherme Bellintani, presidente do Bahia, considerado internacionalmente o clube de futebol mais progressista do Brasil, o futebol fica reduzido sem o pensamento político

Isabelle Moreira Lima 04 de Outubro de 2020

Guilherme Bellintani: ‘O momento agora é de assumir posturas’

Isabelle Moreira Lima 04 de Outubro de 2020
Veridiana Scarpelli

Para Guilherme Bellintani, presidente do Bahia, considerado internacionalmente o clube de futebol mais progressista do Brasil, o futebol fica reduzido sem o pensamento político

O site do Esporte Clube Bahia informa que seu presidente, Guilherme Bellintani é casado, pai de “quatro pequenos tricolores”; empresário; formado em direito; mestre em educação; doutor em Desenvolvimento Urbano; fundador de uma editora e da Faculdade Baiana de Direito; além de membro atuante na democratização do time e de ter sido eleito com o voto de 81,45% dos sócios tricolores.

A página do clube não informa, mas Bellintani também tem um passado na política — e quem sabe um futuro? — nas secretarias de Educação, Cultura e Urbanismo da Prefeitura de Salvador. Quase disputou a prefeitura, mas resolveu ficar no Bahia, que, segundo ele é uma paixão maior que o futebol.

Aos 42 anos, Bellintani acredita que política e esporte devem andar juntos. Foi apontado como o principal agente transformador do Bahia para alcançar o título de time mais progressista brasileiro, segundo avaliação do jornal inglês The Guardian, que destacou as diversas campanhas em que o clube chama atenção, em campo, para questões sociais e políticas quentes.

Pelo reconhecimento das terras indígenas, por exemplo, o clube usou o slogan “Não tem jogo sem demarcação” e estampou as camisas dos jogadores com nomes de indígenas. Contra o machismo, o racismo e a homofobia, usou a hashtag #LevanteABandeira e inseriu o arco-íris nas bandeiras de escanteio. Outro exemplo foi a campanha por reconhecimento de paternidade, que, em parceria com a Defensoria Pública baiana, o time ofereceu exames de DNA gratuitos por um mês. “Ao mesmo tempo, conseguiram reduzir o preço dos ingressos, aumentar o faturamento e pagar parte da dívida que assombrava o clube, além de melhorar os resultados em campo”, publicou o jornal.

Esse último item, no entanto, passou a assombrar Bellintani, com o Bahia nas últimas posições do atual Campeonato Brasileiro. Ele foi reticente em conceder a entrevista, meio “sem clima” e em trânsito entre Salvador e Rio de Janeiro para um jogo contra o Botafogo. O Bahia acabou vencendo a partida, por 2 a 1, e na própria entrevista ficou claro o porquê da resistência: “Quando o Bahia perde uma sequência de jogos e está numa fase ruim, chegam a colocar a culpa nas ações afirmativas, como se as pessoas que cuidassem do time fossem as mesmas que cuidam da discussão, como se disséssemos ‘vamos treinar menos o time para fazer ações mais afirmativas’. É um discurso covarde”.

É meio ridículo as confederações de vários esportes quererem punir atletas por se manifestarem politicamente

  • G |O Guardian publicou uma reportagem cujo título era “Como o Bahia se tornou o clube de futebol mais progressista do Brasil”. Eu devolvo a pergunta. Como isso aconteceu?

    Guilherme Bellintani |

    O futebol não se acostumou a tratar de temas que vão além das quatro linhas, do jogo em si. O que aparentemente soa como notícia boa esconde um grande vazio. No caso do Bahia, o time começou a trazer discussões sobre temas sociais e teve destaque nisso, que foi fruto dessa pobreza de reflexões que o futebol apresenta de forma muito clara.

  • G |E por que é importante um time se posicionar?

