Quem Matou Meu Pai
Romance autobiográfico de Édouard Louis retrata pai machista e decrépito para falar do efeito devastador da opressão sobre o indivíduo
Em 2017, o escritor francês Édouard Louis publicou na primeira página do New York Times o artigo “Por que meu pai vota em Le Pen”. No texto, que saiu às vésperas da eleição presidencial francesa, o autor apresentou a figura do pai, um típico membro da classe operária do país, e por que uma mudança de prioridades do movimento fez com que boa parte dos trabalhadores se desiludisse com a esquerda. Um ano depois, Louis expandiu consideravelmente o escopo do artigo, num texto que acabou se tornando o livro “Quem Matou Meu Pai” (Todavia, 2023), que no Brasil ganhou tradução de Marília Scalzo.
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Na obra, o cultuado escritor aborda a saúde em deterioração do pai, que se machucou num grave acidente de trabalho. Figura distante desde a infância do autor, marcada por uma frieza paterna autoritária, machista e homofóbica, o sujeito que Louis descreve no livro é surpreendentemente sensível, sonhador e profundamente infeliz — mas somente nas entrelinhas. Essa pessoa surge em momentos pontuais ao longo da infância, numa foto sorrindo, vestido de mulher, ou na descoberta de que, na juventude, o pai tinha sido um exímio dançarino. É com esse indivíduo, que o autor praticamente desconhecia, que ele tenta fazer as pazes durante uma última visita.
Fã assumido do cineasta e provocador Xavier Dolan, que aparece na dedicatória da obra, Louis é um artista em constante ascensão na cena literária internacional. O autor estreou na literatura em 2014 com o romance autobiográfico “O Fim de Eddy” (Tusquets, 2018), onde aborda a infância pobre e atribulada numa comunidade conservadora do interior da França, seguido por “História da Violência” (Tusquets, 2020), sobre um estupro que o leva a investigar as origens da violência em sua vida e na sociedade. Junto com “Quem Matou Meu Pai”, também sai no Brasil “Lutas e Metamorfoses de uma Mulher” (Todavia, 2023), em que Louis fala da trajetória de sua mãe, marcada por diversas opressões e uma difícil libertação.
Só o conheci por acaso. Ou pelos outros. Não faz muito tempo, perguntei para minha mãe como ela tinha conhecido você e por que havia se apaixonado. Ela respondeu: O perfume. Ele usava perfume, e naquela época, sabe, não era como hoje. Os homens nunca passavam perfume, não se usava. Mas seu pai, sim. Ele, sim. Ele era diferente. Era tão cheiroso.
Ela continuou Era ele que me queria. Eu tinha acabado de me divorciar do meu primeiro marido, tinha conseguido me livrar dele e estava bem mais feliz assim, sem homem. As mulheres são sempre mais felizes sem homem. Mas ele insistiu. Toda vez chegava com chocolates ou flores. Então acabei cedendo. Eu cedi.
2002 — nesse dia, minha mãe me pegou dançando, sozinho, no meu quarto. Eu tinha tentado me movimentar no maior silêncio possível, não fazer barulho, não respirar muito alto, a música também não estava alta, mas ela ouviu alguma coisa do outro lado da parede e foi ver o que estava acontecendo. Eu me assustei, sem fôlego, o coração na boca, os pulmões na boca, me virei para ela e esperei — coração na boca, pulmões na boca. Esperava uma bronca ou uma gozação, mas ela disse sorrindo que quando eu dançava era quando mais me parecia com você. Perguntei: “O papai já dançou?” — o fato de que seu corpo já tivesse feito algo tão livre, tão bonito e tão incompatível com sua obsessão pela masculinidade me fez entender que talvez um dia você tivesse sido outra pessoa. Minha mãe fez que sim com a cabeça: “Seu pai dançava o tempo todo! Por onde fosse. Quando dançava, todo mundo olhava para ele. Eu ficava
orgulhosa de ele ser o meu homem!”. Atravessei a casa correndo e fui vê-lo no quintal, onde você cortava lenha para o inverno. Queria saber se era verdade. Queria uma prova. Repeti o que ela tinha acabado de me contar e você baixou os olhos, dizendo bem lentamente: “Não é para acreditar em todas as bobagens que sua mãe fala”. Mas você corou. Eu sabia que você estava mentindo.
