Trecho de Livro: Feminismo no Brasil — Gama Revista

Trecho de livro

Feminismo no Brasil

Dois ícones do feminismo brasileiro, Branca Moreira Alves e Jacqueline Pitanguy contam a história do movimento no país em novo livro

Leonardo Neiva 18 de Março de 2022

Ao longo das décadas de 1960 e 1970, a sociedade presenciou uma série de protestos que faziam parte da luta de mulheres de várias partes do mundo por igualdade, no movimento que ficou conhecido como a segunda onda feminista. Enquanto a primeira, que ocupou boa parte do século 19 e início do 20, era focada no sufrágio e na garantia de direitos legais fundamentais, a segunda se focou em temas como sexualidade, mercado de trabalho e direitos reprodutivos, buscando empreender uma verdadeira revolução nos corações e mentes da sociedade.

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O movimento inevitavelmente acabou alcançando o Brasil em um de seus momentos políticos mais conturbados: a ditadura militar. É sobre essa e outras histórias, narradas desde quando as mulheres eram impedidas de ter qualquer tipo de voz ativa, que escrevem a cientista política Branca Moreira Alves e a socióloga Jacqueline Pitanguy, duas das figuras mais importantes do movimento feminista brasileiro. Em “Feminismo no Brasil” (Bazar do Tempo, 2022), elas recuperam memórias das mulheres que estavam à frente dessas lutas entre os anos 1960 e 1990, período em que boa parte do movimento feminista nacional chegou a se integrar e se confundir com a luta contra o regime ditatorial.

Em 2020, Alves foi inclusive entrevistada no podcast “Praia dos Ossos”, idealizado e apresentado pela filha Branca Vianna, e que fala sobre o assassinato da socialite Ângela Diniz na década de 1970, crime que mobilizou o movimento feminista no país. Ao contextualizar os acontecimentos da época, que ela mesma viveu, a ativista surge como uma personagem cativante e aguerrida.

Partindo dos bastidores de uma narrativa que atravessa décadas, séculos e as vidas de inúmeras mulheres, no livro as autoras desfiam uma história brasileira fundamental e até hoje não contada. Sem deixar de mencionar as formas como o sistema patriarcal continua sobrevivendo até os dias de hoje, a dupla deixa claro como todas essas mulheres abriram portas e janelas para as batalhas do feminismo contemporâneo. Como as próprias autoras descrevem no prefácio da obra, “uma história antiga, que nasce com os mitos da origem do mundo, atravessa revoluções, que se descobre nos anos 1960/1970, e que não cabe em 280 caracteres, nem em uma foto ou um like”.


Nós e os anos de chumbo

No Brasil, 1968 foi um ano de intensas manifestações de resistência à ditadura, que terminaram com a promulgação do Ato Institucional nº 5 e a inflexão mais arbitrária e violenta do regime.

Em março uma manifestação de estudantes contra a alta de preços das refeições no restaurante estudantil do Calabouço, Rio de Janeiro, foi reprimida violentamente, tendo sido morto o estudante Edson Luiz.

Seu enterro foi a primeira grande marcha popular do ano.

Em 30 de junho a famosa “Passeata dos 100 mil”, no Rio de Janeiro, comprovou a crescente força da oposição. Concentrados nas escadarias da Assembleia Legislativa, na Cinelândia, estavam políticos do MDB — único partido de oposição permitido durante o regime militar –, artistas, profissionais liberais, professores, religiosos, além da liderança estudantil e operária; na praça havia milhares de pessoas, principalmente estudantes. Uma parte da classe média, que havia saído às ruas convocada pela igreja em apoio ao golpe na marcha “da Família com Deus pela liberdade”, mas agora via seus filhos perseguidos, também estava ali, junto a setores da mesma igreja, já então parte essencial da resistência em seu papel de defensora de presos políticos.

Em setembro a polícia “estourou” o encontro da União Nacional de Estudantes, UNE, em Ibiúna, São Paulo, organização prescrita desde o golpe de 1964. Na ocasião, foram presos os cerca de mil estudantes que estavam no local, dentre os quais mulheres, que participavam ativamente de suas atividades, embora a liderança fosse toda masculina.

Seguiu-se no Rio de Janeiro um jogo de gato e rato entre polícia e estudantes, que com seus comícios-relâmpago pipocavam em vários locais do centro. Subiam nos tetos das bancas de jornais, faziam um curto discurso denunciando a ditadura, e desapareciam na multidão antes que chegasse a polícia. Ainda assim muitos foram presos e torturados.