    GB |

    Porque o futebol tem um destaque social absurdo, é um veículo de comunicação de uma potência enorme, talvez seja o veículo de maior conexão social que existe no Brasil, mas que sempre funcionou como se fosse uma grande bolha, como se o seu objeto fosse exclusivamente o esporte. O futebol do Brasil tem esse destaque globalmente, mas tem uma origem muita diferente dos grandes centros esportivos do mundo, se origina na pobreza, na lacuna social. Quando é retratado pela mídia, se restringe àquelas questões específicas — se foi pênalti, se o treinador fica ou sai, se time está bem preparado. Quando passa para temas que vão além disso, se afasta completamente. O bom seria se essas coisas fossem tratadas como normalidade ou corriqueiras no mundo do futebol, mas não é esse o caso.

  • G |Você tem apoio dos torcedores nessa causa? Eles entendem a importância de discutir temas sociais?

    GB |

    Há três grupos de torcedores. Os que entendem a importância e a discussão das causas que vão além do futebol. Aqueles que não apoiam completamente, mas aceitam. E aqueles que são resistentes e se posicionam de forma contrária. Quando o time está bem em campo, o grupo dos que não admiram mas aceitam termina pendendo para o lado do sim. E quando o time tem resultados ruins, os grupos que estão no meio, que não são grandes admiradores dessa política, mas aceita quando o time está bem, quando o time está mal se volta contra ela. É uma grande balança.

  • G |Como na política, em que os indecisos ali no meio pendem para um lado ou para o outro a depender de determinado contexto.

    GB |

    Mas, na política, os indecisos vão para um lado ou para o outro a depender dos resultados de políticas públicas, como por exemplo do desenvolvimento econômico, níveis de emprego. No futebol, quando o Bahia perde uma sequência de jogos e está numa fase ruim, chegam a colocar a culpa nas ações afirmativas, nas ações sociais, como se a gente se preocupasse demais com isso e pouco com o futebol. E como se as pessoas que cuidassem do time fossem as mesmas que cuidam da discussão, como se disséssemos “vamos treinar menos o time para fazer ações mais afirmativas”. É um discurso covarde. É melhor dizer que não concorda com as ações do que fazer esse tipo de conexão.

  • G |E como os jogadores se sentem com o posicionamento do clube?

    GB |

    Tem um misto. A gente nunca teve posicionamentos contrários. Tem um grupo que é mais neutro, não se manifesta muito e não quer participar, e há outros mais envolvidos. Depende da percepção política do jogador, de como ele se vê como ator social. E não estou falando necessariamente de jogador de direita ou de esquerda, como se um fosse mais envolvido que outro. Na última eleição para presidente, alguns dos jogadores batiam continência em apoio à candidatura do presidente Bolsonaro. E muita gente perguntava se não íamos puni-los por isso. E eu falava que de jeito nenhum, aquilo era expressão de uma opinião política individual e necessária, é bom que aconteça. É meio ridículo as confederações de vários esportes quererem punir atletas por se manifestarem politicamente. Isso tem que ser protegido tanto para jogadores que defendem causas sociais ligadas à esquerda como aqueles que defendem candidaturas ligadas à direita.

  • G |Mas estamos vendo um caso desse no vôlei agora.

    GB |

    Esse é um caso muito claro de uma coisa que, para mim, não faz sentido nenhum ter qualquer punição.

  • G |Qual a importância das marcas, dos patrocinadores, na discussão e apoio de diferentes causas, como orientação sexual dos atletas e o racismo?

    GB |

    Já passou o tempo de uma visão antiga de marca que tinha medo de posicionamento, como se aquilo fosse afastar os seus consumidores e admiradores. O momento agora é de se afirmar, de assumir posturas. Claro, sempre respeitando a liberdade de pensamento, não é que você queira impor sua forma de pensar. Mas dizer o que pensa é passar uma mensagem para o outro. Se você pensa diferente, se manifeste também. As marcas que estão tendo mais destaque fazem isso com muita sabedoria.

  • G |Os jogadores que não se posicionam têm medo de perder patrocínio?

    GB |

    Não. O jogador do futebol brasileiro é uma expressão da sociedade brasileira. A imagem é de algo de glamour, mas mais de 90% deles ganham apenas um salário mínimo. Os que não se manifestam não se atentaram para isso, não se vêem como personagem importante da sociedade brasileira, não é simplesmente um receio.

