Trecho de Livro: Pageboy, de Elliot Page — Gama Revista

Trecho de livro

Pageboy

Livro de memórias relata traumas e pressões que o ator Elliot Page, de “Juno”, precisou enfrentar em relação ao seu gênero e sexualidade

Leonardo Neiva 09 de Junho de 2023

Depois do estrelato com o filme “Juno” (2007), Elliot Page se tornou do dia para a noite um dos atores mais conhecidos e queridos do mundo. No entanto, para além das pressões que passaram a cercar sua carreira badalada, ele também lidava no período com os abusos da indústria e de uma sociedade decidida a enquadrá-lo numa existência excludente e binária.

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No recém-lançado livro de memórias “Pageboy” (Intrínseca, 2023), o ator conta sua dolorosa trajetória até assumir publicamente a homossexualidade, em 2014, e o fato de ser um homem transgênero e queer em 2020. Além disso, explora o passado rodeado de preconceito e repressões, que partiam desde amigos da escola até familiares . “A palavra ‘homossexualidade’ pronunciada na aula de educação sexual era seguida por uma cacofonia de risadas. Todos os seriados a que eu assistia depois da aula reforçavam isso”, escreve.

Recheado de detalhes e revelações sobre os bastidores de Hollywood, o livro é também uma narrativa que questiona de forma íntima temas como sexo, amor e traumas. Numa prosa direta e cristalina, Page reconta sua luta para se livrar das expectativas alheias, que reflete a batalha diária de muitas pessoas trans atualmente. Do medo em relação à visibilidade como artista, que chegou a impedi-lo por muito tempo de viver seus desejos e sonhos, o ator acabou se tornando um facho de luz para muita gente mundo afora.


Bolão

“Bolão da sexualidade de Ellen Page”. Li a manchete, a cor sumindo de meu rosto. Era uma matéria de Michael Musto no jornal The Village Voice, publicada em meio ao sucesso de Juno. Passei os olhos pelo texto. Junto à especulação sobre a sexualidade de uma pessoa de 20 anos de idade, Michael incluiu: “Qual é, sejamos francos… Ela é? Você sabe… sapatão! Ela já se veste como um machinho… Vamos juntar as peças de velcro! A Juno é uma você-sabe-o-quê?”

Eu fui jogado sob os holofotes de um dia para o outro, mas já haviam me chamado de sapatão muitas vezes no Canadá, durante minha adolescência. No ensino médio, o bullying alcançou um novo patamar, passou de um sussurrar discreto das meninas populares ao ato relativamente dramático de ser forçado a entrar no banheiro masculino. Empurrado, com o nariz franzido por conta daquele cheiro estranho de mictório, esperei um pouco e ouvi a confusão se dispersar, se suavizar a distância. Quando saí do banheiro, dei de cara com meu professor de inglês, que me encarava com uma expressão dura e rude, e
me disse: “Já para a direção!” Eu me desculpei. Não disse que tinha sido forçado a entrar ali.

Não muito antes do bullying se intensificar, eu havia dividido quarto com uma menina chamada Fiona durante o torneio de futebol na St. Francis Xavier University. A Universidade SFC fica em Antigonish, uma cidade no extremo nordeste da Nova Escócia, a um pulo de Cape Breton, e tem os mais antigos High-
land Games fora da Escócia. Apesar do nome de “Nova Escócia” (do latim, Nova Scotia), o povo Mi’kmaq vive lá há 10 mil anos.

Ainda me lembro da risada de Fiona. Eu conseguia ouvi-la sobressaindo-se a qualquer barulho, em meio a toda a estática, penetrando meus ouvidos, ecoando dentro de mim. Queria ficar perto dela, queria que ela me quisesse. Eu jogava como volante direito, era rápido e pequeno, mas desajeitado. Ela era zagueira, a última na linha de defesa de nosso time e cocapitã, dividindo a braçadeira com nossa meio-campista central. Uma líder nata, mandona mas gentil, e que nos apoiava. Eu amava vê-la chutar a bola: com força, naturalidade e uma confiança que eu invejava. Eu estava me apaixonando.

No ensino médio, o bullying alcançou um novo patamar, passou de um sussurrar discreto das meninas populares ao ato dramático de ser forçado a entrar no banheiro masculino

Deitados em camas duras em lados opostos do quarto, as paredes revestidas de madeira escura e barata, olhei para o teto e inspirei profundamente… Deveria segurar o ar ou soltá-lo? A sensação era sobrenatural, como se eu estivesse vislumbrando um possível futuro.

— Acho que talvez eu seja bissexual — anunciei, meio que do nada, já que nunca tinha falado isso para ninguém.

— Não, você não é — respondeu ela de imediato, um reflexo ligeiro, e logo após riu.

Daquela vez, o som de sua risada foi duro e cortante. Mesmo assim, quis rir junto. Quer dizer, ser LGBTQIA+ é engraçado e é algo ruim, certo? A palavra “homossexualidade” pronunciada na aula de educação sexual era seguida por uma cacofonia de risadas. Todos os seriados a que eu assistia depois da aula reforçavam isso. Sempre que rolava uma piada, ou eu fazia uma, aquilo grudava, como cocô na sola do sapato. O holofote sendo deslocado de um lado para outro em um palco. Eu tentava sapatear para longe dali. Como um cachorro molhado, eu me balançava para me livrar daquilo, para tirar tudo aquilo de mim. Não me lembro do que foi dito depois, só das risadas ecoando pelo quarto e da superfície dura da cama.