As mulheres participavam e muitas foram presas, torturadas, exiladas, assassinadas. Algumas, a partir dessa luta, fizeram o caminho do feminismo

A 2 de setembro o deputado federal Márcio Moreira Alves faz em plenário um discurso-denúncia convocando a população a boicotar os festejos do Dia da Independência. O governo requer a suspensão de sua imunidade parlamentar a fim de processá-lo e é vencido, depois de fortes disputas internas. Promulga então a 13 de dezembro o Ato Institucional nº 5, que suspende as garantias constitucionais, fecha o Congresso, cassa direitos políticos, censura a imprensa, prende e tortura opositoras e opositores.

Começa o período mais duro e sombrio da ditadura, que se estende por toda a década de 1970.

Um clima de repressão e medo impregnava o cotidiano. Setores da sociedade civil atuavam na resistência, seja de forma institucional, seja através de organizações que, na clandestinidade, propunham formas diversas de luta, desde resistência pacífica até ações armadas urbanas e no campo. As mulheres participavam e muitas foram presas, torturadas, exiladas, assassinadas. Algumas, a partir dessa luta, fizeram o caminho do feminismo.

Uma delas, Eleonora Menicucci, relata: “Fiquei três anos presa. Fui barbaramente torturada e na cadeia descobri a importância do feminismo. Porque eles ameaçaram torturar a minha filha na minha frente. Aí eu comecei a perceber que o fato de ser mulher diferenciava na tortura. Eu não fui violentada sexualmente na cadeia, mas sei de companheiras que foram. Então eu descobri o lugar da mulher, de objeto, de tudo, de violência, o estupro, tudo na cadeia. A nossa identidade feminina ia a zero. Era humilhada, degradada.”

Vivíamos esse contexto de violência, repressão e censura, em um divórcio entre Estado e sociedade civil. A sociedade civil monopolizava a agenda de direitos humanos contrapondo-se ao Estado usurpador, formando uma grande frente contra a ditadura, da qual nós, mulheres, que acabávamos de nos reconhecer como feministas, fazíamos parte.

Essa resistência democrática se expressava no slogan “O povo unido jamais será vencido”. Mas esse povo não tinha sexo, orientação sexual, raça, etnia e, quando muito, tinha classe social. Ou seja, não havia espaço para políticas identitárias que, a partir da diversidade, construíssem uma frente ampla comum.

Entretanto, como feministas, entendíamos que essa agenda seria incompleta se não incluísse a igualdade de direitos entre mulheres e homens, e que essa inclusão deveria ser feita naquele momento, e não ser postergada para depois do retorno das instituições democráticas.

Foi durante esses anos que o nascente movimento feminista brasileiro se impôs como uma força política. Trouxe nova visão, novas formas de organização, novas demandas. Considerando-se o contexto de ditadura militar em que se expressava, o movimento, ao mesmo tempo que lutava pela democracia, defendia a igualdade de direitos entre homens e mulheres na família, na política, no trabalho, na educação; exigia o acesso à contracepção, a legalização do aborto, a criação de infraestrutura social de apoio à mãe e à criança; denunciava a invisibilidade da violência doméstica e criava as primeiras organizações feministas da sociedade civil. O feminismo passa a atuar politicamente de forma autônoma e inovadora, ocupando um espaço na arena pública como um ator coletivo.

Um evento no Rio de Janeiro torna público que nossa agenda não era subsequente nem secundária à resistência democrática e, sim, central e estruturante do conceito de democracia. E que o feminismo ja era uma força social, que chegava como “uma segunda onda”.

Aí eu comecei a perceber que o fato de ser mulher diferenciava na tortura. Eu não fui violentada sexualmente na cadeia, mas sei de companheiras que foram

A semana da Associação Brasileira de Imprensa (ABI)

Difícil estabelecer datas exatas para processos políticos e movimentos sociais, mas em algum momento de 1973, no Rio de Janeiro, um pequeno grupo que questionava a discriminação das mulheres passou a se encontrar. Eram reuniões informais nas casas umas das outras. Queríamos estar em um espaço onde pudéssemos trocar experiências, criar estratégias, construir solidariedade sem a interferência masculina: os chamados “grupos de reflexão”. Reunimos nesta seção alguns relatos sobre esses encontros.

