CV: Gabriela Monteleone
Na pandemia, a head sommelier e wine director do Grupo D.O.M. criou encontros online de degustação e, para democratizar a bebida, passou a vender vinhos na pressão e em caixas de 3 litros
Colocar produtor e consumidor frente a frente. Foi essa a ideia que norteou a sommelière Gabriela Monteleone, 38, ao dar à luz Tão Longe, Tão Perto. Criado em março de 2020, nos primórdios da pandemia, o projeto funciona da seguinte forma: o cliente compra um box degustação, que ele recebe em casa, acompanhado de um link; ao acessar o endereço, na data marcada, ele adentra um evento de degustação online com a participação especial dos produtores responsáveis por aqueles vinhos.
Unindo teoria à degustação, o participante passa a conhecer melhor a história do que está bebendo, a partir da experiência de produtores vindos de diferentes lugares do mundo. “Uma coisa importante para mim é justamente fazer um elo entre o produtor e o consumidor. Esse é o papel do sommelier, fazer a tradução de uma frente para a outra. Sem a estrutura do restaurante, isso ficou totalmente perdido”, conta a sommelière.
E de restaurantes Gabriela entende. Com passagens por casas conceituadas como a enoteca Acqua Santa, que já fechou as portas, Ici Bistrô, Pomodori e o Gero, do Grupo Fasano, hoje a paulistana é head sommelier e wine director do Grupo D.O.M., responsável pela curadoria técnica e capacitação para as operações da empresa. Além disso, também atende as chefs Bel Coelho e Gabriela Barreto, do Chou e Futuro Refeitório.
Outra frente do trabalho de Gabriela é tornar o consumo de vinho mais democrático. Além de um projeto envolvendo vinho na pressão, tirado do barril por uma torneira como se fosse chope, ela acaba de lançar com o sócio Ariel Kogan o Vinho de Combate. Trata-se de um vinho vendido em uma caixa de 3 litros, vinificado pelo premiado enólogo Luís Henrique Zanini com uvas produzidas no Rio Grande do Sul, nas opções tinto, branco e rosé. A aposta é também uma tentativa de vencer o preconceito contra vinhos servidos dessa forma no país.
Formada em gastronomia pela Anhembi Morumbi, ela conta que admira a profissão, mas nunca se identificou com o trabalho no ambiente da cozinha. Por isso, aos poucos foi direcionando a carreira para o setor de vinhos, sua grande paixão. Hoje, também dá aula para profissionais em formação na Associação Brasileira de Sommeliers (ABS), pela qual é certificada.
Em março de 2020, de volta de uma viagem à Argentina, a primeira coisa que fez foi se isolar voluntariamente pouco antes do distanciamento social baixado pelo governo, já que seu trabalho permitia a atuação remota. Em seguida, ligou para o empreendedor Ariel Kogan com a ideia do Tão Longe, Tão Perto — hoje ele é sócio do negócio. Já foram mais de 20 encontros online promovidos pelo projeto, com 60 produtores de várias partes do mundo.
“Eu brinco que os capítulos do Tão Longe, Tão Perto discutem, através do vinho, temas como sustentabilidade, agricultura, maneirismos de consumo, história, maneiras de se produzir muito ou pouco usuais, o impacto estético, comercial, econômico… fazemos todas essas digressões que o vinho permite.”
Gama conversou com a sommelière sobre carreira, sua missão na profissão e a importância de entender e fazer entender as histórias que existem por trás de cada garrafa de vinho.
Gil Inoue
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G |Quais os seus maiores aprendizados nesses anos como sommelière?
Gabriela Monteleone |Para mim, o grande aprendizado foi entender que o vinho é um alimento, que existem muitas conexões e possibilidades valiosas para entender o mundo através dele. É uma bebida extremamente importante para a humanidade por vários fatores. Ela é uma das grandes monoculturas do mundo, uma das agriculturas mais antigas da humanidade, com grande impacto econômico e ambiental. Só isso já representa muita coisa. Aprendi a sair desse lugar de somente tomar um vinho e sentir o tanino, a acidez ou o cheiro de fruta vermelha. Aprendi a tomar um vinho e entender qual o lugar em que ele está, a realidade, as dificuldades, desafios e superações das pessoas que fizeram aquele vinho. A coisa mais valiosa foi ter essa tomada de consciência através da bebida.
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G |Qual a sua missão na sua profissão?
GM |Dentro da minha área de atuação, acredito que seja sempre trabalhar o viés ético, colocar pertencimento onde ele é necessário. Jogar muito mais a bola para quem fez e para quem vai beber aquele vinho do que para quem está ali no meio — que também é importante justamente por fazer essa conexão —, olhando para outras frentes para ter um trabalho mais assertivo. Isso caminha muito pelo lugar da ética, de entregar informações verdadeiras, bem elaboradas e com pesquisa. Meu trabalho é muito calcado em pesquisas justamente por isso. Um restaurante é como um palco ou um jornal. Existe uma conversa que você decide ter ali dentro, em que você se apropria de realidades de outras pessoas para apresentar aquilo para alguém. Então é muito importante ter essa responsabilidade.
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G |Qual é a importância de uma boa formação acadêmica na sua área?
GM |Minha formação acadêmica sem dúvida foi muito importante, assim como o investimento que faço na minha formação até hoje. Venho de restaurantes e vejo histórias de superação diariamente. A realidade dos restaurantes mudou dramaticamente de 15 anos para cá, com o boom das escolas de gastronomia, toda uma celebrização da área. Muito mais gente está trabalhando no setor com uma graduação, coisa que antes não existia. Também há mais pessoas querendo atuar nesse espaço. Até hoje é muito bonito ver uma pessoa sem escolaridade completa ou possibilidade de formação chegar a um cargo de chefia num restaurante, como sommelier. Isso é um ponto muito positivo quando você pensa num país como o nosso, com tanta desigualdade social e econômica. Então existe esse lugar da profissão, que é transformador. Mas, no aspecto pessoal, tenho certeza de que a formação foi muito importante e é algo que sempre batalho para continuar fazendo. Porque formação você nunca para.
