Submundo: Cadernos de um penitenciário
Relato inédito apresenta a experiência do artista e ativista negro Abdias Nascimento durante mais de um ano aprisionado no Carandiru
No começo da década de 1940, o escritor e artista em múltiplas frentes Abdias Nascimento (1914-2011) adentrou os muros do Carandiru. Um dos principais pensadores do movimento negro no Brasil, ele foi preso oficialmente por uma infração administrativa cometida durante o serviço militar. Mas a prisão também trazia consigo ares de perseguição política da ditadura Vargas, intolerante com o ativismo negro do período. Agora, os manuscritos que Nascimento produziu ao longo do pouco mais de um ano que passou no presídio chegam pela primeira vez ao público em “Submundo” (Zahar, 2023).
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CV: Gustavo Silvestre
Nas mais de 300 páginas que compõem a obra, o artista registra o dia a dia por trás das grades, o enorme sofrimento do isolamento e a surpresa ao se deparar com detentos que em nada lembravam aqueles descritos nas crônicas policiais. “Os bustos normalmente arcados para a frente, o olhar amortecido, um vinco sulcando as faces descoradas; abatidos, sem vontade, sem entusiasmo, sem vida”, descreve no trecho que Gama reproduz abaixo.
Além das longas conversas com seus companheiros de encarceramento, em que aborda os motivos de suas prisões, e a reforma pela qual passava o sistema prisional da época, o autor retrata um Carandiru ainda bem distante da violência que levaria ao massacre de 1992. E faz uma rara reconstrução de como nasceu o Teatro do Sentenciado, antecessor do TEN (Teatro Experimental do Negro).
Apesar de não constar entre os temas principais da obra, a questão racial surge quando Nascimento fala do racismo científico na criminologia, tendência que vinha se intensificando na década de 1940. Ao tomar para si a perspectiva do preso, ele questiona a visão instituída na sociedade sobre os detentos, as injustiças do sistema carcerário e, como homem negro, os crimes que realmente o levaram para trás das grades.
A poesia brinca de passarinho
Desde o primeiro dia em que nos encontramos na Penitenciária, entramos no regime da provação ou de provas, segundo a dialética oficial do presídio. “Prova” quer simplesmente dizer: incomunicabilidade absoluta. Cigarros? Um dedo de prosa? Nada disso. Ficamos rigorosamente afastados de qualquer contato com os nossos semelhantes, presos ou não. Outra coisa não resta além de caminhar pelo cubículo e sentar no incômodo banquinho. As horas escorregando-se pelo tempo adentro num ritmo de bicho-preguiça. Os olhos ansiosamente procurando descobrir algo a fim de desviar a consciência daquela amargura que a vai amordaçando, enlevando numa teia de desespero. Pobres olhos amigos da paisagem, das cores, e sobretudo dum bom livro! Por mais que vagassem, só lhes vinham ao encontro a mesma parede branca da cela e, pela janelinha, a vista do pequeno pátio de recreio, pátio desguarnecido de qualquer árvore que amenize a sua chatice, monotonia, impertinência e aridez.
Quando menos se espera, o guichê abre-se bruscamente, estrepitosamente, provocando-nos um choque violento. E logo no instante em que me encontrava em recolhido cismar, absorto em divagações… “Boia! Boia!”, anunciou o guarda, a expressão bem carcerária estampada no rosto. Os pratos me foram restituídos; dentro de um, o monte de feijões cozidos em água e sal e no outro, arroz e picadinho de carne com talos de verdura. Tudo exalando tal odor e com aparência tamanha de cardápio suíno que me pareceu mais um eloquente convite à absoluta continência alimentar.
Ficamos rigorosamente afastados de qualquer contato com os nossos semelhantes, presos ou não. Outra coisa não resta além de caminhar pelo cubículo
Dentro de alguns dias comecei a enfraquecer. A perder peso, a minguar. Alimentação intragável e, ainda por cima, nem o direito de descansar à hora que se quer. Sem dúvida, provação das mais duras que se pode conceber, debaixo da capa suave de que assim procede a direção da Casa a fim de estudar o criminoso, tendo em vista o tratamento futuro que lhe vai dispensar. Verdade que o Código Penal prevê um determinado período de permanência isolada do criminoso. Mas aqui esse período está unicamente condicionado à vontade do diretor penal, que o alarga, muitas vezes, até por anos e anos.
