CV: Juliana Souza
Advogada do caso que teve a maior pena por racismo e injúria racial do país, é presidente do Desvelando Oris, instituto que promove equidade racial e de gênero para jovens e mulheres em vulnerabilidade
Juliana Souza, 33, uma das advogadas responsáveis pelo caso que levou à condenação da influenciadora Daiane Alcântara Couto de Andrade por ataques racistas à filha de Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank, entende profundamente o que a pequena Chissomo, 11, enfrentou. Por isso, ela celebra um dos trabalhos mais importantes da carreira até aqui, “a maior pena por racismo e injúria racial da história brasileira”. Andrade foi condenada à prisão por oito anos e nove meses.
“Muito me emociona, pois fui uma criança negra vítima de racismo, uma adolescente negra que sofreu com o racismo e sou uma mulher negra que sofre com o racismo”, diz.
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Hoje, além de atender alguns casos, como o da família de artistas, a profissional se dedica a um projeto voltado à promoção da equidade — racial e de gênero —, o Desvelando Oris, instituto lançado em 2021 com foco no desenvolvimento de novas possibilidades para jovens e mulheres em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Uma das frentes da organização é a educação em direitos.
O estudo, aliás, foi um marco essencial na trajetória da advogada, a primeira da família a acessar a universidade. Formada pela PUC-SP por meio do Prouni, ela conta que ingressar na faculdade não foi mais difícil do que permanecer ali e garantir o diploma. “Era um ambiente extremamente racista e elitista em que eu era uma exceção. Antes de entrar na sala de aula, eu dava uma passadinha no banheiro para chorar. No começo, as pessoas não queriam fazer trabalho comigo”, afirma.
De lá para cá, fez uma pós-graduação no Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, sobre sistema de justiça e racismo, escreveu um livro, o “Torrente Ancestral, Vidas Negras Importam?” (Matrioska Editora, 2021), e, em 2020, ingressou na USP para um mestrado que analisa o direito à cidade.
Mas, como nem tudo é trabalho, ela também se dedica a cantar. “É importante ocupar os palcos da vida, seja ele no direito, na minha organização ou na música, um palco que eu pretendo ocupar muito em breve”, comenta.
Em entrevista a Gama, Juliana Souza fala sobre seus aprendizados e erros, racismo, antirracismo e a importância da educação.
Boa parte do trabalho que faço hoje é para que as pessoas não tenham que passar pelo que eu passei
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G |O que te trouxe até aqui?
Juliana Souza |Foi o senso de responsabilidade que eu tenho desde muito cedo, herdado da minha dinastia de trabalhadoras domésticas. Minha trajetória profissional e a pessoal estão interligadas. Sou baiana de Feira de Santana, filha de uma sobrevivente da violência doméstica. Viemos para São Paulo quando eu tinha um ano e três meses e, desde sempre, minha mãe fala sobre a importância da educação. E, de fato, a educação é um instrumento de transformação social. Morei em Osasco, na favela Santa Rita e, aos 12 anos, mudei para a escola mais importante da minha vida, o Escadão da Paz, em Itapevi. Durante o ensino médio, fiz um curso no Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial) e, assim, a minha primeira profissão foi como eletricista de manutenção — não porque eu gostava, mas precisava de grana para ajudar em casa. No segundo ano, conheci o cursinho pré-vestibular CapJovem, um projeto social, que dava transporte, alimentação, material didático, uniforme, ou seja, toda a condição para jovens periféricos estudarem. Em 2014, ingressei na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) pelo Prouni. Sou a primeira pessoa da minha família a acessar a universidade.
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G |Como foi essa experiência?
