Ynaê Lopes dos Santos: 'O racismo científico opera até hoje no Brasil' — Gama Revista

Ynaê Lopes dos Santos: ‘O racismo científico opera até hoje no Brasil’

Historiadora, professora e escritora fala sobre a escravidão como alicerce da independência do país e de como o racismo brasileiro é formado por silêncios, omissões e não políticas que perduram até hoje

Isabelle Moreira Lima 15 de Setembro de 2022

O Brasil fez sua independência sobre o alicerce da ecravidão de pessoas negras trazidas da África. Essa foi uma escolha consciente, baseada na economia da época, mas também no chamado racismo científico que, resumidamente, fazia crer em um sistema hierárquico de raças. Essa “justificativa científica” era suficiente para que a escravidão fosse vista como um processo civilizatório e fosse mais facilmente aceita.

A reflexão está na entrevista abaixo, com a historiadora paulista Ynaê Lopes dos Santos, doutora em história social pela Universidade de São Paulo e professora no Instituto de História da Universidade Federal Fluminense. A Gama, ela falou sobre o período há 200 anos em que o país tornou-se independente de Portugal abrigando como capital a cidade que contava mais pessoas escravizadas em todo o mundo, o Rio de Janeiro.

 Ricardo Borges

Na conversa, a historiadora defende que o racismo científico, vigente há 200 anos, perdura na sociedade brasileira. “O racismo no Brasil é viscoso, é difícil de você pegar. A leitura de muita gente é ‘porque eles [negros] eram incompetentes, é porque eles não tentavam o suficiente’. O racismo científico opera até hoje, com alguns exemplares negros que servem como exemplo de meritocracia”, afirma, e cita o exemplo do ex-ministro Joaquim Barbosa como o único negro do Supremo Tribunal Federal, em relação a uma sociedade composta 51% por pessoas negras. “Ou você entende que isso é uma representação do racismo, ou você continua reproduzindo a ideia absolutamente falaciosa da meritocracia.”

Autora do livro “Racismo Brasileiro – Uma história da formação do país” e consultora da série “Independências”, de Luiz Fernando Carvalho para a TV Cultura, e do Projeto Querino, da Radio Novelo, Ynaê Lopes dos Santos fala sobre o apagamento de personagens negros relevantes da história e de como seu resgate deve ser feito de forma estudada para que não se tenha apenas “um álbum de figurinhas”. Para ela, é preciso recontar essa história, dar combustível para a criticidade e a reflexão. “Falta um olhar crítico profundo de quem está produzindo material didático no Brasil. (…) Temos que repensar não exatamente o que se conta, mas também como se conta essa história”, ela afirma na entrevista, que você lê a seguir.

A escravidão era uma instituição que alicerçava a colônia e a elite brasileira optou por manter esse alicerce

  • G |O que a manutenção da escravidão na Independência nos conta desse Brasil que começava?

    Ynaê Lopes dos Santos |

    Há uma questão identitária, que passa por status social e pelo exercício do poder político. Toda a oligarquia brasileira tinha um chão comum que era o lugar de proprietário de escravizados. O tráfico transatlântico foi operado no Brasil de forma diferente de outras regiões das Américas, com a forte participação de colonos brasileiros no tráfico. Isso fez com que a quantidade de africanos escravizados que chegavam ao Brasil fosse muito alta. Era um comércio bilateral, sem intermediação com a metrópole, o que barateava esse escravizado e a viagem. Isso permitiu que a compra pudesse ser feita a prazo. E, por mais caro que um escravizado fosse, isso permitiu que os mais humildes pudessem comprar escravizados. Era comum que eles comprassem a prazo e usassem o dinheiro vindo do trabalho do escravizado para pagar as parcelas. No final do período colonial, a escravidão era a forma de propriedade privada mas capilarizada do Brasil e o que garantia o exercício da cidadania de um brasileiro era possuir um escravizado. O recorte é censitário: para poder votar, as pessoas tinham que ter um x de renda anual. O que garantia essa renda era a posse de uma escravizado. A escravidão era uma instituição que alicerçava a colônia, e essa elite brasileira optou por manter esse alicerce. Poderia ter feito diferente, poderia. Você tem inclusive projetos, como o próprio Bonifácio tentou apresentar e não conseguiu, de uma abolição gradual da escravidão, de uma reforma agrária, de um conjunto de ações que poderiam ser feitas para que o Brasil entrasse numa era mais capitalista clássica.