  • G |Quando explodiu o movimento Black Lives Matter muita gente questionou por que isso não acontecia do Brasil. Acha que o esporte brasileiro é pouco engajado?

    GB |

    A sociedade brasileira é pouco engajada. Tem melhorado, mas infelizmente esse processo de ampliação vem se dando por uma polarização absoluta. Falo infelizmente porque a gente precisa de equilíbrio para entender que a vida não é preto ou branco, mas uma grande mistura com espaço para vertentes muito diferentes. O apoia ou cancela é uma análise superficial dos fatos sociais. Essa futebolização dos fatos sociais tem gerado uma construção de torcidas na sociedade brasileira. Ou você torce para o azul ou para o vermelho. Se pensa o colorido, não tem espaço.

  • G |A vida agora imita o esporte?

    GB |

    E o esporte na pior esfera dele, no radicalismo da torcida, o clubismo social. A gente usa muito essa expressão do clubismo para dizer como o torcedor, na hora que o clube perde, perde até a razão. Esse clubismo das causas sociais está muito latente. Por um lado, é uma resposta também ao extremismo do outro. A construção de uma sociedade mais equilibrada é muito complicada.

  • G |O que o esporte ganha ao ser mais político?

    GB |

    Se não é político, fica reduzido. Quando falamos de esporte político não é que se envolva em todo tipo de assunto. Mas é preciso se discutir coisas dentro do próprio esporte. Uma coisa muito cruel do futebol brasileiro: a formação do atleta. Para cada jogador profissional, a gente tem outros cinco em times de base, com idade entre 12 e 19 anos, sendo preparados para jogar. Mas desses cinco que estão preparados para jogar, menos de um vai jogar futebol. E os outros 4,8 viveram esperança de ser profissional e muitas vezes estudaram menos, se preparam apenas para essa carreira e colocaram toda expectativa ali. Quando não virou, vai para um subemprego. Às vezes ele não tem nem o nível fundamental completo. Ninguém avisou a ele que 95% dos jogadores que estão no futebol de base não viram jogadores de futebol profissional. Ao mesmo tempo que o futebol ajuda na inclusão, também aprofunda as desigualdades.

  • G |Como tiveram a ideia de estampar a camiseta dos jogadores de manchas pretas?

    GB |

    O modelo de gestão que criamos no Bahia é muito horizontalizado. Tirei os níveis de direção e hoje não temos diretor de marketing. Com isso, o processo de criação ganhou outra dimensão porque estagiários, gerentes e coordenadores dão ideias que ficam em nível equivalente. Eu nem sei quem deu origem às manchas da camisa, surgiu de maneira natural. Nas reuniões, no grupo de WhatsApp, cada um vai dando ideias loucas e no final é quase como se fosse uma agência de comunicação.

  • G |Mano Menezes é um dos técnicos mais respeitados do Brasil. Já dirigiu seleção brasileira e hoje está no comando do Bahia. Sua contratação indica uma mudança no patamar do time e de outros nordestinos no cenário nacional?

    GB |

    A ausência do Nordeste do centro do futebol brasileiro é responsabilidade do próprio Nordeste. A gente viveu por muito tempo as oligarquias do futebol e reforçou o modelo. Como os mais excluídos da mídia e do processo econômico do esporte, era nosso dever fazer essa transformação antes. Por outro lado, há ainda uma leitura de que o desequilíbrio tem responsabilidade na mídia esportiva brasileira. A forma de cobrir o futebol ainda é muito desigual. Curiosamente, quando se falou nos clubes transmitirem seus próprios jogos, alguns jornalistas disseram que seria uma cobertura parcial, clubista. Mas já não existe imparcialidade na cobertura. Isso se expressa na forma de narrar, de comentar, nos gestos e nas atitudes dos árbitros e dos torcedores. Quando se narra Bahia e Corinthians, não é o Bahia que ganha, é o Corinthians que perde, a manchete diz isso. Quem é nordestino e torce para os times do Nordeste assiste à cobertura de jogos com profundo rancor. O espaço que se dá para times no Nordeste, mesmo estando a frente na tabela, é muito menor que para outros times. É questão de torcida? O Botafogo não tem torcida maior que o Bahia. Há um histórico de desigualdade da cobertura.

