Luciana Temer: ‘Nosso silêncio perpetua a violência sexual infantil’
Diretora do Instituto Liberta, a advogada e professora de direito fala sobre sua luta no combate ao abuso sexual infantil e a importância de não tolerar violências
Se você é pai, mãe ou responsável por uma criança ou um adolescente, se pergunte: caso este menor seja vítima de uma violência sexual, você denunciaria o ocorrido? Muitos não o fazem, vide a subnotificação destes casos. “Não crucifico pais ou cuidadores que não querem registrar a ocorrência. É complicado mesmo”, afirma a advogada e diretora do Instituto Liberta Luciana Temer. “Mas o que estamos tentando fazer é mudar a relação da sociedade com essa violência, ou ela vai continuar no silêncio.”
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Em entrevista a Gama, ela conta do esforço em criar uma passeata virtual, que acontece no dia 18 de maio – data que marca o Dia Nacional de enfrentamento a Violência Sexual contra Crianças a Adolescentes –, que busca visibilidade para a causa. “O grande objetivo é quebrar o constrangimento e em seguida cobrar candidatos de diferentes cargos sobre seus projetos concretos de enfrentamento dessa violência.” A iniciativa Agora Você Sabe vai reunir gravações de diferentes pessoas, maiores de 18 anos, que foram vítimas quando crianças, e todas com os mesmos dizeres: “Eu fui vítima e agora você sabe”. As manifestações irão passar simultaneamente na tela principal do site. “Nossa pressão é por uma política pública de educação.”
Vítima de violência sexual infantil, sobre a qual falou em revistas e jornais, a advogada diz que não foi sua experiência que a levou a lutar pela causa – talvez tenham sido os números alarmantes, que mostram que mais de 60% de todos os estupros no Brasil em 2020 e 2021 foram contra crianças e adolescentes. No papo, Temer comenta sobre a invisibilidade da pauta e sua luta no enfrentamento da culpa e da vergonha que impedem a denúncia. E convida o público para falar abertamente sobre o tema, e não tolerar nenhum tipo de abuso: “Ou passamos a ser uma sociedade permissiva com a violência sexual”, diz ela na entrevista que você lê a seguir.
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G |Quando e por que começou a se aprofundar no tema do abuso contra crianças e adolescentes?
Luciana Temer |Estava na gestão do prefeito Fernando Haddad como Secretária de Assistência Social, e fui chamada pelo Eli Horn [patrocinador do Instituto Liberta], um grande empresário e filantropo, para passar alguns dados sobre exploração sexual de crianças e adolescentes. Ao final ele disse que queria que eu fosse trabalhar com ele para montarmos um instituto e enfrentarmos essa violência. Minha gestão na Secretaria estava acabando, e eu tinha muito interesse em continuar na área social. Mas meu estupro não tem nada a ver com isso. Até porque, hoje, só depois de cinco anos à frente no Instituto Liberta, que consigo olhar para trás e entender o peso dessa história. Só hoje tenho um constrangimento por não ter denunciado, só depois de ter mergulhado nessa causa. Na época, com tantas mazelas sociais mais graves, do ponto de vista de estruturação social, me perguntei porque ele [Eli Horn] queria falar sobre isso. Achava que a violência sexual infantil era uma questão residual, ou seja, se resolvessemos outras questões, naturalmente resolveríamos esta. Mas depois de muito estudo e um mergulho nessa área, entendi que é uma questão estrutural, porque muitas das mazelas sociais que temos hoje têm origem no abuso sexual. É uma violência desestruturante das pessoas, principalmente no caso de crianças e adolescentes. Mesmo eu, que era da área das vulnerabilidades, não sabia da gravidade deste tema. Não sabia onde estava me metendo até de fato mergulhar na questão.
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G |Quais são os números de violência sexual contra crianças hoje?
