Lutemos como nossas ancestrais — Gama Revista
COLUNA

Winnie Bueno

Lutemos como nossas ancestrais

O que temos acompanhado nas últimas semanas deixa evidente: é preciso reorganizar as lutas, retomar as ruas, garantir nossos direitos em tempos tão tenebrosos

20 de Julho de 2022

Julho é o mês que as mulheres negras escolheram para visibilizar ainda mais suas pautas. As ativistas do feminismo negro da América Latina e do Caribe celebram neste mês suas conquistas e articulam-se na revisão de suas agendas de lutas. No Brasil, o feminismo negro tem um ponto de partida que converge muito com tópicos que recentemente tomaram conta do debate público: a saúde reprodutiva de mulheres.

Com o avanço do ultraconservadorismo, representado pelo governo Bolsonaro, mulheres mal conseguem acessar recursos básicos de saúde

Mulheres negras, por serem consideradas menos mulheres que as mulheres, por serem desumanizadas, centralizaram suas lutas em torno de agendas como a autonomia dos corpos, a saúde sexual e o direito ao aborto legal, descriminalizado e seguro. Todas têm relação com saúde pública e, considerando a atual conjuntura política brasileira, cada vez mais têm sido suprimida. Nos últimos anos, em decorrência do avanço do ultraconservadorismo, atualmente representado pelo governo Bolsonaro, mulheres mal e porcamente conseguem acessar recursos básicos de saúde. Procedimentos de saúde como consultas periódicas e até mesmo o acesso a contraceptivos e produtos de higiene menstrual são considerados pouco relevantes, o que demonstra o descaso com a vida das mulheres.

Esse cenário não é exclusivo do contexto brasileiro e não se resume à restrição de recursos financeiros para a área. Os retrocessos discursivos em agendas como a legalização do aborto são um exemplo. O fato da proteção constitucional a ele ter sido revogada nos Estados Unidos , possibilitando que mulheres sejam penalizadas por decisões a respeito de seus próprios corpos, é alarmante. No contexto brasileiro, recentemente, dois episódios foram particularmente impressionantes e mostram a fragilidade dos poucos direitos sexuais e reprodutivos que mulheres brasileiras, em tese, têm assegurado: o direito ao aborto seguro em caso de estupro e o direito a entrega legal para a adoção. Nem um dos dois constituem crimes, mas sim direitos. Contudo, uma vez que eles são direitos sexuais e reprodutivos de mulheres, acabam sendo socialmente criminalizados em discursos recheados de vieses ideológicos, religiosos e que ocultam, por uma suposta comoção com a “vida da criança”, a sanha do controle da vida e dos corpos de mulheres.

Durante muito tempo, o feminismo silenciou a secundarização das pautas de mulheres negras pelas brancas dentro do próprio movimento feminista

Mulheres negras estão atentas ao que significa o controle de suas vidas e de seus corpos pelo Estado porque essa é a nossa realidade concreta, vivenciada desde o período colonial. Esse controle foi exercido durante todo o período da escravização como pressuposto central da colonização e se mantém como pilar da colonialidade. A manutenção das lógicas de poder brancas, heterocisnormativas, patriarcais e eurocêntricas, portanto, se dá basicamente a partir da não extensão de direitos para mulheres negras. O problema é que, durante muito tempo, o feminismo brasileiro silenciou e omitiu a ocultação e a secundarização das pautas e agendas de mulheres negras pelas brancas dentro do próprio movimento feminista. Portanto, passa da hora de mulheres brancas admitirem que sua localização racial permitiu que acessassem os benefícios conferidos pelas hierarquias raciais sem grandes questionamentos. A ausência deles foi central para o desmantelamento dos poucos direitos que as mulheres adquiriram ao longo da história.

Esse desmantelamento de direitos, que começa pelos sexuais e reprodutivos, pode significar em longo prazo o de outros direitos que são gozados por mulheres brancas mas que, conforme vimos nas últimas semanas, muito facilmente podem ser destituídos. Direitos são conquistas que necessitam de luta permanente para que se mantenham. No contexto brasileiro, parte desses direitos foi conquistado pelas articulações dos movimentos sociais. No que diz respeito aos direitos das mulheres, movimentos recentes como a Primavera Feminista e a Marcha de Mulheres Negras foram centrais para impedir retrocessos. O que temos acompanhado nas últimas semanas deixa evidente: é preciso reorganizar as lutas, retomar as ruas, garantir nossos direitos em tempos tão tenebrosos. O Julho das Mulheres Negras deve ser inspiração para todas as mulheres: lutemos como lutaram nossas ancestrais.

Winnie Bueno Winnie Bueno é iyalorixá, pesquisadora e escritora daquelas que gostam muito de colocar em primeira pessoa sua visão do mundo e da sociedade. É criadora da Winnieteca, um projeto de distribuição de livros para pessoas negras

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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