“Tem horas que a gente quer só falar de amor”
Uma conversa com o rapper baiano Hiran sobre seu novo trabalho, “Galinheiro”
“Dá vontade de ter filho, ter neto, de ver mais gente chegando por trás do box embaçado. O mundo não está acabando. Vi começos”, é um trecho publicação de Caetano Veloso sobre o videoclipe de “Gosto de Quero Mais”, canção feita pelo rapper Hiran em parceria com o músico Tom Veloso, filho de Caetano. Essa é uma das músicas que integram o segundo álbum de Hiran, “Galinheiro”, trabalho que combina luta política com a dor dos corações partidos, lançado em julho.
Sua estreia foi em 2018, com o disco “Tem Mana no Rap”, em que o artista rima sobre a própria sobrevivência e reivindica espaço em uma cena, a do rap, predominantemente masculina e heterossexual. “Eu sou gay, o rap é gay e isso vai fazer parte da minha vida. Porque eu sou isso. Mas quero ser reconhecido como um grande artista e ponto. Assim como todo mundo que trabalha duro, se esforça e merece isso”, diz a Gama.
O rapper tem 25 anos, dos quais boa parte vividos em Alagoinhas, interior da Bahia, já jogando com as palavras, mas muito longe do cenário efervescente em que se encontra agora, centrado no Rio de Janeiro e incentivado por grandes vozes da música brasileira.
A gente está aqui e tem de ser normal aqui. Eu sou gay, o rap é gay e isso vai fazer parte da minha vida. Mas quero ser reconhecido como um grande artista e ponto
Hiran viu a vida girar 180° entre 2018, lançamento de seu primeiro álbum, e 2019, quando começou a ser empresariado pela produtora Paula Lavigne. Mudou-se para Salvador, depois para São Paulo e, mais recentemente, se estabeleceu na capital carioca. Teve de se adaptar a um cotidiano radicalmente diferente de modo repentino. Agora, está de volta à casa da família, em Alagoinhas, onde passa a quarentena e lança o álbum remotamente.
O caos da mudança vivida em 2019 e a conjuntura política sombria e impermeável à diversidade são ponto de partida da composição de “Galinheiro”. O disco, feito sob essa paisagem externa nova e confusa, tem ainda uma camada extra: uma história de amor e desilusão. Hiran narra em suas canções o desenvolvimento de um relacionamento turbulento vivido por ele no ano passado — do ápice à fossa, até que, ainda bem, chega a volta por cima.
O hit “Gosto de Quero Mais” tem alguns dos elementos centrais do álbum: a fusão do arcabouço do rap com novos caminhos, como o funk e o violão de Tom Veloso, a política das minorias em pauta por meio da reivindicação do afeto.
O disco tem um pano de fundo que é melancólico, mas o que se ouve é extremamente dançante, crítico e, vez ou outra, debochado, como é o universo de Hiran e de seu trabalho construído totalmente entre amigos. Entre eles, as cantoras Majur, Nininha Problemática e Illy, o também MC DiCerqueira e o babalorixá Ed Oladelê.
O rapper fala a Gama sobre o novo disco, o gosto por compor em momentos sombrios e o fascínio pelo planeta e o espaço.
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G |“Galinheiro” fala de um momento muito pessoal, mas a conjuntura política também é extremamente relevante para o que você canta. Como foi essa fusão de caos interno e externo?
Hiran |É muito doido, porque eu só me vejo compondo quando eu enxergo as coisas ao meu redor caóticas. Quando eu estou muito bem, não consigo compor. E aí eu estava morando no Rio de Janeiro e fiquei muito deprimido, por uma série de coisas. Muito do disco é essa análise que fiz de onde estava, do momento político, do meu papel nisso, de como queria ser visto. E todas as frustrações de enxergar o mundo, porque ainda falta muito pra chegar em algum lugar ideal em relação aos corpos LGBTQIA+ e aos corpos pretos. Ao mesmo tempo, em resposta, eu pensei que precisava falar de amor, me humanizar. É difícil sofrer isso todo dia e ainda ter que ficar falando do tema o tempo todo. Ter que ficar cantando disso o tempo todo. Tem horas que a gente quer só falar de amor, porque também ama e também sente tudo o que tem de humanidade em nós. E eu queria cantar uma coisa que estava sentindo no momento, que foi um relacionamento estranho, rápido, efêmero, mas muito tocante, muito pesado.
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G |A pandemia é um prato cheio para quem gosta de compor na angústia, não?