LT |Quando pensamos em violência sexual, quem é a vítima? A mulher. E essa resposta está errada. Temos um dado, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que mostra que 60,6% de todos os estupros registrados em 2020 e 2021 foram contra meninas menores de 13 anos. No país, são mais de 21.600 meninas menores de 14 anos grávidas por ano. E isto é só o que é registrado. Ao ver esses dados, pensamos que deveríamos estar falando sobre isso o tempo todo, e não estamos. Aqui, faço um paralelo com a questão do combate à violência contra a mulher. Quando não existia a Lei Maria da Penha, não havia um crime específico para violência doméstica. Era tratado como lesão corporal. Não tínhamos um olhar específico para isso, nem políticas públicas construídas para o enfrentamento desta violência. Com o movimento feminista, há não só um enfrentamento de violência, como um empoderamento de mulheres. Temos hoje mulheres poderosíssimas falando de violências que sofrem e sofreram, e para elas não é vexatório, porque são apoiadas pela sociedade em geral, que diz que é preciso denunciar. Estamos propondo que a sociedade volte o olhar também para a violência sexual contra crianças e adolescentes. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública estima que cerca de 35% de todos os estupros são registrados, e com certeza a violência sexual contra crianças e adolescentes é muito mais subnotificada do que de adultos, porque 67% acontecem dentro da residência e 86% praticado por pessoas próximas, normalmente em relações intrafamiliares.
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G |Por que esse é um tema invisibilizado pela sociedade? Por que é tão difícil falar sobre ele mesmo com o número absurdo de vítimas?
LT |As pessoas costumam misturar violência sexual e sexo, mas um não tem nada a ver com o outro. Violência sexual é violência. E essa junção de violência sexual e sexo faz com que esse tema vire um tabu, algo difícil de ser conversado. Também tem o fato de que ninguém provocou este assunto. As questões entram em pauta conforme vão sendo provocadas. Então, por exemplo, a violência contra mulher – foi provocada pelos movimentos feministas. O racismo entrou na pauta da sociedade pela provocação dos movimentos negros. As pautas não entram espontaneamente na sociedade, elas precisam ser provocadas. E a violência sexual contra a criança e a adolescente vai ser provocada por quem? A verdade é que ninguém isolou essa causa, sempre fizemos intersecções de violência sexual e outros temas, como gênero, depressão, racismo. Ninguém isolou esse assunto socialmente com a força que ele precisa ser isolado. Nossa tentativa agora é fazer essa provocação, para que a violência sexual contra crianças e adolescentes entre na pauta, que é a condição básica para o enfrentamento.
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G |Como identificamos sinais de uma criança que é vítima?
Luciana Temer |Temos defendido, aqui no Liberta, que o melhor jeito de identificar é falando sobre. Seja em casa, na escola, em qualquer lugar. Porque aí o adulto não precisa adivinhar quando a criança é vítima. Quando estamos falando de um bebê ou uma criança que não fala, aí é outra história. Mas quando o pequeno ou adolescente verbaliza, você não precisa adivinhar, só precisa criar espaços de compreensão e de confiança. Ao criar este espaço, seja dentro de casa, seja na escola, a criança deve primeiro entender, por meio de questões lúdicas com o tanto de material excelente que existe, o que é a violência e como identificá-la; e depois, ela deve ter segurança de que vai ser acreditada, e que ela pode falar sobre isso. É essencial trazer essa discussão para as escolas, já que 67% dos casos notificados acontecem dentro de casa e 87% por pessoas próximas. Quando você fala sobre isso nas escolas, você permite que a criança identifique essas violências dentro e fora de casa.
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G |Qual é o caminho para combater essa realidade?
LT |Temos certeza que qualquer construção de política pública de enfrentamento se dá a partir do desconforto social. O que os movimentos sociais feministas conseguiram fazer foi gerar um constrangimento na sociedade, então hoje, mesmo quem acha que mulher gosta de apanhar não tem mais coragem de verbalizar, porque há um constrangimento social ali. Você é cobrado por essa fala. O que buscamos fazer é justamente o que foi feito com a violência contra a mulher lá atrás: tirar essa violência da invisibilidade para gerar desconforto social, e a partir dele provocar políticas públicas de enfrentamento. Quando você fala de enfrentamento de violência sexual, escutamos aquelas falas do tipo: pena mais alta, castração química, pena de morte. E não, nada disso, até porque as penas já existem e já são muito altas. O que acreditamos é na política de educação, ou seja, falar sobre violências sexuais e sexualidade saudável nas escolas. E não estamos inventando nada, esse é um comportamento que existe no Reino Unido há muitos anos, com resultados muito positivos. É uma política na qual escolas públicas e particulares têm que discutir esta questão de alguma forma. Não é uma matéria específica, mas esse tema tem que perpassar toda a idade escolar da criança e do adolescente. E é isso que queremos fazer aqui.
