Rita Lee: outra autobiografia
Na continuação da obra, Rita Lee fala com humor e sinceridade sobre o câncer e a morte numa profunda reflexão sobre a vida
Rita Lee (1947-2023) se foi, mas a rainha do rock brasileiro deixou mais um último presente para seus fãs. A continuação de “Rita Lee: uma autobiografia” (Globo Livros, 2016) — com o comicamente adequado subtítulo “outra autobiografia” — chega às livrarias cerca de duas semanas após sua morte. Já constando entre os livros mais vendidos do país, a obra traz parte da história da cantora que ainda não havia sido contada, além de reflexões sobre a vida e a morte, a música, a juventude e o futuro da humanidade.
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Embora trate de maneira sincera a respeito de seu câncer, que ela descreve como “um elefante deitado sobre o lado esquerdo do meu corpo”, o leitor pode esperar de “Rita Lee: outra autobiografia” (Globo Livros, 2023) a graça, irreverência e provocação que acompanharam a artista ao longo de toda a vida. Ao refletir sobre sua existência e o fim iminente, ela usa o humor como ferramenta para se aprofundar ainda mais naquilo que sente e vê. Quando narra a descoberta da doença, conta como lidou com a permanência no hospital e o longo período de tratamento que se seguiu. Mais tarde, ao abordar a morte, Lee questiona “pra quê fazer tanta cara de enterro”, se deveria ser uma questão tratada de forma mais leve.
Ao longo do livro, a cantora também mostra preocupação com as novas gerações e avalia a influência de suas composições entre os jovens. “Me emociono quando escrevem que não são aceitos pelos pais por serem diferentes, e como minhas músicas são uma companhia e os libertam nessas horas de solidão.” Apesar de considerar o mundo hoje muito mais complicado do que em sua época de menina, no trecho abaixo vovó Rita faz ver que a juventude pode contar sempre a favor.
A garotada
Volta e meia recebo cartinhas de fãs, e alguns são bem jovens, contando como meu trabalho com a música mudou a vida deles e lamentando que antes não tinham idade para assistir a um show meu.
Fico no céu lendo essas coisas e me emociono quando escrevem que não são aceitos pelos pais por serem diferentes, e como minhas músicas são uma companhia e os libertam nessas horas de solidão.
Dia desses, um menino, rejeitado pela família por ser gay, me disse que pensou até em desistir desta vida, mas que ao ouvir minhas músicas decidiu ficar.
Dá vontade de pegar todos no colo e cantar baixinho no ouvido deles: “Você não está só, é só um nó que precisa ser desfeito”. A gente, quando muito jovem, tem um pé no “eu contra o mundo”. Quando eu era “uma adolescente contra o mundo”, desenhei numa cartolina uma ilha deserta rodeada por tubarões e escrevia nela o nome das personas non gratas que eu mandaria pra lá. Assim, eu desopilava o fígado do ódio. Do outro lado da cartolina, desenhei uma ilha paradisíaca onde eu gostaria de ficar com gente bacana. A ilha do ódio tinha professores, alguns vizinhos, parentes chatos, colegas falsianes, Natalie Wood e quem mais eu fosse odiando. Na ilha do amor era só James Dean e eu.
Um menino, rejeitado pela família por ser gay, me disse que pensou até em desistir desta vida, mas que ao ouvir minhas músicas decidiu ficar
Mas sinto que é mais complicado ser jovem hoje, já que nunca tivemos essa superpopulação no planeta: haja competitividade, culto à beleza, ter filho ou não, estudar, ralar para arranjar trabalho, ser mal remunerado, ser bombardeado com trocentas informações, lavagens cerebrais…
Queria dar beijinhos e carinhos sem ter fim nessa moçada e dizer a ela que a barra é pesada mesmo, mas que a juventude está a seu favor e, de repente, a maré de tempestade muda, fazendo o barquinho seguir até sua ilha deserta e ensolarada de amor. Diria também para não planejarem nada a tão longo prazo, que a frustração pode assombrar; o que não significa não ter sonhos, apenas que eles não caem do céu.
Diria também um monte de clichê: que vale a pena estudar mais, pesquisar mais, ler mais. Diria que não é sinal de saúde estar bem-adaptado a uma sociedade doente, que o que é normal para uma aranha é o caos para uma mosca, que uma coroa não é nada além de um chapéu que deixa entrar água, que todo dia o mundo se afoga no caos e vai ser difícil achar um lugar para observar o fim dos tempos de camarote.
Meninada, sintam-se beijados pela vovó Rita.
Todo dia o mundo se afoga no caos e vai ser difícil achar um lugar para observar o fim dos tempos de camarote
- Rita Lee: outra autobiografia
- Rita Lee
- Globo Livros
- 192 páginas
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