Dá para julgar um alimento pelo rótulo?
Cabe ao consumidor se informar a fim de escolher o que de fato lhe faz bem. Comer deve ser, também, um ato de resistência
Quem determina o que chega aos nossos pratos diariamente? Será que nossas escolhas refletem exclusivamente preferências individuais, ou são sorrateiramente balizadas por interesses da indústria de alimentos?
Diante de uma crescente conscientização dos consumidores sobre os riscos da dieta baseada em ultraprocessados e, por outro lado, dos benefícios de saúde e sabor atrelados ao cultivo sustentável e produções artesanais, é no mínimo curioso que tenha surgido na Europa uma proposta de rotulagem de alimentos que beneficiaria os industrializados. Pela proposta, ficam prejudicados os produtos que, além de pilares da dieta de alguns países, são elaborados seguindo processos centenários e, portanto, com menor grau de processamento.
Idealizado na França, o Nutri-Score (apelidado de “semáforo dos alimentos”) é um selo de rotulagem nutricional com uma escala de cores que vai do verde ao vermelho, atrelada a notas de “A” a “E”, a ser adicionado à parte anterior da embalagem de todos os produtos.
O selo Nutri-Score, conhecido como ‘semáforo dos alimentos’, que entra em vigor em países europeus
O critério para a nota considera o “conteúdo benéfico” como fibras, legumes, verduras, frutas em comparação aos elementos “danosos”, como açúcar, sal, gorduras. E quem calcula tudo isso é um algoritmo.
Tal cálculo, porém, deixa de lado características como o grau de manipulação (em outras palavras, se é ou não ultraprocessado), a presença de elementos nutricionais como vitaminas e sais minerais e o tamanho de uma porção padrão.
A Coca-Cola Zero tem nota B, enquanto o azeite de oliva, pilar da dieta mediterrânea e fonte de gorduras de boa qualidade, nota C
Justamente por isso, alguns resultados chamam a atenção: a Coca-Cola Zero tem nota B, enquanto o azeite de oliva, pilar fundamental da dieta mediterrânea e fonte principal de gorduras de boa qualidade, nota C. Têm igualmente nota C um saco de batatinhas fritas – facilmente devorado por inteiro – e um vidro de geleia de frutas sem açúcar – será que muita gente come geleia às colheradas até terminar o pote?
Os defensores de tal método, contudo, argumentam que o Nutri-Score não deve ser utilizado para se fazer comparações abstratas, mas fundamentar uma escolha entre produtos de uma categoria específica. Quando alguém quiser comprar algo para beber, então, terá diante de si: água (nota A), refrigerantes sem açúcar (nota B) e bebidas açucaradas sem fruta (nota E).
Grandes multinacionais produtoras de alimentos industrializados e parte da comunidade científica são a favor do sistema, que já foi adotado na França, na Bélgica, na Alemanha, em Luxemburgo, nos Países Baixos, na Espanha e na Suíça.
Prateleira de azeite de oliva, ingrediente fundamental da dieta mediterrânea que recebeu nota C pelo Nutri-Score
A Itália tem sido um foco de resistência no continente. Ali, poucos assuntos são mais sérios que comida. Orgulhosos de uma gastronomia admirada no mundo todo, os italianos também defendem – com o respaldo de grande parte da comunidade científica – que a dieta mediterrânea, patrimônio cultural da humanidade pela Unesco desde 2010, é uma das chaves para uma vida saudável e longeva.
De acordo com o Nutri-Score, porém, alguns dos produtos gastronômicos italianos mais representativos, celebrados e consumidos inclusive no Brasil, como o azeite de oliva, o Parmigiano Reggiano e o Prosciutto di Parma deveriam ser evitados.
Os principais críticos (que na Itália vão de partidos de todo o espectro político a produtores e cientistas) defendem que, por não trazer dados sobre quantidades diárias recomendadas e, logo, não levar em consideração uma dieta global, o selo não seria capaz de educar o consumidor a fazer escolhas conscientes.
Modelos que destacam porções-padrão e quantidades sugeridas, porém, têm sido substituídos em todo o mundo por rotulagens mais simples e diretas, como na América Latina. Chile, Peru e Uruguai adotaram um selo octogonal preto com escrita branca indicando “alto nível de açúcares”, “alto nível de gorduras saturadas”, “alto nível de sódio” e “alto nível de calorias”.
Rotulagem neutra? Rotulagem política
Na mesma linha, no Brasil, a Anvisa aprovou, em outubro de 2020, uma nova regra determinando que na parte frontal das embalagens haja uma lupa identificando o alto teor de açúcares adicionados, gorduras saturadas e sódio. A proposta de adicionar selos (pretos, triangulares) com alertas semelhantes aos dos outros países foi, porém, rejeitada.
Para além de debates de cunho nutricional, sistemas de rotulagem não são neutros e influenciam sensivelmente as escolhas do consumidor – e a venda de determinados produtos – porque enfatizam certas informações. Quais? Depende do resultado de um processo político que sofre forte influência dos setores diretamente afetados. Vale lembrar a enorme repercussão do caso brasileiro relativo ao selo indicativo de transgênicos, ainda em tramitação: pressões da indústria e de setores agrícolas a favor de sua retirada e, do outro lado, da sociedade civil e de membros da comunidade científica que lutam por sua manutenção.
Sistemas de rotulagem não são neutros e influenciam sensivelmente as escolhas do consumidor – e a venda de determinados produtos
Voltando ao exemplo da Itália, a adoção de um sistema que rotula, a priori, alimentos como “bons” ou “ruins”, poderia impactar negativamente uma das maiores fontes de receita da economia italiana, a exportação de produtos alimentícios. Indo além, outra possível consequência da adoção do Nutri-Score na Europa para aquele país é, em última análise, o incentivo ao consumo de determinados produtos industrializados – como o inusitado “leite de ervilhas”, o vilão da vez – em detrimento de alimentos que, até então, fizeram parte da cultura culinária e gastronômica de uma nação.
Azeitonas e queijos são outros alimentos da dieta mediterrânea, celebrada como uma das mais saudáveis do mundo mas na mira do Nutri-Score
Laticínios, azeite de oliva e embutidos (já submetidos a controles de qualidade altíssimos e que, em muitos casos, são protegidos por indicações geográficas – como IGP, DOP – que requerem critérios ainda mais rígidos) são elementos fundamentais da dieta italiana e, em um país onde a cozinha é um dos aspectos mais relevantes da identidade de seu povo, interferências externas às escolhas do que se comer e cozinhar podem ser consideradas extremamente invasivas, com consequências de longo prazo muito sérias para a cultura local e o próprio conceito de comida italiana.
Até o veredito da União Europeia, marcado para 2022, quando se decidirá sobre a obrigatoriedade de tal medida em âmbito europeu, cada parte tentará puxar a sardinha para seu lado.
O debate, todavia, é universal e deve partir do pressuposto que nenhum sistema de rotulagem alimentar é neutro, tampouco perfeito. Retomando, enfim, a pergunta inicial, o que se coloca no prato pode sim ser fortemente influenciado por fatores externos. Cabe ao consumidor se informar, para além dos rótulos, a fim de escolher o que de fato lhe faz bem. Comer deve ser, também, um ato de resistência.
Flora Pinotti Sano é advogada especializada em propriedade intelectual, com mestrado em Inovação e Organização da Cultura e das Artes pela Università di Bologna. Mora na Itália desde 2012, de onde escreve sobre gastronomia italiana.