Sobre Desistir
O célebre psicoterapeuta britânico Adam Phillips discute em novo livro por que muitas vezes nos negamos a deixar certos objetivos para trás
Quem nunca pensou em desistir, seja de um curso, da prática de algum exercício ou até da carreira, que atire a primeira pedra. Mas a desistência não é tarefa tão simples quanto parece. É o que o psicoterapeuta e escritor britânico Adam Phillips explora em “Sobre Desistir” (Ubu, 2024), seu novo livro, que parte de eventos cotidianos, da literatura, da filosofia e da própria psicanálise para discutir o ato de desistir em suas múltiplas facetas: o abandono, a renúncia, o sacrifício, a interrupção…
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O autor, que já chegou a classificar a ideia de nunca desistir como fascista, aborda a ação como uma verdadeira batalha ou uma negociação entre diferentes desejos. “Ao abrir mão de alguma coisa, abre-se espaço para outra”, afirma no prólogo da obra. Portanto, por que muitos de nós têm tanto temor e até uma certa aversão à ideia de desistir?
Talvez porque a ação tenha se cristalizado na sociedade como uma vergonhosa demonstração de covardia, um atestado de fracasso ou até um pedido de ajuda que coloca em xeque nossa independência. Com base na obra de autores como Kafka, Shakespeare, Nietzsche e Freud, Phillips vai desenrolando um panorama emocional e moral complexo sobre o assunto, que serve até para explicar nossa perspectiva do heroísmo como nunca se deixar entregar ao que quer que seja. Tudo isso na prosa atraente, fluida e provocativa que já virou marca do autor, nos levando a refletir sobre o que significa deixar certas coisas se perderem e em nome do que desistimos ou nos recusamos a fazê-lo.
“A partir de certo ponto não é mais possível voltar atrás. Este é o ponto que tem de ser alcançado.” Esse é um dos aforismos de Zürau, escritos por Kafka durante a guerra — entre 1917 e 1918 —, logo depois
de ele receber o diagnóstico da tuberculose que por fim o mataria. “A partir de certo ponto não é mais possível voltar atrás. Este é o ponto que deve ser alcançado.” Por quê? Seria porque sempre há a tentação de desistir? Ou, de maneira mais sugestiva, porque sempre há a tentação de voltar atrás, dar meia-volta: de voltar, digamos, ao passado, ao ponto em que tudo começou, de refazer os passos; ou simplesmente de voltar à época em que é possível escolher desistir, ou escolher de novo aquilo que você realmente quer fazer; como se o progresso, ou a conclusão ou o comprometimento, dependesse de chegar ao ponto em que não há mais retorno. É nesse ponto que, supostamente, por fim tomamos uma decisão. A crise da escolha acabou; não estamos mais à procura de saídas e álibis; não somos mais seduzidos por alternativas e adiamentos. Eis o ponto em que sabemos o que queremos; em que não somos mais as criaturas complicadas e conflituosas que éramos até então. Nossas dúvidas foram finalmente suspensas. Estamos, em certo sentido, livres. O ponto em que não é possível voltar atrás sugere, naturalmente, que já voltamos atrás outras vezes, ou que tivemos vontade de voltar atrás. Como se tivéssemos sempre que enfrentar o desejo de voltar atrás — como uma tentação, ou simplesmente como escolha. Como se também fôssemos movidos pelo desejo das ações incompletas, pelo prazer da indecisão, da incerteza e do adiamento, pela vontade de desistir. Em outro aforismo, Kafka escreve que “ele tem a sensação de que, pelo simples fato de estar vivo, está bloqueando o próprio caminho”.
Claramente, Kafka quer que pensemos sobre nossa relação com a oportunidade, com a opção de desistir; ou com a desistência por vezes implicada em voltar atrás ou bloquear nossos próprios caminhos. Sobre como a ideia de desistir figura em nossa vida como um chamariz perpétuo e um medo constante. A desistência que nos alija daquilo que queríamos, ou acreditávamos querer. O ato de desistir ligado a um senso de impossibilidade ou de possibilidades que se esgotam, de chegar ao fim de algo. De precisar se desonerar. De se excluir — talvez por falta de recursos, ou conhecimento, ou coragem, ou sorte — de um projeto outrora considerado seu. Jonathan Lear sugere que “uma pessoa corajosa sabe se nortear em relação ao que é vergonhoso e amedrontador”. Costumamos enxergar a desistência, de maneira geral, como falta de coragem, como uma forma inapropriada ou censurável de se nortear em relação ao que é vergonhoso e amedrontador. Isso quer dizer que costumamos valorizar e até mesmo idealizar a ideia de levar as coisas a cabo, ou concluí-las, em vez de abandoná-las. A desistência precisa ser justificada, o que não acontece com a conclusão; desistir geralmente não nos deixa orgulhosos; significa ficar aquém da pessoa que preferíamos ser; a menos, é claro, que seja sinal de um realismo definitivo e definidor, do que chamamos de “conhecer nossos próprios limites”. Em outras palavras, a desistência costuma ser vista como um fracasso, em vez de uma maneira de obter sucesso em outra coisa. Vale a pena se perguntar: a quem acreditamos que devemos justificativas quando desistimos ou quando decidimos resolutamente não desistir?