H |Já fiz umas 60 músicas, completamente diferentes uma da outra. Agora é o momento perfeito, acho que nunca estive tão inspirado na minha vida. Mas eu estou digerindo o “Galinheiro” ainda, vou até ele me render, depois eu vou pensar em outras coisas.
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G | Esse deslocamento geográfico que você percorreu de dois anos pra cá é muito simbólico, não? O que você tem pensado sobre essa rota?
H |Rapaz, é muito louco porque foi uma mudança muito repentina. Eu vivi 21 anos da minha vida entre Alagoinhas, que é minha cidade, e Feira de Santana, onde eu fiz faculdade. Dá menos de uma hora de distância entre as duas. Eu ia para Salvador de vez em quando, não vivia a cidade. Então para mim chegar em Salvador para fazer música já era muito diferente, distante. Fiz um disco, no outro ano já me mudei para São Paulo, saí em turnê, voltei para a Bahia, já fiz o verão com a Daniela Mercury, Psirico, show com Duda Beat e Illy. E logo depois fechei com a Paula [Lavigne], minha empresária, e me mudei para o Rio. Tudo isso foi num período de um ano e meio: de eu estar em Alagoinhas, vivendo o meu bagulho normal, para eu estar com as pessoas me dizendo que Caetano Veloso era meu padrinho. É uma mudança muito louca. E ninguém ensina a gente a lidar com os altos e baixos. É como eu canto na música: entre flashes e crashes, ashes e matches, que é um mundo de altos e baixos constante, de cobranças…E eu não vivia isso nem de longe, era um menino do interior que sonhava muito. Não tinha ideia dos processos, de como funcionava. E aí isso buga quando você está num lugar muito distante. Fiquei muito tempo sem ver minha mãe, sem ver meus amigos, e trabalhando muito. Teve uma hora que eu olhei ao redor e não reconheci as paradas mais. Não reconheci mais.
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G | E quando foi que isso aconteceu?
H |Coincidentemente quando eu lancei “Lágrima”, que é minha música mais pop.E de que eu gosto muito, com Gloria Groove, Baco Exu do Blues, Attooxxa. Até então é meu grande hit, se é que eu tive algum [risos]. E eu não consegui me conectar com aquele momento. Aquela música ali rodando, e eu estar morando em Ipanema, vivendo uma outra vida. Aí entrei num processo de entrar para dentro de mim muito forte. O disco foi criado a partir disso, “Galinheiro” surgiu disso. Eu me vi num galinheiro [risos]. É uma realidade muito diferente. E eu senti muita dificuldade em não me ver ao redor. Olhar ao redor e não ver gente como eu. Mas isso foi só uma das coisas. Muita coisa aconteceu, em vários sentidos, principalmente depois de passar por um relacionamento abusivo e estranho. Eu me sentia meio atraído, não conseguia sair, mas no fundo, no fundo, era maluquice.
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G |Já anunciaram vários nomes da música como seus “padrinhos”. Russo Passapusso, BNegão e agora Caetano Veloso. O que isso quer dizer?
H |Eu não faço a menor ideia. As pessoas que me dizem “não sei quem é seu padrinho” e eu fico só… Acho que tanto o BNegão quanto o Russo me ajudaram muito a sair de Alagoinhas e ir para Salvador, depois para São Paulo. Eles que me puxaram. Mas daí a galera fala muito disso, de ser apadrinhado. Com o Caetano foi depois que eu fechei com a Paula [Lavigne, empresária], a gente passou a conviver, ele escreveu sobre mim, me indicou, colocou na playlist dele. Mas na prática acho que é uma parada muito de ser amigo e, no nosso caso, a gente dialoga com a música. Eles veem a música em mim e a gente fala desse lugar. Eles confiam muito no meu trabalho, e eu admiro muito o trabalho deles. Me dão muita força, me ensinam e ajudam muito. E eu absorvo isso com muita gratidão. Mas eu nunca falei “Você é meu padrinho, né?”.
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G |Seu primeiro disco é bem mais afirmativo com relação a questões identitárias do que o Galinheiro. Mudou o jeito como você vê essas demarcações na música?
