As mulheres que lutaram pela Independência
Novo livro de Antonia Pellegrino e Heloisa Starling recupera histórias de personalidades femininas decisivas para a declaração de 1822
Se hoje brigamos por mais paridade de gênero na ocupação de cargos públicos, imagine há 200 anos. Quer dizer, nem precisa imaginar nada: era proibido que mulheres reivindicassem participação política no Brasil entre o final do século 18 e o começo do 19. Ainda que o envolvimento político fosse ilegal, diversas mulheres empunharam armas, se engajaram no ativismo político, participaram do debate público e romperam as regras de sua época para sonhar e projetar um futuro independente para o país. É o que mostra “Independência do Brasil – As mulheres que estavam lá”, que acaba de ser lançado pela editora Bazar do Tempo.
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“É importante que a gente busque essas mulheres pioneiras, que estão em franco diálogo com as mulheres de hoje. Recuperar essas histórias é reverenciar nossas ancestrais, bebendo na fonte do que o feminismo negro prega”, afirma a roteirista Antonia Pellegrino, uma das autoras do livro, a Gama.
Na data que marca o bicentenário da Independência do Brasil, refletir sobre o atual contexto político à luz do que se viveu 200 anos atrás, a partir da perspectiva de gênero, se faz necessário, como afirma Pellegrino. “É um processo de reconhecimento, de respeito e de comemoração da existência dessas mulheres, para que a gente se inspire, ocupe nossos lugares, tenha força para seguir lutando, sobretudo para um projeto político para o nosso país, que hoje vive uma crise da democracia.” Dados do Fórum Econômico Mundial, trazidos pelo livro confirmam que, apesar das brasileiras serem a maioria da população do país, ocupam apenas 15% dos assentos na Assembléia Legislativa e 14,8% no Senado Federal. Isso coloca o Brasil na posição 108º (entre 155 países) no ranking de empoderamento político.
Recuperar essas histórias é reverenciar nossas ancestrais, bebendo na fonte do que o feminismo negro prega
Baseado no trabalho cuidadoso de Antonia Pellegrino e de Heloisa Starling, que perfilaram, ao lado de outras cinco historiadoras e escritoras, algumas das muitas mulheres decisivas nas lutas pela independência, Gama reúne cinco das muitas protagonistas femininas que existiram no período — e foram negligenciadas por um apagamento sexista. Como finaliza a introdução do livro que reúne os perfis: “Quem sabe, então, essa história também nos ajude a pensar sobre o povo que queremos ser. Afinal, a História não está escrita nas estrelas. Ainda temos algum tempo para reagir e fazer nossas escolhas. E escolhermos juntas o futuro”.
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Uma mulher na Inconfidência Mineira
Hipólita Jacinta Teixeira de Melo (1748-1828), filha do país das Minas
Nascida em Prados, pequeno município de Minas Gerais, Hipólita Jacinta era parte da elite colonial da capitania, e dispunha de um patrimônio respeitável. Difícil dizer o que a levou a participar da Conjuração Mineira, mas a educação fora dos padrões de sua época e o comportamento independente, além de assustarem pretendentes para o casamento, podem ter sido bons motivos para levá-la à luta.
Aos 33 anos, casou-se com Francisco Antônio de Oliveira Lopes, um membro ativo do grupo de Tiradentes. Sua casa, a Fazenda da Ponta do Morro, tornou-se ponto de encontro entre os heróis da Conjuração e outros descontentes com a situação do país. Os serões, como eram conhecidas as reuniões no espaço doméstico, formaram um terreno fértil e autônomo para o debate de ideias e a convivência política. “Só Hipólita foi capaz de transitar com desenvoltura em um grupo heterogêneo e exclusivamente masculino”, como afirma a historiadora Heloisa Staring. “E recusou-se a ficar confinada ao papel de esposa e mãe.”
Os serões abriram para ela, de diferentes maneiras, o front de sua atuação política. Enviou cartas e comunicados para seus companheiros de luta, na tentativa de ajudar na comunicação da revolução. E tudo indica que partiu dela a ordem de dar início ao levante militar, depois que os principais líderes do movimento foram presos. Por mais que a Conjuração Mineira tenha fracassado, Hipólita Jacinta, envolvida até o pescoço na política do período, manteve o posicionamento “intransigente, obstinado e corajoso, características que marcaram sua trajetória”, define Starling.
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Uma das primeiras republicanas, foi presa e torturada por seus ideais
Bárbara de Alencar (1760-1832), heroína do Crato
Filha de mãe indígena e pai português, Bárbara de Alencar é, desde o nascimento, descrita como uma sobrevivente. Aos 32 anos, conhece o naturalista Manuel de Arruda Câmara, que lhe ensina não apenas sobre botânica, como coisas mais perigosas à saúde da sociedade colonial: as ideias de Voltaire, Rousseau e Montesquieu. Em sua carta-testamento, datada de 1810, Câmara recomenda o título de heroína à Bárbara – sete anos antes da revolução explodir no Ceará, liderada por seu filho Martiniano, “nutrido por ela, nas ideias e nos afetos”, como escreve Antonia Pellegrino.
Em 1817, Martiniano proclamou a Independência e instalou a República de Jasmin, nome de uma propriedade de Bárbara. Mãe e filho lideraram o povo exaltado pela sensação de liberdade. Oito dias depois, entretanto, chegou a restauração, e Bárbara foi presa pelo envolvimento e liderança da revolução. E pior: foi acusada de traição no matrimônio, por nutrir amizade com um padre. “A acusação (para muitos, infundada) tinha o objetivo claro de difamar a única mulher a participar da Revolução e macular sua memória entre os viventes e as futuras gerações”, segundo Pellegrino.