JS |Ingressar na PUC não foi mais difícil do que permanecer lá e me formar. Era um ambiente extremamente racista e elitista em que eu era uma exceção, e as pessoas faziam questão de me lembrar disso todos os dias. Antes de entrar na sala de aula, eu dava uma passadinha no banheiro para chorar. No começo, as pessoas não queriam fazer trabalho comigo. Eu não tinha computador, não tinha dinheiro para comprar os livros. Mas, enfim, foi um processo importante para a minha formação. Boa parte do trabalho que eu faço hoje é para que as pessoas não tenham que passar pelo mesmo que passei. No primeiro ano da faculdade, eu trabalhava como operadora de telemarketing e, com o tempo, fui fazendo alguns estágios em escritórios. Qualquer escritório que me pagasse R$ 200 a mais, eu estava lá porque fazia toda a diferença no fim do mês. Consegui me formar, passei na OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e aí começou outro desafio, a busca por oportunidades como advogada.
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G |Quais foram os passos seguintes, depois da faculdade?
JS |Estudei para a Defensoria Pública, trabalhei como advogada voluntária, me juntei com amigas para atender pessoas em situações de vulnerabilidade. No entanto, eu precisava pagar as contas no fim do mês, não dava para viver de propósito, pois a realidade se impunha. Então, consegui uma vaga em uma organização do terceiro setor, onde fiquei por um ano construindo o plano de bairro do Jardim Pantanal, na zona leste de São Paulo. Ficava três dias no território, dois no escritório, em contato com a comunidade e com o poder público. Foi aí que aprendi mais sobre advocacia. Paralelamente, fiz uma pós-graduação no Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, focada no sistema de justiça e racismo. No ano seguinte, fui convidada a ser coordenadora-chefe do departamento de bolsas da instituição. Fiz questão de levar pessoas negras, de base favelada, assim como eu fui, para serem coordenadoras também. Construímos uma política institucional afirmativa de destinação de bolsas para pessoas negras, LGBTs, e egressos do sistema prisional. Saí deixando um legado do qual muito me orgulho.
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G |Você também teve experiência na política?
JS |Em 2019, entrei para a assessora jurídica do gabinete da Erica Malunguinho [na época, deputada estadual] na Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo). Era um gabinete completamente negro. Foi a primeira vez que trabalhei exclusivamente com pessoas negras. Veio a pandemia e eu, que sempre fui de conectar pessoas, uma ponta à outra, fiquei inquieta com as desigualdades. Foi aí que fiz uma live com a Anitta, o que foi um divisor de águas e quando compreendi a importância das redes sociais, em termos de entender como é que a gente usa uma linguagem simples, decodificada, acessível, se realmente temos propósitos para transformar a vida das pessoas. Em 2020, ingressei em um mestrado na USP (Universidade de São Paulo), sobre direito à cidade, analisando Heliópolis, a maior favela da capital paulista, e o bairro dos Jardins, onde moro hoje. Inclusive, sou vizinha do prédio onde minha mãe fazia faxina. É muito simbólico estar nesse lugar da cidade. Também escrevi o livro “Torrente Ancestral, Vidas Negras Importam?” (Matrioska Editora, 2021).
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G |Como se deu a criação do instituto Desvelando Oris?
JS |Começamos, de uma maneira mais concreta, em 2021. Eu, o Jálisson Mendes, educador social que trabalha há 15 anos com jovens em situação de rua e em extrema vulnerabilidade social, que também é meu companheiro de vida, e minha mãe, Tercília Conceição. Fundamos o Desvelando Oris para ampliar o impacto do trabalho que a gente já fazia em outros lugares e outras organizações. O nosso trabalho é voltado a jovens e mulheres em vulnerabilidade socioeconômica, com foco em pessoas negras. Temos uma série de programas e projetos que visam o fortalecimento delas, criando conexões, dando oportunidades culturais. Além de um forte trabalho de acesso à justiça e de orientação e educação em direitos. A gente tem um curso de alemão, uma biblioteca, tudo de forma gratuita.
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G |Então, além do instituto, hoje você também atua em alguns casos, como o da Titi, filha dos atores Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso?