  • G | Por que essa passagem sobre o José Bonifácio ter um projeto de abolição parece tão inédita? Por que não estudamos isso na escola?

    YLS |

    Por que não estudamos de forma complexa esse momento crucial de formação da nação e de vários projetos políticos em disputa? Por que não se estuda os conflitos da história do Brasil? Temos uma perspectiva construída por essa mesma oligarquia escravista de um país pacífico, sem grandes conflitos. O que é talvez a maior inverdade da história do Brasil, junto com a nossa falaciosa ideia de democracia racial. O que seria do Brasil se a gente contasse essa história? Se a gente contasse que lá atrás um dos políticos mais importantes estava sim pensando um outro país, e que uma série de movimentos sociais propunham outras formas de construir uma nação. Que a gente possa aprender a história desse grito do Ipiranga levando em consideração que existiram muitas disputas, muitos conflitos políticos e vários projetos de Brasil, porque isso existe hoje. Temos um olhar um pouco mais complexo para o momento atual, mas não lançamos esse olhar para o passado. Pensamos o passado de forma muito anacrônica, como se fosse separado de tudo e a única possibilidade de ser. E é importante saber quais existiram para aprender com essas outras possibilidades, outras formas de pensar o país.

  • G |O jeito como a história da Independência é contada na escola mudou nas últimas décadas?

    YLS |

    Temos hoje uma perspectiva um pouco menos ufanista e mais crítica à figura de Dom Pedro; uma perspectiva que de certa maneira está muito relacionada com uma historiografia mais marxista, mas que nesse caso eu não concordo, que é questionar que Independência foi essa. Acho que isso simplifica justamente essa escolha política de virar um país independente, soberano, com escravidão. Essa escolha é uma decisão política, é um projeto de nação que está sendo gestado. Falta uma visão um pouco mais crítica para os personagens, sobretudo personagens brancos, e uma perspectiva mais ampla de pensar essas escolhas políticas e que permita se enxergar outras agendas: estudar quem foi a Maria Filipa Oliveira; entender como algumas comunidades indígenas se atrelam às forças militares para expulsar os portugueses. Falta um olhar crítico profundo de quem está produzindo material didático no Brasil. Fui professora do Ensino Fundamental 2 durante um tempo, e os meus alunos não gostavam de história do Brasil. E uma das razões é porque diziam que era sempre a mesma coisa. “Não tem uma guerra.” Temos que repensar não exatamente o que se conta, mas também como se conta essa história.

Os policiais prendiam preto, não importa se era liberto. A ideia da suspeição como princípio nasce no Brasil nesse momento

  • G |Como resgatar esses personagens que foram ocultados pelo racismo e ter uma história crítica? A imprensa negra que você cita no livro seria uma fonte para isso?

    YLS |

    A depender da época, a imprensa negra é produzida por esses personagens. Se você fala da imprensa negra na década de 1830, estamos falando do Visconde de Jequitinhonha, o Francisco Jê Acaiaba de Montezuma, uma figura incrível, e que atuava nessa imprensa negra. Dois movimentos têm que ser correlatos: tem que ter mais personagens, por uma questão inclusive de representatividade, para que o aluno e a aluna negra ou indígena abram um livro didático e entendam o lugar que seus antepassados tiveram na história. Mas fazer disso um álbum de figurinhas não leva a gente a muitos lugares. Meu medo é esse. Temos que mudar o conteúdo e forma. Ao mudar a forma, temos necessariamente que trazer mais conteúdo. Se eu quero pensar a história do Brasil a partir de outra perspectiva, tenho que ter outra perspectiva para contar. A Maria Felipa é uma mulher negra, a base da sociedade brasileira, que lutou pela independência do país. Como num país como o Brasil, que a maior parte da população é composta por mulheres negras, não se estuda isso?

  • G |Você escreve no livro que liberdade e escravidão coexistem. Como isso é possível?