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G |Como a pedofilia entra no debate?
LT |Estamos falando de estereótipos. Então, violência sexual? Pensamos em mulher. Estupro? Penetração. Pedófilo? Maluco. O pedófilo está no imaginário popular como uma pessoa desajustada e monstruosa. Só que quando você descobre que a maioria dos abusadores de crianças não são essas figuras desajustadas ou desequilibradas, e são, na verdade, o tio querido, o avô, o pai, o professor da escola, o padre, o pastor, você percebe que está colocando a lente no lugar errado. A pedofilia não é crime, é um transtorno mental. E temos estudos que mostram que menos de 25% dos crimes praticados contra crianças pequenas são cometidos por pessoas diagnosticadas com pedofilia. Então não, não estamos falando de pessoas com transtorno mental, estamos falando de pessoas que praticam abuso porque ninguém se manifesta e nem denuncia. O abusador de crianças pequenas, normalmente, é uma pessoa que se aproveita da ignorância e vai no processo de sedução. E muitas vezes, a criança passa muito tempo sem saber que aquilo é uma violência. Quando ela descobre é terrível, devastador, do ponto de vista psíquico, porque a sensação de que o adulto que foi violentado quando criança é de que ele concordou com isso na época, como se fosse cúmplice.
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G |Como definimos uma violência sexual? Existem níveis e tipos diversos?
Luciana Temer |Quando pensamos em estupro, pensamos em um consumado, com penetração e toque. O que faz sentido, porque até alguns anos atrás estupro era isso isso, tanto que homem não podia ser estuprado, só mulher, porque se pressupunha pênis e vagina no código penal. Mas houve uma mudança. Hoje, estupro é todo ato sexual não consentido. A lei diz que todo menor de 14 anos que tiver qualquer relação sexual com um adulto configura um estupro, porque se pressupõe impossibilidade de consentimento. Mas as violências sexuais são mais amplas. Na importunação sexual, por exemplo, você não precisa de toque nenhum. No meu caso, quando estava voltando sozinha da escola para a minha casa, e tinha um homem na rua se masturbando, isso é violência sexual pelo código penal. Fiquei assustada, incomodada. Mas o que as pessoas dizem para esse tipo de situação é ‘ainda bem que não aconteceu nada’. E vira piada, vira o tarado da escola. Também temos a exploração sexual, quando você recebe uma recompensa por um ato sexual quando criança, o que é bastante comum.
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G |Por que mesmo depois de tanto tempo é importante reconhecer ter sido vítima?
LT |Quando comecei com o Instituto e a passeata, minha mãe dizia ‘puxa, que coisa importante e tal’. Ela começou a ler sobre o que é considerado violência sexual, e foi perceber, aos 83 anos, que já foi vítima. Ela me contou que aos 14 anos foi ao dentista e ele não parava de passar a mão na perna dela. Disse que ficou muito desconfortável, que inventou uma desculpa para a mãe dela e nunca mais quis voltar no consultório. Isso é uma violência sexual. E reconhecer violências é um processo. Não precisa traumatizar a pessoa para ser uma violência sexual. Não é porque você não ficou traumatizada que isso não é uma violência sexual. Estamos falando de intolerância com a violência. Devemos reflitir sobre o que é violência sexual, e com isso, sobre a tolerância que a sociedade tem. Na passeata Agora Você Sabe, ninguém quer saber o que aconteceu com você, só queremos que você tenha força para se somar a uma passeata que vai trazer visibilidade a essa violência com números gigantes — mesmo invisibilizada. Estamos tentando fazer é mudar a relação da sociedade com essa violência, ou ela vai continuar no silêncio. O problema de não reconhecer é que passamos a ser uma sociedade permissiva com a violência sexual. Uma menina com condições vai buscar ajuda psicológica para lidar com o fato de ter sido vítima. Agora, a menina da periferia não tem o que fazer, não vai ter estrutura familiar ou financeira para acolhê-la. O que quero dizer é: se não for por você, faça por todo mundo.