CV: Cleissa Regina Martins
Primeira roteirista negra a ter um projeto autoral na TV Globo, ganhou um Leão de Ouro pela produção ‘Juntos A Magia Acontece’, pela qual também foi a mais jovem indicada ao prêmio da associação de roteiristas, aos 25 anos
Em um evento em outubro de 2016, Cleissa Regina se viu, de repente, frente a frente com o ator Milton Gonçalves e toda sua simpatia e disponibilidade. O encontro foi o ponto de partida para que Cleissa, na época uma estudante de ciências sociais e pesquisadora de cinema e desigualdade, se dedicasse integralmente à criação de um roteiro em que Milton fosse o protagonista. O resultado foi o especial natalino “Juntos a Magia Acontece” (2019), da Globo, com participação de gigantes como Zezé Motta e Camila Pitanga.
A produção foi revelada pelo Laboratório de Narrativas Negras para o Audiovisual, uma parceria da Globo com a FLUP (Festa Literária das Periferias), do qual Cleissa participou. O especial, sobre uma família que perde sua matriarca às vésperas do Natal, alçou a roteirista à primeira mulher negra a ter um projeto autoral no canal, uma indicação ao prêmio ABRA (Associação Brasileira de Autores Roteiristas) e chegou até o Festival de Cannes, onde recebeu um Leão de Ouro.
Antes de trilhar o caminho no audiovisual, Cleissa queria mudar o mundo, e achava que encontraria as ferramentas necessárias no curso de ciências sociais — mas se enganou. Foi depois de um intercâmbio e um curta experimental ao lado de três amigos nigerianos que entendeu o poder do cinema. “O cientista político vê tudo que está errado, mas na hora de resolver, não é bem com ele.”
Mesmo assim, Cleissa terminou a faculdade. Hoje, faz mestrado em comunicação na UFRJ, enquanto equilibra o trabalho na Globo e o desejo pela autonomia em projetos autorais. Quando conversou com a Gama, a carioca estava em São Paulo para gravar um desses projetos, sobre jovens negros na indústria da moda, ao lado de personagens como Isaac Silva e Jal Vieira.
Na entrevista a seguir, ela conta sobre os desafios da profissão, o privilégio do apoio familiar e do acesso à educação, e a importância de trabalhar com o que acredita.
Arquivo pessoal
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G |O que te trouxe até aqui?
Cleissa Regina |Minha família, com certeza. Não só em termos de uma estrutura financeira, que eu sei que não é comum para pessoas negras, mas porque os meus pais me envolveram muito em coisas culturais e artísticas desde criança. Eles também sempre me deram muita liberdade para escolher o que eu queria fazer, o que foi importante para mim, que troquei de área. Comecei no curso de ciências sociais, mas já com um gosto no cinema e, desde o início, essa troca não foi um problema para eles. Foi algo que me ajudou e me fortaleceu. Também fiz alguns intercâmbios e mais uma vez eles apoiaram, mesmo cheios de medo porque sou filha única. Por último, o que me trouxe até aqui foi com certeza o acesso a uma educação pública de qualidade, tanto na universidade, quanto antes dela. Estudei a minha vida toda em escola pública, um colégio no Rio de Janeiro de muita qualidade, que foi essencial na minha formação.
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G |O que te encantou no audiovisual?
CR |Desde pequena minha família sempre foi muito de alugar VHS. Vivia vendo e revendo meus favoritos. Meus pais eram as pessoas da família que tinham máquina fotográfica e tiravam fotos dos eventos e almoços juntos. Então, acho que sempre estive muito ligada ao audiovisual. Mas quando terminei o ensino médio em 2013, que foi um momento muito específico do Brasil, uma efervescência política, manifestações, passei bastante tempo pensando sobre todas as questões sociais. Já gostava de cinema naquela época, mas achava que o curso era para pessoas ricas, que seguir comunicação não me daria o poder de transformar. Em 2014, entrei em ciências sociais na UFRJ e logo comecei a fazer pesquisa, mas ao mesmo tempo fui fazendo cursos de cinema como hobby. Até que em determinado momento eu meio que entendi que não daria para mudar o mundo daquela forma. Percebi que é muito mais sobre o trabalho que fazemos, independente da área. Em ciência sociais a gente estuda muita coisa, vê muita coisa errada, mas não temos as ferramentas para mudar. Foi quando comecei a seguir a direção do audiovisual. Em 2017, fui para o Canadá, onde conheci três amigos nigerianos, com os quais eu produzi um curta experimental. Quando nos conhecemos, percebi que nossas vivências e questões raciais eram muito distintas, apesar de sermos todos negros. E quando terminamos a produção do curta, eles disseram: “Agora te entendemos, Cleissa”. Aquilo foi mágico. Percebi que era pelo audiovisual que eu poderia me comunicar e até transformar. Mesmo assim, terminei ciências sociais, que me deu ferramentas e habilidades para mergulhar no audiovisual.
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G |O que você diria para alguém que pensa em trilhar o mesmo caminho?