    YLS |

    Temos uma perspectiva muito anacrônica, muito do nosso tempo, que é pensar que o oposto de escravidão é liberdade. Durante a vigência da escravidão, a oposição não se dá entre escravizado e livre, mas entre os dois polos da relação: o escravizado e o proprietário de escravizado. A liberdade é algo que acontece entre esses dois lugares. Por isso, você tem escravizados que compram a sua liberdade e se transformam em proprietários de escravizados, porque essa é a estrutura e é tão difícil combater o sistema. E por isso que essa identificação entre os proprietários de escravizados é tão forte, essa é a grande sacada da nossa Constituição, que é permitir que esses egressos do cativeiro possam ser cidadãos também, possam ser proprietários. A alforria no Brasil tem essa função para a classe proprietária, que é mostrar para esse escravizado, diferentemente do que acontecia nas colônias britânicas, que aqui você podia comprar sua liberdade ou adquirir sua liberdade, a depender do seu proprietário, por mais que não tivesse nenhuma lei que garantia isso. Mas claro, o Brasil não foi um mar de alforriados, muito pelo contrário. O percentual da população escravizada que conseguia comprar alforria não passava de 3%. Quase todos escravizados que chegam aqui ou que nascem aqui nessa condição morrem nessa condição.

  • G |Como o racismo científico, vigente naquela época, podia explicar essa situação de um ex-escravizado que agora vira cidadão?

    YLS |

    O racismo científico é uma pseudociência que acreditava na existência de raças humanas e na hierarquização entre essas raças, resumindo bem. Havia situações muito particulares de ex-escravizados que compram escravos. Sem um fator racial para distinguir essas pessoas, o que geralmente acontecia era que um escravizado nunca comprava alguém da sua origem. Mas isso é muito residual perto do que foi a escravidão no Brasil, meio por cento dos proprietários de escravidão. Outra coisa: a liberdade, em tese, não tem cor. A escravidão tem, e é essa a questão do racismo científico. O racismo científico vai ajudar a sustentar a ideia de que você pode sim escravizar os negros porque eles são inferiores. O que o racismo científico quer dizer é que é um fator de civilização: é só por meio da escravização que esses africanos vão ser civilizados. Havia políticos brasileiros que falavam isso.

  • G |O Rio de Janeiro foi a cidade com mais pessoas escravizadas do mundo nessa época. Pessoas negras escravizadas, libertas e livres se encontravam e cruzavam em determinados espaços públicos. Como era essa convivência? Ela deu origem a movimentos sociais e políticos?

    YLS |

    Era a corte do império do Brasil e, antes, a do português. Nenhuma cidade das Américas teve o peso que o Rio de Janeiro teve a partir de 1808. O aparato público de repressão era muito forte. A intendência geral de polícia da corte, a instituição que vai fundar a Polícia Militar no Brasil, tinha como uma das principais funções captar escravos foragidos. Eles eram identificados, embora não fosse uma forma considerada adequada naquela época, pela cor. Os policiais prendiam preto, não importa se era liberto. A ideia da suspeição como princípio nasce no Brasil nesse momento. O escravizado é sempre negro e tá andando sozinho, eu vou prender e depois vou perguntar se é liberto, se é livre, que condição tem. Isso faz com que, numa cidade como o Rio de Janeiro, você não tenha uma grande sublevação de escravizados. Mas você tem uma vida que se recria: irmandades negras, como São Elesbão e Santa Efigênia, e a Nossa Senhora do Rosário, cujas igrejas existem até hoje. Suas funções são diversas: garantir um enterro decente para os seus membros, compra de alforria, etc. Havia as mulheres que vendiam angu, que era a comida mais consumida pelos escravizados. Então em uma cidade de escravizados, você tem um mercado para os escravizados. Essa é uma característica da escravidão urbana, o escravo urbano arrenda o seu trabalho para outro, para um terceiro. O nome que se dava para isso é escravo de ganho. Por exemplo: eu sou sua escravizada e preciso pagar R$ 400 por mês ao proprietário. Como eu vou conseguir essa quantia, onde eu vou dormir, como eu vou comer isso é um problema meu. Inclusive, se eu conseguir mais de R$ 400, o dinheiro vai ficar comigo. Tem muitos escravizados que vão roubar outros escravizados para conseguir o dinheiro mensal. Na cidade havia uma possibilidade de autonomia muito grande por parte dos escravizados. Eles vivem sobre si, muitos moram longe dos seus proprietários, o que facilita a formação de outras redes de solidariedade. O estado ocupava um lugar do feitor e isso de certa maneira definia a dinâmica dessa cidade, que era negra. A Zona Sul era repleta de quilombos. A Lagoa Rodrigo de Freitas tinha muito, a Gávea, a Rocinha. Havia múltiplas formas de resistência e algumas tentativas de insurreições, que foram debeladas muito rapidamente.