A desistência costuma ser vista como um fracasso, em vez de uma maneira de obter sucesso em outra coisa
É claro que voltar atrás e desistir nem sempre são a mesma coisa: voltar atrás em um livro que estamos lendo é muito diferente de desistir dele. Voltar atrás em uma caminhada pode ser muito diferente de desistir dela. Quando queremos voltar o relógio, não estamos desistindo do tempo. Em suma, voltar atrás pode envolver a reconsideração; já desistir sugere o abandono (e, quando realmente desistimos, não é possível voltar atrás). Ambos são formas de reversão, expressões de dúvida sobre o progresso e o desejo ou, ao menos, sobre a direção e o propósito. Kafka, portanto, nos alerta essencialmente para uma angústia relacionada com a intenção: a intenção de sabotar nossas intenções, de duvidar de nossos desejos, de nossa capacidade de realizá-los. Às vezes, a tentação de desistir pode ser diferente da tentação de voltar atrás, mas cada uma nos diz algo sobre a desistência, que é um caso especial de mudar de ideia, de repassar nossas intenções, de repensar uma decisão, de destruir algo. Para os fins deste livro, quero interpretar o aforismo de Kafka da seguinte maneira: “A partir de certo ponto, não é mais possível desistir. Este é o ponto que deve ser alcançado”; e quero dizer que a relação com a desistência é tão formadora em nossas vidas quanto, por exemplo, a relação com receber ajuda; e sugerir, por implicação, que há uma tirania da conclusão, do ato de terminar as coisas, capaz de inadvertidamente limitar nossa mente. Nossa relação com a desistência e nossa relação com receber ajuda nos confronta com aquilo que compreendemos como nossa dependência; a dependência daquilo que precisamos, e precisamos fazer, e daquilo que não precisamos ou não conseguimos fazer. Quando sabotamos ou desistimos de depender de nosso ideal de eu — de nossas fantasias sobre a pessoa que acreditamos que deveríamos ser —, tanto nossa dependência como a natureza e a função de nosso ideal de eu são expostas. Quando nossas versões preferidas de nós mesmos não são uma inspiração, elas são uma tirania (uma tirania com a qual podemos nos humilhar). Nosso histórico de desistência — ou seja, nossa atitude diante dela, nossa obsessão por ela, nossa rejeição de seu significado — podem ser um indício de algo a que na verdade deveríamos nos referir como nosso histórico, e não nosso ser. Trata-se de um indício das crenças e sentenças em torno das quais nos organizamos. Se encaramos a desistência como uma catástrofe a ser evitada, que imagem formamos da desistência de fato? Quando não nos deixamos afetar demais pela desistência, percebemos aquilo que valorizamos. Criamos todo um mundo a partir disso.
Há uma tirania da conclusão, do ato de terminar as coisas, capaz de inadvertidamente limitar nossa mente
Heróis e heroínas são pessoas que não desistem; às vezes eles voltam atrás, mas no fim sempre perseveram. Como veremos, os heróis trágicos são exemplos catastróficos da incapacidade de desistir. Nesse sentido, a tragédia nos convida a reavaliar certas versões da desistência. Os heróis de Kafka costumam ser extremamente tenazes: eles raramente desistem, apesar dos muitos incentivos nessa direção (o que há de heroico no heroísmo é, precisamente, a resistência a desistir, ou talvez a fobia da desistência). Ser preso sem razão aparente, despertar como um inseto: imagina-se que essas situações envolveriam ao menos uma grande vontade de desistir. Porém o mais impressionante em relação aos heróis de Kafka é como eles se mostram pacientes diante da própria desesperança e do próprio desamparo. “Há esperança, mas não para nós.” É tentador considerar que a esperança existe; apenas não está ao nosso alcance. Assim, podemos logicamente perguntar: em que sentido ela existe? Que relação podemos ter com ela? Pode-se responder que se trata de algo que queremos, mas que nos escapa: ela existe apenas em nosso querer, o que pode ou não ser motivo suficiente para desistirmos dela. Portanto, desistir da esperança significa simplesmente desistir de querer a esperança, pois desistir é sempre desistir de querer algo ou alguém, desistir de querer ser alguém. Aquilo de que desistimos, em qualquer situação de desistência, é sempre o querer. “Existe um destino, mas não um caminho; o que chamamos de caminho é hesitação”, escreve Kafka em outro aforismo. Não é possível desistir de querer um destino. A hesitação é parte integral do querer, um momento de reconsiderar a perspectiva de desistir. Aparentemente, não podemos abrir mão de ter ideais de eu, do fato de que há pessoas que gostaríamos de ser, lugares onde gostaríamos de ir; do fato de que há sempre uma versão de nós ainda por alcançar. Há sempre algo que queremos ou que pensamos necessitar (esperança, destino, não voltar atrás, satisfação), mas, como não podemos abrir mão de querê-lo, temos de fazer uma nova descrição do processo de querer, de nossa forma de lidar com o querer (se há esperança, mas não para nós, nossa esperança precisa ser diferente; se há um destino, mas não um caminho, precisamos de uma nova atitude em relação aos destinos). O artista da fome nunca desiste de querer jejuar, mesmo que o jejum já esteja saindo de moda como entretenimento popular; no entanto, para conseguir jejuar ele não pode morrer de fome. Ser um artista da fome significa jamais chegar ao fim da inanição, assim como nas relações sadomasoquistas o sádico nunca pode matar o masoquista, pois ele precisa continuar torturando-o. É melhor viajar com esperança do que chegar, mas acontece que você pode ter de viajar sem esperança e nunca chegar. Sem dúvida, você nunca chega exatamente ao ponto que havia antecipado.
O que há de heroico no heroísmo é, precisamente, a resistência a desistir, ou talvez a fobia da desistência
- Sobre desistir
- Adam Phillips (trad. Breno Longhi)
- Ubu
- 160 páginas
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