CR |Diria para a pessoa estudar e pesquisar bastante, saber quais são as referências que se identifica, o que inspira, o que quer fazer e o que não quer fazer também e, claro, tentar sempre melhorar. Porque os desafios são inúmeros, mas quando a gente acredita no nosso poder e nas nossas vontades, a gente continua, se mantém de pé e dá mais passos à frente. Acho que é essencial ter coragem de propor coisas novas. O audiovisual precisa disso. Mais do que seguir o que já está sendo feito, é preciso ter coragem para arriscar e propor o novo.
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G |Quais têm sido seus maiores desafios?
CR |Para além de toda questão racial, tem o fato de eu ser jovem também. Aos 25 anos, eu gosto especificamente de ter autonomia para criar, prefiro estar em projetos em que eu possa ser mais autoral e sei que é difícil estar nesse lugar sendo tão jovem. A sociedade já está reconhecendo a importância de ter pessoas negras em salas de roteiro, vários roteiristas têm chamado profissionais negros para trabalhar junto, o que é muito importante. Mas acho que os tomadores de decisão têm que entender que pessoas negras precisam estar na autoria, precisam ser os criadores principais. Além de saber que eu preciso fazer com que os tomadores de decisão confiem em mim enquanto uma mulher negra que veio da periferia, eles também precisam confiar em mim como uma jovem de 25 anos. O desafio para mim é ver essas pessoas, que dão dinheiro para os projetos, entenderem que pessoas negras podem e devem estar nesse lugar de criador, tomando as decisões de um projeto. É um lugar que eu quero estar. Para realmente vermos uma mudança não podemos esperar. Pessoas negras precisam estar nesse lugar agora.
Arquivo pessoal
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G |Como você enfrenta o machismo e o racismo no mercado de trabalho?
Cleissa Regina |Tento sempre estar em contato com outras pessoas negras da área. Acho que é sempre importante falar, saber o que está acontecendo e entender que às vezes não é só com a gente que aquilo acontece, além de pensar como podemos mudar essa situação, juntos. Mas acho que também é importante olhar para o espaço de mulheres negras que estão onde eu gostaria de estar. Infelizmente essas oportunidades para mulheres negras estão muito mais lá fora, como Issa Rae, Michaela Coel, que são mulheres negras que ocupam esse lugar de fazer os próprios projetos. Isso precisa acontecer no Brasil. Dar algumas negativas também tem sido uma forma de enfrentar o racismo e o machismo. Eu recebo muitos convites e, quando vejo que é um trabalho que vai me fazer mal ou quando me parece algo problemático, tenho preferido recusar. Acho que é um movimento importante, entender o poder de dizer não e estar fora de certos espaços. Também sei que faço isso de um lugar de privilégio — fora que é algo arriscado. Mas para mim dizer não para o que eu não acredito tem sido uma forma de enfrentamento.
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G |Você se considera uma pessoa otimista?
CR |Como uma pessoa que se formou em ciências sociais, eu não me considero otimista. Mas pensando no meu trabalho atual, de uma roteirista que gosta do realismo, gosta de contar histórias da vida real, eu me faço otimista para acreditar que é possível superar esses obstáculos, porque se não eu paro, não faço mais nada. Apesar de não ser uma pessoa otimista pela formação que tive, eu tento forjar esse otimismo, para continuar, acreditar no meu trabalho, e assim crescer e transformar.
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G |Qual é a importância da formação acadêmica na sua área?
CR |Foi muito importante. Minha formação acadêmica em ciências sociais e com alguns cursos em comunicação foi muito dura, cheia de pesquisas, intercâmbios, o que me deu ferramentas e habilidades que hoje eu uso no audiovisual. Me deu também um outro olhar para ver a realidade, entender e usar isso nas histórias que eu escrevo. Acho que me fez me sentir muito segura também, respondeu várias questões que eu tinha — apesar de que para criar precisamos ter alguma coisa fora do lugar. Mas a formação me ajudou a organizar as minhas ideias, me deu uma capacidade de observação importante. A academia tem vários desafios, mas eu gosto de estar nesse contato com a pesquisa. Estou agora no mestrado na UFRJ, e é bom estar pensando em outras questões, trazê-las para a criação, o que me ajuda a enxergar histórias que eu provavelmente não veria.
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G |Qual é a sua missão na sua profissão?
CR |Para mim é contar boas histórias, instigar as pessoas. Falamos muito em emocionar, e claro que tem isso, mas também quero inspirar, fazer as pessoas pensarem, gerar alguma reflexão, novas conversas, fazer o pensamento sair do lugar. Quero que as pessoas vejam coisas que elas não viam. Claro que quero contribuir com o debate racial e a grande maioria das minhas histórias, se não todas, são com personagens negros. Mas para mim o foco é contar histórias na linguagem audiovisual. Fazendo isso bem, e tendo os personagens negros, acho que acabo contribuindo com a questão política. As duas coisas andam juntas.