JS |Exatamente. Atualmente, o instituto toma mais de 90% do meu tempo e, por isso, não consigo assumir tantos casos. Mas alguns, como o da Titi, já estavam comigo há algum tempo, antes do Desvelando Oris surgir. O Bruno [Gagliasso] me convidou para ingressar no caso em 2021. E, no fim de agosto, tivemos, finalmente, a decisão da maior condenação por racismo e injúria racial da história brasileira, o que muito me emociona, pois fui uma criança negra vítima de racismo, uma adolescente negra que sofreu com o racismo e sou uma mulher negra que sofre com o racismo. Hoje, de uma forma muito mais sofisticada, no sentido de que não são agressões diretas, mas o racismo é um fenômeno complexo, e precisamos estar muito atentos a ele.
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G |Quais são os principais desafios da sua área e como lidar com eles?
JS |Acho que os principais desafios são ser quem eu sou, vir de onde venho e estar aqui, me propondo a fazer o que eu faço. Via de regra, as ações da filantropia, por exemplo, com programas ou projetos sociais, são voltadas a beneficiar pessoas como eu. Mas esses beneficiários não são os protagonistas, os que decidem os rumos, as missões e as soluções dos problemas. Obviamente, não temos interesse nem pretensão de fazer nada sozinhos, então contamos com parceiros e aliados. Ainda é um trabalho bastante desafiador, no dia a dia, as demandas e os pedidos de apoio que chegam são muito maiores do que a gente consegue dar conta. Uma das nossas maiores dificuldades é entender o contexto da filantropia negra, um contexto de reparação e responsabilidade. Siglas e siglas são criadas, mas há áreas de diversidade sendo descontinuadas nas empresas. Temos tentado, criativamente, seguir com pessoas aliadas para buscar respostas para essas questões.
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G |E seus maiores aprendizados, quais foram?
JS |Um deles é que você não precisa ter todas as respostas. Outro é que tentando e se preparando durante o caminho, você vai conseguir fazer sempre o seu melhor. É importante estar rodeada de pessoas e coisas que te alimentem e a sua prática. Sempre digo para os estudantes de direito não ficarem trancados na biblioteca. É óbvio que é importante ler, desenvolver um pensamento crítico, mas, para mim, é mais essencial ainda estar em contato com as pessoas, com a cidade, com o campo, com o que forma a nossa ciência jurídica. Talvez as respostas para os problemas que a gente vai encontrar estejam nas ruas. Ninguém precisa ter todas as respostas para começar, você pode ir com o que tem, e vai descobrindo as alternativas e as possibilidades durante o caminho, que vão mudando, inclusive, conforme você também é transformado no processo. Uma outra lição é, essencialmente, que as pessoas são pessoas.
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G |Na sua trajetória você cometeu alguma falha que não cometeria hoje?
JS |Sim, algumas. E fico muito feliz por isso. Porque é assim que consigo assumir a minha humanidade. Se eu não tivesse cometido nenhum erro, acho que não estaria no lugar onde eu estou. Tive muitos momentos em que eu dizia muito sim, para tudo e para todos, e me abandonava, abandonava a minha saúde, abandonava o meu descanso. E hoje eu sei que, para fazer todas as coisas que eu faço, preciso estar bem. É aquele negócio da máscara de oxigênio do avião, primeiro colocamos na gente para, em seguida, ajudar o outro, sabe?. Mas estou muito feliz com os erros que cometi no caminho. Eles me deram a oportunidade de visitar, de viver, de construir alternativas, de mudar de ideia. Tenho muita gratidão pelo que aconteceu.
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G |Você teve algum mentor ou alguma mentora durante a sua trajetória profissional?
JS |A mentora principal da minha vida é a minha mãe. Ela é a minha grande professora, minha maior inspiração, a minha heroína, a pessoa que guia desde a forma como olho para a vida e até para as questões mais complexas dos negócios. E eu acredito que o conhecimento está em todas as pessoas. Tenho tido a oportunidade de conhecer muita gente, de vários lugares, de diferentes realidades sociais e raciais, que têm agregado bastante na minha trajetória. São desde lideranças populares a empresários e empresárias. As minhas afilhadas também são um combustível para mim, Mesmo crianças, elas me inspiram.
A mentora da minha vida é a minha mãe. Ela é a minha grande professora, minha maior inspiração, a minha heroína