Certo dia fui retirado da cela por alguns momentos. Pequeno hiato no meu regime de provas. Iam começar para mim os vários exames. Durante dias seguidos fui encaminhado para aqui, ali e acolá, junto aos companheiros novos na Casa como eu. Foi a primeira oportunidade que tive de conversar furtivamente com meus semelhantes na espécie e no crime. Enquanto esperávamos a vez de tomar a vacina antitífica ou antivariólica, enfileirados militarmente nos longos e frios corredores, aos cochichos fazíamos confidências. Foi momento de grande significação para mim, aquele em que me defrontei pela primeira vez com os sentenciados já antigos da penitenciária. Pareceram-me figuras irreais, tipos de feições tão estranhas que nada tinham a ver com os seus retratos geralmente descritos nos folhetins policiais. Os bustos normalmente arcados para a frente, o olhar amortecido, um vinco sulcando as faces descoradas; abatidos, sem vontade, sem entusiasmo, sem vida. A farda e a numeração gritante, exagerada, espetacular, ampliavam essas figuras, já por si recortadas num fundo sombrio.
A imagem que eu prefigurara dos tipos criminosos era bem outra. Via-os com expressões ferozes, os gestos atrevidos (…). No entanto, o que via agora era bem o contrário
Envolvia tudo o silêncio das coisas acabadas para sempre! O silêncio do nada, o silêncio nirvânico do deperecimento definitivo!
Os menores gestos, a mais ligeira tentativa de palestra em forma era violentamente interceptada pelos guardas. Nós, os novos, ainda não habituados ao ambiente de medo e terror que dominava os antigos, nos atrevíamos a soprar alguma palavrinha no ouvido do outro. Mas os antigos, estes não praticavam tal temeridade. Porque conheciam, por si ou por ouvir dizer, as delícias amortalhantes do isolamento…
Francamente, o receio que eu vinha alimentando desse primeiro encontro evaporou-se numa nuvem de melancólica decepção. A imagem que eu prefigurara, desde fora, dos tipos criminosos era bem outra. Via-os com expressões ferozes, os gestos atrevidos, dando realce a palavras desafiadoras. No entanto, o que via agora era bem o contrário: nada da arrogância que se costuma sempre aplicar às costas do criminoso. Parecia mais uma silenciosa manada de gado, chorando interiormente o seu cansaço, rumo ao matadouro… Quando muito, ruminavam, de boca fechada, sem qualquer denúncia exterior, seus assomos de legítima revolta.
Foi durante esses exames que tive a oportunidade de travar relações e conhecer de perto o estado d’alma dos que se achavam em prova como eu. Havia um, dos seus cinquenta anos mais ou menos. O filho, rapaz de vinte e quatro anos, também o acompanhou na desdita. Quando nos encaminhávamos para os exames de sangue, ele vinha se queixando:
Santo Deus! Quando terminaria tudo? Era preferível desaparecer para sempre que continuar naquela agonia lenta, interminável…
— Pois é, ontem passei um dia terrível; não podia caminhar por causa dessa inchação nas pernas, olhe como está… O banquinho fazia-me sangrarem as hemorroidas; foi um dia infernal. À noite meu desespero aumentou que foi uma coisa medonha! Tive vontade de me deitar um pouco, mas fiquei com medo do guarda. Meu desespero foi aumentando… aumentando… Quando calculei que já devia ser a hora de deitar e o sino não batia, nem sei o que se passou comigo. Tive ímpetos de me matar. Fiquei me debatendo numa dolorosa aflição… Numa aflição que nem é bom recordar. Pensei que fosse perder o juízo. Veio-me então a ideia de orar um pouco. Encostei-me juntinho à porta da cela, do lado da privada, evitando, no máximo, a indiscrição do guarda. E chorei e orei durante um tempão…
Chegamos ao laboratório de análise. O nosso sangue foi-se enfileirando nos tubos de vidro, fornecendo os elementos à nossa futura classificação criminológica.
Novamente a cela. Outra vez eu, as paredes brancas e nuas e o pátio sem vida. Outra vez os dias, as semanas, o tempo escorregando vagarosamente, dias longos como se fossem inacabáveis oceanos que se pretendesse esvaziar gota a gota… Santo Deus! Quando terminaria tudo? Era preferível desaparecer para sempre que continuar naquela agonia lenta, interminável…
- Submundo
- Abdias Nascimento
- Zahar
- 320 páginas
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