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G |Quais lições você tem tirado ao atuar com o projeto Tão Longe, Tão Perto?
GM |Foi muito importante para me dar uma percepção do consumo e do consumidor. Em restaurante, é algo em que a gente sempre pensa: se o cliente vai gostar de algo, qual o feedback. Mas a forma de montar essas tratativas nesse ambiente é diferente. Você escolhe uma linha de raciocínio, monta uma carta de vinhos e vai apresentando, dentro desse mar de opções, de acordo com aquilo que a pessoa quer. O Tão Longe, Tão Perto tenta fazer uma conversa mais objetiva. Para isso, precisei observar o consumidor e como o consumo de vinho está se estabelecendo de uma forma nova. Acho isso muito bacana. Conseguimos colocar projetos na rua que, em outras situações, muito provavelmente não teríamos tentado, e que hoje são opções extremamente importantes para quebrar paradigmas e fazer uma transformação do consumo. Os vinhos na pressão, que temos no projeto, ou um vinho que é feito de uva americana… Há uma série de coisas em que a gente tem pensado justamente para dialogar de maneira mais ativa e mais próxima do consumidor.
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G |Como você enfrenta o machismo no mercado de trabalho?
GM |A equidade de gêneros é uma busca constante de todo mundo, porque a gente sabe que é estrutural. A minha questão com machismo no restaurante é que sempre tive poucos exemplos de mulheres. Minha geração rompeu com isso. Chegamos com mais força nas estruturas dos restaurantes, seja na cozinha, não só em cargos como confeitaria, mas como chefs, assumindo praças como a de peixe, que é super delicada, e até na sala do restaurante. Venho de uma geração em que cada vez mais as mulheres não ocupam somente o cargo de hostess, mas são maitres, gerentes de sala, sommelières, garçons, que escolhem a profissão, escolhem trabalhar nessa área. Vejo isso mudando a passos lentos, o fato de encontrar minhas pares num restaurante. Mais mulheres com protagonismo é a melhor forma de combater qualquer machismo ou falta de equidade. Um protagonismo sem vitimizar, na busca por excelência de trabalho, um lugar de força.
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G |Quais têm sido os maiores desafios para o seu trabalho?
GM |Uma coisa que percebi foi que aprendi a trabalhar com pessoas, a me relacionar, colaborar e aceitar a colaboração. Ter sempre o instrumento da gentileza, do acolher. Foi um dos grandes ganhos que tive e, muitas vezes, um grande desafio. Atrás de um computador, a gente vai fazendo as coisas no automático. Quando você está numa estrutura de restaurante, trabalhando com pessoas que são diferentes de você e ainda atendendo um cliente com uma determinada expectativa, é um desafio e sempre vai ser. Então é um lugar para o qual temos que olhar com muito carinho.
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G |Na sua trajetória você cometeu alguma falha que não cometeria hoje?
GM |Omitir qualquer tipo de informação de um cliente. Existe um élan ao redor do vinho, uma cultura no Brasil que entende a bebida nesse lugar do luxo, do super especial — algo que felizmente está mudando. Então, quando você é novo na área, muitas vezes chega meio sem jeito até o cliente e não passa a informação de forma segura, precisa. Já passei por algumas situações em que isso atrapalhou e aprendi que não posso mais. Sou uma pessoa carinhosa no trato, no acolhimento, mas sempre busco ser muito assertiva nas informações.
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G |Que conselho você daria para os profissionais que estão começando agora e que pretendem seguir carreira na sua área?
GM |Pensar que o vinho não é só o vinho. Se você entende vinho simplesmente como o conteúdo de uma garrafa, não entende nada. Ou se acha que basta fazer um serviço bonito, com um terno, numa sala de restaurante, também não. É preciso entender que existe muita coisa para além daquela garrafa. A partir daí, as possibilidades são infinitas de se criar um diálogo próprio, uma narrativa que seja sua.
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G |A paixão e a motivação andam juntas?
GM |Acho que sim. Sou uma pessoa que coloca intenção em todas as coisas que me proponho a fazer. Desde um café da manhã até trabalhar, responder um email… Às vezes sou lenta inclusive porque fico pensando demais nas coisas, mas no bom sentido, pois levo a sério. A paixão, a dedicação, o comprometimento para mim são ferramentas fundamentais para desenvolver um bom trabalho.
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G |Você vive para trabalhar?
GM |Eu não. Consigo ter um equilíbrio maravilhoso na minha vida. Trabalho com vinho porque gosto muito, porque tenho facilidade em trabalhar com vinho, mas não sou uma pessoa que se sente pressionada a estar sempre trabalhando. Eu acordo tarde, tomo meu café da manhã com calma, brinco com meu filho. Quando dá para viajar, viajo bastante. Tenho meus amigos, divido bem as coisas. Como o vinho é trabalho, mas também parte integrante do meu cotidiano, não acho que vivo para trabalhar. Isso está bem separadinho na minha cabeça. No isolamento, consegui instituir uma rotina minha para não chegar nesse lugar de bagunça. Quando tenho projetos que preciso lançar com maior velocidade, óbvio que coloco mais energia, mas continuo tendo meus dois dias de descanso na semana. Acho super importante ter equilíbrio.
Se você entende vinho simplesmente como o conteúdo de uma garrafa, não entende nada. Existe muita coisa além, as possibilidades são infinitas