  • G |No que diz respeito aos direitos de transmissão, como você encara a dificuldade dos clubes de negociar entre eles?

    GB |

    É como a dificuldade de toda a sociedade brasileira — e do mundo. A gente fala muito dos clubes, mas os organismos são assim. É a expressão do movimento econômico, cada um lutando para ficar melhor. Há também uma carga histórica, que é a desigualdade enorme entre clubes, sustentada especialmente pela Globo, que, por anos, estimulou que Corinthians e Flamengo ganhassem mais do que outros clubes. E a medida que ganham mais fica difícil para eles, num processo posterior, abrir mão de sua receita para beneficiar outros clubes. Não tenho ilusão de que eles vão falar aceito ganhar menos para o Bahia ganhar mais. O que tenho de proposta é que o crescimento do bolo seja repartido de forma igualitária. Se ficar insistindo em socialismo voluntário dos grandes clubes brasileiros, não vai acontecer. Nesse aspecto sou mais realista.

  • G |Há uma elitização em curso no futebol, com arenas cada vez mais inacessíveis?

    GB |

    Não é ruim a forma como está hoje a circunstância das arenas. Acho bom que o torcedor tenha mais conforto ao ir no estádio. O grande problema, e isso é culpa dos clubes também, é seguir a lógica de gestão da Europa e dos EUA. O Bahia mudou muito sua forma de ver o torcedor a partir do estádio. A gente tinha 14 mil sócios há três anos quando entrei e chegamos a 45 mil sócios no pré-pandemia, multiplicamos por três em dois anos. Estabelecemos o preço com base no que o torcedor pode pagar, e não no que a gente quer que ele pague. Fizemos o plano “bermuda e camiseta” para quem ganha até um salário mínimo e meio, em que o torcedor paga R$ 49 por mês e tem acesso a todos os jogos, vota para presidente, é sócio como qualquer outro, mas paga 70% a menos ao comprovar a renda. Foi um movimento de antigourmetização. Há um preconceito em se achar que para ser popular não se pode ter conforto, porque já que é o povo que vai entrar ali, o cara de menor poder aquisitivo não precisa ter cadeira boa, não precisa ter banheiro bom. É um preconceito absurdo.

  • G |Sobre a volta do futebol em meio a uma pandemia, o quão apropriado é realizar o campeonato brasileiro durante o surto do covid?

    GB |

    O campeonato retomou na hora certa. Quando estabelecemos protocolos e os jogadores voltaram a treinar e a se dedicar à profissão, eles ficaram mais disciplinados que antes. Antes estavam muito soltos. Os índices dentro do futebol são menores do que na sociedade. Além disso passamos mais de três meses com jogadores profissionais praticamente sem se movimentar, sem levantar peso. Isso foi muito impactante para esses atletas de alto rendimento. Agora, sou contrário a, em nome de um projeto econômico, colocar vidas em risco. O público vai ter que vir na hora certa, sem pressa.

  • G |Você deixou a disputa pela Prefeitura de Salvador para exercer o mandato de presidente do Bahia. Foi uma escolha difícil? Pode voltar à política?

    GB |

    Estava pontuando bem nas pesquisas, mesmo sem partido, o que mostra que tem um reflexo social do meu trabalho. A escolha foi difícil, os dois projetos me seduzem muito, mas entendi que precisava concluir um processo dentro do Bahia. Não seria legal largar no meio e voltar para a gestão pública. Tenho só 42 anos, vida grande pela frente e outras oportunidades vão surgir. Não tem um caminho único para as coisas.

  • G |Você faria outra coisa que não trabalhar com futebol? É sua paixão?

    GB |

    O futebol nem é tanto minha paixão, minha paixão mesmo é o Bahia. Mas eu trabalharia sim com várias outras coisas. Talvez, no dia que sair do Bahia, siga no futebol. Mas estou longe de ser monotemático no trabalho.

  • G |E se vê em outro time?

    GB |

    Me vejo sim, profissionalmente não vejo problema nenhum. Desde que não seja grande rival do Bahia.

Colaborou Daniel Vila Nova