O impacto do estigma para a saúde mental de crianças e adolescentes

Apesar de lidar com a ansiedade desde muito nova, o transtorno da estudante Júlia Tomás se agravou depois que o avô morreu. “Sou filha de mãe solteira, e meu avô era uma figura paterna. Perdi ele quando tinha 13 anos e não soube lidar com isso” , conta.

MAIS SOBRE O ASSUNTO
A saúde mental de crianças e adolescentes na volta às aulas
Jovens, futuro e saúde mental
Meditação desde criancinha

A piora do quadro de ansiedade, que teve como agravantes ainda a perda da irmã e a internação da mãe em uma Unidade de Tratamento Intensiva, se refletiu no rendimento escolar da jovem, que teve uma queda brusca. Ela também começou a se automutilar e a socializar cada vez menos. Com raiva e estresse acumulados, descontava parte da tristeza na comida, como forma de fugir da realidade.

Tomás considera que a terapia, que fazia desde criança, foi seu principal apoio no período. A mãe, que também enfrentava um processo de luto, conseguiu acolhê-la quando a adolescente começou a se automutilar. Conforme o comportamento se repetiu, no entanto, ela chegou a dizer que “era frescura, que eu estava querendo chamar atenção”, lembra a jovem.

Mas, depois de um tempo, a mãe voltou a se aproximar, e a garota foi acolhida tanto por ela quanto por amigos e outros familiares. “Tive apoio de muitas pessoas. De outras nem tanto”, considera Tomás. “Eu era bem fechada para falar dessa questão, nem todo mundo sabia.”

Apesar de ser um tema cada vez mais debatido na sociedade, o estigma em relação à saúde mental é uma realidade para muitos jovens, de acordo com o psiquiatra, neurocientista e pesquisador da Unifesp Rodrigo Bressan. Sua origem, segundo ele, está associada a uma aversão histórica. “A sociedade ainda atribui a quem tem um transtorno mental rótulos como preguiçoso, fraco, com baixo desenvolvimento intelectual. Ninguém quer estar nessa posição”, aponta.

Bressan, que é fundador e presidente do Instituto Ame Sua Mente, voltado à pesquisa, conscientização e promoção da saúde mental no ambiente escolar, dá como exemplo um estudo realizado pelo Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP do qual participou ao longo de 12 anos, envolvendo 2.500 crianças brasileiras. Após três anos, apenas 20% dos jovens com sintomas de transtornos estavam sendo tratados.

“De fato muitos não têm recursos, mas o principal motivo foi o preconceito dos pais”, analisa o pesquisador. “E isso quando a gente mostra o problema baseado num estudo, com médicos e pesquisadores. Na sociedade em geral, a taxa é muito maior.”

A infância e a adolescência são momentos cruciais quando se fala em saúde mental. Um estudo do Instituto Cactus apontou que 75% das condições relacionadas a transtornos psicológicos começam a surgir até os 24 anos de idade, e 50% até os 14. As condições de saúde mental são responsáveis por 16% da carga de doenças e lesões em pessoas de 10 a 19 anos, de acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde. E um estudo recente realizado por pesquisadores britânicos aponta que crianças e adolescentes vêm apresentando sintomas de ansiedade e depressão mais cedo.

“Quando a gente tem filho, é quase impensável dizer que ele tem um problema de saúde mental”, considera o psiquiatra. “Tem muito estigma para patologias como depressão, ansiedade, psicose. Aí o pai vai buscar qualquer alternativa menos o diagnóstico psiquiátrico.”

Segundo Bressan, jovens com sintomas de transtornos que não recebem tratamento podem ter um comprometimento nas relações, ampliando inclusive as chances de comportamentos violentos, uso de drogas e reduzindo consideravelmente as perspectivas acadêmicas. “O tratamento pode diminuir esses sintomas, evitando até uma progressão da doença”, complementa a psicóloga Daniela Pinotti, que atende adolescentes e adultos. “E então, muitas pessoas conseguem trabalhar bem mesmo com os sintomas, se desenvolvendo de forma muito melhor.”

Sofrimentos invalidados

A psicanalista Thaís Basile considera que o sofrimento de crianças e adolescentes foi historicamente invalidado na nossa cultura. Os jovens, segundo ela, só começaram a ser vistos como detentores de direitos pouco tempo atrás, a partir de mecanismos como o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990. Antes disso, eram considerados continuações de suas mães, posses de seus cuidadores, afirma a especialista.

E a sociedade ainda vem lidando com o sofrimento psicológico “como fraqueza, algo de que as pessoas sozinhas poderiam se livrar ou resolver se quisessem”, aponta a psicanalista, autora de livros como “Nossa Infância, Nossos Filhos” (Matrescência, 2020) e o recente “Atravessando o Deserto Emocional” (Paidós, 2024).

“É bastante importante que o sofrimento seja identificado para que haja acolhimento, validação das dificuldades e entendimento dos motivos, e não para que patologizemos ou moralizemos a criança ou adolescente e paremos por aí”, afirma Basile.

A negação da busca de um tratamento pela família vem também de uma imagem pejorativa da saúde mental na sociedade, em que compreender sua origem seria uma busca por culpados, segundo Pinotti. “Apesar de ser um problema que atinge a todos, parece que significa uma falha na atenção, no cuidado, no afeto que essa criança ou adolescente recebeu.”