Sem conseguir dormir, fugi para o corredor de luz fluorescente por volta de cinco da manhã e me sentei no chão para ler. Kurt Vonnegut foi o primeiro autor do qual gostei de verdade — ignorando você-sabe-quem. Eu estava lendo O espião americano, um romance de ambiguidade moral. “Cuidado com o que você finge ser, pois você é o que finge ser”, escreveu Vonnegut. Sentado sozinho no corredor, fiquei refletindo sobre aquelas palavras. Sentia a vergonha percorrendo meu corpo num ritmo constante. Algo havia escapado por entre meus dedos, não tinha como pegar de volta. Esperei o sol nascer.

Todos nós tomamos café da manhã juntos na área de convivência. Havia bagels da Tim Hortons e o pai de uma das meninas tinha levado um saco grande de laranjas. Os adultos bebiam café e nos vigiavam. Comi em silêncio. Não sabia como olhar para Fiona, então achei melhor fingir que nada havia acontecido. Peguei minhas caneleiras na intenção de ir mais cedo para o campo e começar a me aquecer.

— Sapatão.

A palavra foi como um tapa na cara, dita com um sorrisinho maldoso que eu viria a conhecer tão bem. Era como se dissesse: “Ahá! Não sou igual a você.” Veio de uma garota popular, amiga de Fiona. E doeu. Uma dor isolada, um piscar de olhos, mas é o tipo de coisa que permanece com você.

As coisas mudaram depois disso. Algo havia sido arruinado. Eu conseguia ouvir os sussurros, sentir a mudança no clima que pairava, a especulação… Quem sabe fosse bom? Aquele dente mole precisava ser arrancado.

— Sapatão.
A palavra foi como um tapa na cara, dita com um sorrisinho maldoso que eu viria a conhecer tão bem. Era como se dissesse: ‘Ahá! Não sou igual a você.’

***

Alguns meses depois, meu pai e eu fomos visitar minha avó em Lockeport, um pequeno vilarejo de pescadores com pouco mais de quinhentos habitantes na costa sul da Nova Escócia. Barcos pesqueiros se alinhavam no porto, amarrados ao longo píer, as cores parecendo luzes de Natal… Amarelo batido, vermelho desgastado e diversos tons de azul. Um cartão-postal da Nova Escócia.

Quando eu era criança, meu pai me levava a Lockeport no 1o de julho, feriado nacional do Dia do Canadá. É tipo o 4 de Julho nos Estados Unidos, mas com menos “independência da Coroa” e mais “aniversário do Canadá”. Como uma criança branca que vivia na Nova Escócia, eu não tinha ideia de nossa história. Não me ensinaram sobre nossas raízes genocidas, o racismo sistemático ou a segregação.

Costumava pensar que o Dia do Canadá tinha a ver com fogos de artifício, desfiles, bolo de morango no porão da igreja e o pau de sebo — minha parte favorita. Um poste comprido e fino de madeira era colocado no final do cais, projetando-se por cima do píer, com uma longa queda até a água, e besuntavam toda a extensão dele com banha. Na ponta do poste, estendendo-se sobre o oceano, ficava um saco com um montão de dinheiro também envolto em banha que os competidores tentavam pegar. Na verdade, só havia duas estratégias. A primeira era se agarrar ao poste e deslizar aos poucos (o que em geral não funcionava) e a segunda, e mais eficiente, deslizar na maior velocidade possível, de uma só vez, agarrando o máximo de dinheiro que conseguisse na descida em direção ao Atlântico congelante. Ao emergir, você poderia recuperar as notas que tivesse perdido por causa do choque de temperatura. Gaivotas sobrevoavam, mergulhando na gordura flutuante. Não, eu nunca tentei.

Minha avó ainda morava na casa em que meu pai havia crescido. Uma casinha de dois andares com três quartos e fachada branca. Atrás dela, se estendia uma floresta sem fim. A mercearia de meu avô, Page’s Store, ficava do outro lado da rua. Ainda está lá, mas não sei como se chama hoje em dia. O estabelecimento agora tem uma bomba de gasolina.

Os quartos do andar de cima eram conectados entre si por um closet. Quando criança, eu me escondia lá, onde me transportava, confiante, para uma realidade imaginária cuja porta, pequenininha, parecia ter sido feita para mim. Eu puxava a corda da lâmpada que pendia do teto, iluminando meu monte de tesouros. Era bastante cinematográfico. Ficava mexendo em caixas de munições, fascinado que algo tão minúsculo como uma bala pudesse matar os bichos que eu via correndo no mato. Os corpos estoicos, parecendo magníficos demais para que algo tão pequeno pudesse atingi-los.

— Dennis, o que você vai fazer se a Ellen for sapatão? — perguntou minha avó a meu pai quando nos sentamos ao sol

— Dennis, o que você vai fazer se a Ellen for sapatão? — perguntou minha avó a meu pai quando nos sentamos ao sol, com o mesmo tom rude que ela usava para dizer coisas racistas.

Numa ironia digna de Alanis Morissette, essa era a mesma avó que me dera um ursinho com arco-íris nas patas quando eu nasci.

Eu estava com 16 anos e tinha acabado de raspar minha cabeça para um filme. Um jogo do Blue Jays passava na TV. Ela amava beisebol, torcia para o time de Toronto. Ou era para o de Boston? Essa foi uma das últimas vezes que vi minha avó antes de ela morrer. Me pergunto o que ela acharia de seu neto agora, se ainda estivesse viva. Duvido que ainda escolheria algo com arco-íris. Contudo, algumas pessoas realmente mudam.

Produto

  • Pageboy
  • Elliot Page
  • Intrínseca
  • 288 páginas

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