Se não era possível calá-la e escondê-la, humilharam Bárbara de Alencar, que foi presa, maltratada e torturada. Foi libertada após três anos, por um lance de sorte: a eclosão da revolução do Porto. Nome conhecido no imaginário popular cearense, Bárbara foi mulher pioneira na política e considerada por muitos a mãe da independência.
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A mulher que veio do mar e ruminava fogo
Maria Felipa de Oliveira (?-1873), era líder militar, estrategista, capoeirista, pescadora e marisqueira
Pouco se sabe sobre a história e trajetória de Maria Felipa de Oliveira, uma “mulher negra, pescadora e engajada em lutas sociais”, como define a pesquisadora Lívia Prata. “Para criar imagens onde Maria Felipa seja vista como uma líder, corajosa, bondosa e forte, são necessários esforços para que o imaginário ao redor da personagem não seja de submissão, exploração, escravidão”, afirma em um trecho do livro. Desprezada pela historiografia tradicional, foi felizmente imortalizada pela memória popular.
Imagina-se que nasceu na Ilha de Itaparica, parte do estado da Bahia, em data incerta. Ao lado de outras 37 mulheres, Maria Felipa liderava o Batalhão das Vedetas, que tinha a função de sentinela: noite e dia essas mulheres patrulhavam matas, manguezais e praias, levando tochas acesas feitas de palha de coco e chumbo para procurar e identificar portugueses. O grupo travava lutas inclusive de corpo-a-corpo, e Maria Felipa se encarregava também de repassar informações sobre os conflitos para companheiros em Salvador.
“Negros escravizados viam na independência uma possibilidade de mudança de status, de se tornar liberto. A participação política das pessoas negras foi muito grande, sobretudo na região da Bahia. Que tenhamos conseguido chegar a personagens, foi só a Maria Felipa, o que não significa que não houvessem outras”, comenta Antonia Pellegrino.
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A pequena grande ativista
Os lamentos e lutas de Urânia Vanério (1811-1849)
Também conhecida como Baianinha, Urânia Vanério é filha de um casal de portugueses, nascida em Salvador, e desde menina é ativista da independência pelas palavras. O panfleto “Lamentos de uma Baiana”, de sua autoria, é o mais “revoltado e dolorido protesto contra a ação das tropas do General Madeira de Melo, vazado em linguagem simples e direta”, como afirmam os autores da coletânea “Guerra Literária: Panfletos da Independência” (UFMG, 2014). Foi escrito entre os dias 19 e 21 de fevereiro de 1822, e por uma menina de apenas dez anos.
Os panfletos, na época, permitiam uma comunicação mais barata, de circulação rápida e suas mensagens eram respeitadas por diferentes setores da sociedade. Também eram temidos pelas autoridades, já que foram uma ferramenta política relevante em várias revoltas do Brasil colonial, como explica a professora de história e pesquisadora Patrícia Valim, no livro.
Em seus versos, Urânia relatava revoltas pessoais e de sua família diante dos rumos da guerra. O que parece ter começado como uma tentativa de defender seus pais portugueses de possíveis ataques, “ganhou corpo e transformou-se em uma das mais potentes críticas contra os arbítrios do absolutismo português na Bahia, da exploração colonial e da violência das tropas imperiais contra a população de Salvador”, afirma Valim.
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A mulher que se vestiu de homem para lutar
Maria Quitéria de Jesus (1792-1853), a moça-cadete que lutou no Batalhão dos Periquitos
Depois do ato em terras paulistas que marcou a independência, algumas províncias permaneceram sob controle das tropas portuguesas, caso da Bahia. Conflitos armados se intensificaram na região em 1822, e Maria Quitéria de Jesus, assim que descobriu sobre a guerra, teve pedido de se juntar ao exército para lutar no campo de batalha recusado pelo pai. Por isso, fez o impensável para a época: pegou roupas do cunhado emprestadas, cortou os cabelos e se despiu de qualquer indício externo que a configurasse como mulher.
Maria Quitéria lutou até 2 de julho de 1823, quando os últimos portugueses que ainda resistiam decidiram abdicar do combate. A data marca a independência da Bahia. Em seguida, a moça-cadete retorna ao Rio de Janeiro, onde foi condecorada e passou a receber um salário vitalício, “para usar como bem entendesse, sem a intromissão de pai, marido ou irmão. Em outras palavras, conquistou a independência financeira”, afirma a historiadora Marcela Telles, no livro.
Não parece haver arrependimento por parte de Maria Quitéria. Alguns biógrafos afirmam, entretanto, que ela pediu ao imperador para interceder a seu favor pelo perdão do pai, que jamais aceitou sua participação na guerra. Mesmo assim, ao voltar à Bahia, direto para a casa paterna, “foi saudada com entusiasmo por parentes e irmãos. Seu pai, contudo, dizem, retirou-se da varanda sem dirigir-lhe uma palavra sequer”, escreve Telles.
- Independência do Brasil – As mulheres que estavam lá
- Heloisa M. Starling, Antonia Pellegrino e outras
- Bazar do Tempo
- 224 páginas
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Este conteúdo é parte da série “Ecos de Outros 22”, produzida em parceria com o Itaú Cultural, uma organização voltada para a pesquisa e a produção de conteúdo e para o mapeamento, o incentivo e a difusão de manifestações artístico-intelectuais.