H |Eu vejo que eu sou muito fiel aos meus processos e aos meus momentos. Quando eu fiz o primeiro disco, eu precisava falar aquilo e daquele jeito. Porque precisava botar para fora uma coisa que estava entalada na minha garganta há muito tempo, e quando eu fizesse um disco e fosse me lançar no mercado ia ser aquilo. Mas depois de todas as experiências que eu tive, musicais e pessoais, comecei a olhar para outras coisas. Agora eu olho ao redor e vejo Lucas Boombeat, Rico Dalasam, que estava aí desde antes, Guigo, Murillo [da Quebrada Queer], Gloria Groove, vejo muita mana fazendo hip hop. Então agora eu penso que a gente está aqui e tem de ser normal aqui. Não tem que ir para a matéria porque o rap é gay. Eu sou gay, o rap é gay e isso vai fazer parte da minha vida. Porque eu sou isso. Mas quero ser reconhecido como um grande artista e ponto. Assim como todo mundo que trabalha duro, se esforça e merece isso. No “Galinheiro”eu quis apresentar um trabalho que tivesse linearidade, ao mesmo tempo em que fosse diverso em todos os meus eus artísticos. Queria ter tempo, fazer uma obra mais elaborada. Chamar músicos, instrumentistas para tocar. Dialogar com pessoas que não são óbvias para mim. E acho que nesse processo eu compus de um outro lugar, que não era só cuspir as paradas. Agora é refletir sobre as paradas, trazer olhares apurados sobre as paradas. É comer, mastigar, engolir e só cuspir depois.
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G |Seus dois álbuns têm produtores iniciantes, no clipe “Gosto de Quero Mais” também. Isso é uma preocupação sua?
H |Sim. É o primeiro videoclipe da Marina [Benzaquem, diretora], e do Lucas Nogueira, que fez a direção de arte. Mas são pessoas que eu já tinha visto que tinham potencial. Tem muita gente que já tem o espaço, né? O Matheus [Simões, produtor], já tinha feito alguns beats em casa mas nunca tinha feito uma música, e eu vi que ele tinha muito potencial e a gente tinha muita coisa para aprender juntos no processo do estúdio. Fico muito feliz de saber que o meu disco é um projeto meu e dos meus amigos. Que a gente não chamou ninguém de fora, não entrou uma pessoa por acaso ali. Eu conheço todo mundo de dentro de casa, todo mundo que tocou, participou. E ver isso pronto é uma delícia.
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G |E o que você tem pensado sobre o futuro?
H |Eu sou muito doido em relação a isso, fico acompanhando umas coisas muito estranhas em comparação ao que as pessoas assistem, veem e leem. E acredito que a gente fez muito mal ao mundo, e que está começando a pagar por isso. As estruturas que a gente criou, econômicas e sociais, muitos dos princípios nos quais a gente se pautou para viver, durante muito tempo, de explorar e não dar em troca, de desmatar, domesticar animais e fazer deles nossos objetos, agora estamos sentindo isso na pele. Várias coisas sucumbindo. A área externa do planeta tem números alarmantes de sujeira espacial. E aí vejo as pessoas, apesar dos sinais naturais, continuarem todo o processo de olhar pra si e não para o planeta. Elas continuam colocando a nossa existência na frente de qualquer coisa. Ter boas esperanças é difícil, pesar de que dá para pensar que uma hora vai ficar tudo tão extremo que vamos ter que nos obrigar a mudar. Eu tento não pensar se é o fim ou não, se vai ficar tudo bem daqui a pouco ou não, mas tenho esperança de que algo de bom vai sair quando tudo passar. Espero que a gente consiga sair disso seres humanos melhores. Quando for a hora.
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G | Que coisa estranhas são essas que você acompanha?
H |Eu sou um nerd do espaço. Entre ir a uma festa ou ficar em casa e assistir a documentários sobre espaço e fim do mundo, eu vejo os documentários. E entendo que existe uma ordem natural da realidade que não diz respeito a nós, diz respeito a como funcionam as partículas elementares, átomos e, por fim, as galáxias e os sistemas estelares. Nós somos partes de uma ordem natural das coisas, mas por algum motivo parece que a gente saiu do eixo da vida que rege todas as espécies. Nos achamos especiais, criados à exata semelhança de Deus numa galáxia que tem 200 bilhões de estrelas, boa parte maior do que o sol. A ordem natural da realidade envolve a vida que a gente conhece em harmonia com a natureza, mas o humano parece meio suicida. Cria parâmetros cada vez mais fúteis, que se igualam à ideia ultrapassada do homem no centro do universo. Trazendo isso como uma guerra entre os próprios pertencentes à espécie. Mas não somos maiores que a ordem natural da realidade.