Mas, de acordo com a psicóloga, identificar sintomas na infância e adolescência, fases naturalmente marcadas por mudanças e desenvolvimentos, não é tarefa fácil. Ela tratou do tema no livro de ficção “Eu, Bernardo” (Maralto, 2023), no qual um adolescente em terapia relata sua luta contra transtornos mentais e a falta de compreensão da família.

Uma das principais formas de identificar esses sintomas, aponta a profissional, é observar se o comportamento do jovem se destaca em relação ao dos colegas. Uma criança muito mais irritadiça, cujas ações dessa natureza aconteçam com frequência e intensidade consideráveis, deve passar pela avaliação mais cuidadosa de um profissional.

“Outro ponto fundamental é o quanto essa característica dificulta a manutenção das atividades no cotidiano”, acrescenta Pinotti, que cita um exemplo prático de um transtorno: “Se alguém precisa lavar as mãos antes de toda tarefa, o mundo acaba ficando muito mais difícil para essa pessoa”.

Diagnóstico e estigma

A ortodontista Juliana Matsuoka, 45, considera que o diagnóstico de TDAH (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade) do filho Lucca, 13, foi crucial também para os pais. “Foi muito importante para a gente ter mais paciência e entendê-lo”, conta. Até então, eles não sabiam como lidar com a impulsividade, a falta de atenção e a dificuldade que o adolescente tinha com regras e frustrações no dia a dia.

Embora o adolescente tenha bom desempenho escolar, ela conta que o filho costumava chorar por problemas simples, como errar numa apresentação ou esquecer material escolar. Também se cobra em excesso às vésperas de provas, o que compromete seu bem-estar psicológico. “Duas semanas antes ele já está sofrendo, com sintomas de ansiedade”, revela a mãe.

O comportamento acabou gerando um afastamento em relação aos colegas da mesma idade, bullying e até problemas com professores. “Por causa do jeito impulsivo, ele quer responder as questões da aula e não deixa espaço para os outros colegas”, conta Matsuoka. “A professora foi meio rude com ele, e precisamos fazer uma reunião para explicar que ele tinha TDAH e buscar alternativas.”

Matsuoka também chegou a escrever para um grupo de pais pedindo que falem com os filhos sobre o tema, para evitar casos de bullying com o adolescente. “Por não ser uma questão visível, as pessoas não entendem, dão risada, porque não sabem o que se passa. Pensam que ele é só sem educação.”

Segundo Pinotti, o diagnóstico e conscientização são de fato formas essenciais de lutar contra o estigma. “Com o TDAH, se a gente entende uma criança que não consegue se concentrar ou ficar sentada como rebelde, ela não vai ser cuidada e até tachada com um comportamento negativo”, afirma a psicóloga. “Aí você deixa que esses lugares qualificadores se cristalizem sobre esse jovem.”

Além disso, oprimir ou responder de forma violenta pode afastar o diálogo, como aponta Bressan. “As possibilidades só aumentam quando você ensina os pais a conversarem com os adolescentes”, considera.

Para a psicanalista Thaís Basile, varrer os sintomas para debaixo do tapete acarreta problemas ainda maiores, que acabam se fixando no comportamento do jovem. “Felizmente ou infelizmente, as famílias mais saudáveis são aquelas que conseguem ser contraponto ao que a cultura ensina: distanciamento, repressão e violência no educar.”

Esse tipo de resposta negativa dos pais pode até gerar ou agravar os sintomas e transtornos. “Se você não olhar para a saúde mental de uma pessoa com uma depressão leve, pode surgir uma maior ansiedade ou até uma ideação suicida com mais frequência. Um problema vai puxando o outro”, aponta Pinotti.

Buscando caminhos

Caso a família desconfie que um jovem pode estar enfrentando um transtorno psicológico, Bressan recomenda incentivar o diálogo com a própria criança ou adolescente e manter contato próximo com a escola. “A ideia é capacitar a sociedade, os jovens, pais e professores para tratar quem precisa.”

Basile reforça que o apoio profissional provê um espaço importante para que o jovem expresse suas angústias e seja compreendido, mas que ele não vai à terapia para ser transformado. “Se o ambiente ao redor não mudar minimamente, o sofrimento pode continuar”, acrescenta. Por isso, a psicanalista defende que pais e cuidadores busquem também apoio psicoterapêutico ou análise.

A jovem Júlia Tomás, hoje com 19 anos, lembra que passou a ter crises de ansiedade frequentes após a morte da irmã. O apoio de familiares, amigos e principalmente a terapia foram fundamentais no período. Hoje, ainda lida com a ansiedade diariamente, mas ela aprendeu a controlá-la e a lidar melhor com seus efeitos.

“Os jovens enfrentam muita pressão da sociedade. Se a gente não consegue realizar algo, começa a se considerar um problema e entra nesse ciclo”, diz a estudante. “Quando um jovem inicia um tratamento psicológico, a família tem que entrar junto, toda a sociedade deveria. Buscar um profissional é de extrema importância, você entende junto com ele a melhor forma de resolver o problema para que não se agrave. Queria ter ouvido tudo isso quando precisei. Hoje tenho total consciência.”

Parceria institucional