A elite brasileira aprende como marginalizar a população negra sem dizer que é porque ela é negra

  • G |Como a independência do Haiti influenciou a nossa?

    YLS |

    A independência do Haiti é um divisor de águas da história do Atlântico. É a primeira vez que uma revolução feita por escravizados tem sucesso, acaba não só com a escravidão como instituição, mas com o antigo regime. Nada foi mais radical na história do ocident, uma mudança de paradigma, a primeira derrota de Napoleão Bonaparte. De certa maneira, a independência do Brasil está muito relacionada à revolução do Haiti. Quando o Bonaparte perde, ele muda o seu projeto imperial e aposta em continuá-lo dentro da Europa, criando o bloqueio continental. E quem tem que vir para cá? Dom João e a família real. Ao mesmo tempo, a revolução do Haiti também é lida por essa elite brasileira para entender os meios pelos quais ela poderia manter a escravidão. Ela redobra a sua atenção para o fato, por exemplo, que você não pode ter um percentual de escravizados maior do que de gente livre. Isso nunca aconteceu no Brasil. Mesmo o Rio de Janeiro sendo uma loucura, você nunca passa de 40% no número de escravizados. A alforria tem um fator muito importante nesse sentido. É um grande know-how que essa elite proprietária já tinha e amplia depois de uma leitura a contra pelo do Haiti.

  • G |O que o racismo da Independência, daquela época, tem a ver com o racismo de hoje?

    YLS |

    Não é o mesmo. Tem uma uma diferença muito significativa que é a instituição escravista. A escravidão era uma instituição que justificava e era justificada pelo racismo. Esse racismo se perpetua, tanto que, com o fim da escravidão, a situação da população negra não melhora. O problema está na percepção da população branca de que os negros são inferiores. Outro aprendizado da elite é que você não precisa racializar o seu discurso para garantir a exclusão dos negros. A elite brasileira aprende como marginalizar a população negra sem dizer que é porque ela é negra. A população negra é proibida de estudar e determina-se que quem pode votar é quem sabe ler e escrever, afinal, há mais negros que podem comprovar uma renda do que negros alfabetizados. É uma combinação de omissões, de silenciamentos, de não políticas que organizam esse racismo no Brasil, que é viscoso, é difícil de você pegar. Não é como nos Estados Unidos que há leis como as Jim Crow [leis de segregação promulgadas nos séculos 19 e 20]. Aqui não, a leitura de muita gente é “porque eles eram incompetentes, é porque eles não tentavam o suficiente”. O racismo científico opera até hoje, com alguns exemplares negros que servem como exemplo de meritocracia. Em um país que tem 51% da população negra um ministro do STF ser negro é… Ou você entende que isso é uma representação do racismo, ou você continua reproduzindo a ideia absolutamente falaciosa da meritocracia.

Produto

  • Racismo Brasileiro – Uma história da formação do país
  • Ynaê Lopes dos Santos
  • Todavia
  • 2022, 336 páginas

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Quem é a mulher negra de turbante?

A fotografia que abre esta entrevista, “Mulher negra de turbante”, feita por volta de 1870 e de autoria de Alberto Henschel, é célebre na história da fotografia brasileira. No entanto, a identidade da retratada jamais ficou conhecida. Não se sabe nome, idade, grupo étnico ou ocupação da mulher. Em ensaio publicado na revista Zum, do Instituto Moreira Sales, o antropólogo Alexandre Araujo Bispo escreve que isso é também uma síntese do racismo, “máquina de morte onde pessoas são transformadas em coisas que retroalimentam o modelo econômico com efeitos na cultura, na política e na sociedade”. Ele avança: “O próprio registro fotográfico, um instante efêmero na vida da mulher – talvez fruto de imposição dado as relações de poder entre brancos e negros existentes na segunda metade do século 19 – guarda algo da estrutura social de opressão a que a retratada, mesmo se fosse liberta, estava sujeita”.

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