“O papai já dançou?” — o fato de que seu corpo já tivesse feito algo (…) tão incompatível com sua obsessão pela masculinidade me fez entender que talvez um dia você tivesse sido outra pessoa
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Numa noite em que fiquei sozinho porque vocês foram comer na casa de uns amigos e eu não quis ir junto — lembro do fogão a lenha que espalhava por toda casa seu cheiro de cinzas e sua luz suavemente alaranjada —, encontrei, em um velho álbum de família roído pelas traças e pela umidade, fotos em que você aparecia fantasiado de mulher, de baliza. Desde que nasci vi você desprezar todos os sinais de feminilidade em um homem, ouvi você dizer que um homem não deveria nunca se comportar como uma mulher, nunca. Você parecia ter cerca de trinta anos nas fotos, acho que eu já tinha nascido. Fiquei olhando até o fim da noite essas imagens do seu corpo, do seu corpo vestido com saia, da peruca em sua cabeça, do batom em seus lábios, dos peitos falsos que você deve ter feito com algodão e um sutiã sob a camiseta. O mais incrível para mim é que você parecia feliz. Você sorria. Roubei a foto e tentei decifrá-la depois, várias vezes durante a semana, tirando-a da gaveta em que a escondera. Eu não disse nada para você.
Um dia, escrevi a seu respeito num caderno: escrever a história da vida dele é escrever a história da minha ausência.
Numa outra vez, surpreendi você assistindo a uma ópera transmitida ao vivo pela televisão. Você nunca tinha feito isso, não na minha frente. Quando a cantora soltou a voz, vi seus olhos brilharem.
Desde que nasci vi você desprezar todos os sinais de feminilidade em um homem, ouvi você dizer que um homem não deveria nunca se comportar como uma mulher
O mais incompreensível é que mesmo aqueles que nem sempre são capazes de respeitar as normas e as regras impostas pelo mundo insistem que elas sejam respeitadas, como você, quando dizia que um homem não devia nunca chorar.
Será que você sofria disso, desse paradoxo? Será que tinha vergonha de chorar, você, que repetia que um homem não devia chorar?
Queria dizer a você: eu também choro. Muito, frequentemente.
2001 — numa noite ainda de inverno, você convidou um monte de gente para comer em casa, muitos amigos, isso não era uma coisa que você fazia muito, e eu tive a ideia de preparar um espetáculo para você e os outros adultos. Chamei as crianças que estavam à mesa, três meninos além de mim, para ir ao meu quarto se arrumar e ensaiar — decidi que imitaríamos o show de um grupo pop chamado Aqua, que não existe mais. Inventei coreografias por mais de uma hora, movimentos, gestos, eu comandava. Escolhi ser a vocalista, os três meninos seriam o coro e os músicos dedilhando guitarras invisíveis. Entrei primeiro na sala de jantar, os outros me seguiram, dei o sinal e começamos o espetáculo, mas você imediatamente olhou para o outro lado. Eu não entendia. Todos os adultos nos olhavam, menos você. Cantei mais alto, dancei com gestos mais exagerados para que você me notasse, mas você não olhava. Eu dizia, Papai, olha, olha, eu fazia de tudo, mas você não olhava.
Eu não entendia. Todos os adultos nos olhavam, menos você. Cantei mais alto, dancei com gestos mais exagerados para que você me notasse, mas você não olhava
Quando você dirigia seu carro, eu dizia: Faz como o piloto de Fórmula 1! e você acelerava, chegava a mais de cento e cinquenta quilômetros por hora nas estradinhas do interior. Minha mãe ficava com medo, gritava, chamava-o de louco, e você me olhava no retrovisor, sorrindo.
- Quem Matou Meu Pai
- Édouard Louis
- Todavia
- 72 páginas
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