Leila Linhares Barsted, advogada, comenta: “Foi muito bonito, porque a gente se reunia, isso antes de 1975, nas casas, sentávamos no chão. Era uma relação extremamente afetiva, porque a vida da outra nos afetava também. Era uma troca de experiência. Ninguém sabia mais do que ninguém, todas estávamos no mesmo barco, e o que fazer? Essa era a grande questão. Esse início do movimento teve uma característica de horizontalidade, uma característica de afetividade. É uma coisa interessante, porque esse feminismo da segunda onda é um feminismo que surge sem uma liderança assumida.”

Nós também enfatizamos a dinâmica de acolhimento que encontrávamos nas reuniões. Jacqueline: “Nos reuníamos nas nossas casas, uma vez por semana, e, para mim, esses eram os grandes momentos da semana. Me sentia acolhida, em um ambiente de solidariedade, apoio e crescimento. Não havia um roteiro fixo, a conversa corria sem pauta, solta, em um ambiente de confiança. Falávamos de nós mesmas, chorávamos ou ríamos, comentávamos um livro feminista, um projeto, uma estratégia para uma ação conjunta…”

Branca: “O grupo de reflexão foi para mim como um colo, um abrigo, aquele lugar onde a gente sabia que iria encontrar quem entendia do que falávamos. Lembro em especial do susto que foi meu primeiro dia no novo apartamento para onde tinha mudado depois de minha separação. Sentamos para jantar, minhas filhas e eu, e ao notar o lugar vazio à minha frente dei um suspiro de medo. Foi tão fundo que minha filha Anna, que tinha onze anos, perguntou assustada: ‘Que foi, mãe?’ Felizmente me lembrei que justo naquela noite havia reunião do nosso grupo. Que alívio!”

Sandra Azeredo, psicóloga, narra: “O grupo foi a minha primeira experiência de prática feminista. Éramos militantes e amigas nos encontrando cada semana na casa de uma de nós, sempre com coisas gostosas para comer. Contávamos histórias sobre nossas vidas de mulheres e cada dia íamos ficando mais feministas e mais amigas, com uma grande solidariedade diante do sofrimento das mulheres, especialmente as que sofriam violência! (…) Passaram-se mais de quarenta anos dessa experiência de grupo, nos separamos em nossa caminhada, mas até hoje somos militantes e amigas.”

Eunice Gutman, cineasta, relata, por sua vez, como a experiência de participação dos grupos transformou sua visão de mundo: “Eram grupos de reflexão. Eu achei fantástico. Na história do feminismo nós éramos da utopia, a gente queria um mundo maravilhoso. A gente dizia: ‘Você tem de estudar sua própria história.’ Aí eu peguei essa frase e falei: ‘Cara, realmente, quem sou eu?’ Aí entrou o assunto mulher. ‘Sou eu. Que que eu sou no mundo?'”

Todas que passaram por um desses grupos tiveram essa experiência de “cair a ficha” ao ouvir relatos que contavam uma história parecida com a sua. Aquele primeiro momento é como “Meu primeiro assédio”: ninguém esquece.

Eram como pedaços de um quebra-cabeça que se iam encaixando e afinal mostravam todo o quadro. Voltavam cenas, comentários, sustos, comportamentos, reações, que de repente passavam a ter um nexo, um fio condutor. Novas lentes, simplesmente. Montado o quadro, vinha a raiva, espanto (com a conhecida frase: “Como não vi isso antes?”), mas também alívio, o alívio que vem do reconhecimento, de sentir que, ao entender, tudo encontra seu lugar e daí para a frente é preciso atuar. Era uma viagem para dentro e para fora. Vinham então as estratégias de luta, os mil debates, decisões, tarefas e organização.

Passaram-se mais de quarenta anos dessa experiência de grupo, nos separamos em nossa caminhada, mas até hoje somos militantes e amigas

Naquele lugar não havia censura, não havia sequer uma pauta ou qualquer tipo de roteiro. Eram grupos pequenos, onde era possível haver essa intimidade, essa liberdade. Discutiam-se sexualidade, relações conjugais, amores, violência doméstica, temas que até então nem com as amigas mais íntimas eram comentados. Naquele território de cumplicidade e troca aos poucos o “pessoal” ia se tornando o “político.” Deslocávamos nossas vidas individuais para uma experiência coletiva, buscávamos entender essa experiência como um processo que era também político, sobre o qual podíamos atuar.

Foi um movimento que recusava a liderança mesmo em suas organizações, que evitava, consciente, “cair na armadilha de repetir as organizações masculinas.”

Produto

  • Feminismo no Brasil
  • Branca Moreira Alves e Jacqueline Pitanguy
  • Bazar do Tempo
  • 372 páginas

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