O Livro Africano Sem Título
Com tradução de Tiganá Santana, livro do congolês Fu-Kiau disseca a cosmologia dos Bantu-Kongo, grupo étnico do qual veio grande parte dos escravizados no Brasil
O que você sabe da cosmologia dos Bantu-Kongo? O nome pode até não soar familiar para todo mundo, mas o grupo étnico situado nas margens do Oceano Atlântico na África Ocidental tem muito a ver com o Brasil. Na verdade, o tronco linguístico bantu engloba o país de Angola, região de onde grande parte dos que acabaram escravizados por aqui foram trazidos. Mas, apesar da proximidade do país com o tema, “O Livro Africano Sem Título” (Cobogó, 2024), um dos mais importantes a dissecar a cosmologia dos Bantu-Kongo, levou mais de 20 anos para desembarcar nas prateleiras nacionais.
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Com uma tradução atenta do cantor, compositor, poeta e pesquisador baiano Tiganá Santana, que estuda o tema, a obra é uma das mais importantes de Kimbwandende Kia Bunseki Fu-Kiau (1934-2013), proeminente estudioso da cultura africana — e a primeira a ser traduzida no país. No livro, o escritor e pesquisador de origem congolesa apresenta com riqueza de detalhes — e, sempre que necessário, o apoio de figuras e diagramas — os ensinamentos, princípios e provérbios, enfim, a concepção de mundo que rege os Bantu-Kongo, um sistema de pensamento guiado pela coletividade, a comunidade e a ancestralidade como características fundamentais.
Como o próprio autor indica no texto introdutório, o não-título é uma brincadeira para enfatizar a universalidade da obra, permitindo que leitores de todas as origens possam apelidar o volume por aquilo que mais lhes convém. Mais do que um livro sobre a cultura, religião e modo de vida de um grupo étnico, “O Livro Africano Sem Título” busca ser uma passagem sem escalas para o coração de um povo. “A comida parecerá boa apenas se se puder experimentar e sentir a mente e o coração da pessoa que a cozinhou. Isto também se aplica às culturas”, exemplifica Fu-Kiau num trecho a um tempo direto, simples mas repleto de conhecimentos e significados, estilo que dá o tom ao longo de toda a obra.
Cresci numa aldeia de, pelo menos, mil habitantes (antes de ela conhecer o êxodo rural). Não havia um único policial, a cadeia era desconhecida, não havia agente secreto, isto é, um cão de guarda do povo. Não havia um escritório de investigação, nenhuma sentinela para vigiar os bens das pessoas. De dia, essa aldeia ficava, em sua totalidade, praticamente vazia, sem uma única pessoa para cuidar das portas destrancadas. Pessoas de fora eram sempre bem-vindas. Cada pessoa se sentia responsável pela outra pessoa na comunidade e nas cercanias. Quando um membro da comunidade sofria, era a comunidade como um todo que sofria. Até a idade de 25 anos, era muito bom viver nessa comunidade — literalmente, uma comunidade sem problemas. Comunidades como essa ainda existem em muitas partes do mundo que são conhecidas como “regiões em desenvolvimento”, onde a corrida imperialista das armas ainda não perturbou a paz. Tome-se, contudo, qualquer cidade moderna africana (centro de civilização importada), em que encontramos milhares de policiais, serviços de segurança, escolas com suas muitas centenas de professores “civilizadores”, todas as espécies de conselheiros, todos os tipos de conhecimento ignorado pelos meios rurais, e sem falar a respeito dos empregos garantidos! Pode-se imaginar ou dizer quanto de corrupção, brigas, insultos, falsificações, discriminações, sequestros e crimes são praticados cada dia por nossos líderes e intelectuais nessas cidades? Qualquer uma dessas cidades é parecida com qualquer outra no mundo. E a minha questão permanece: onde está “o” Kimûntu (o estado de ser humano) que devemos ser?
Cresci numa aldeia de, pelo menos, mil habitantes. Não havia um único policial, a cadeia era desconhecida
A África está sofrendo agora porque escolheu e adotou uma lei que tem menos a ver com humanidade, uma lei que enfatiza mais a vida dos líderes odiados, antidemocráticos e impopulares e em favor dos objetos desalmados. O peso é tão grande sobre os ombros dos líderes africanos que lhes é impossível pensar, coerente e conscientemente, acerca de suas responsabilidades nacionais. A África, sob tal liderança com essa lei, será boa para nada. Nosso mundo precisa de uma nova ordem. Essa ordem só é possível com uma nova lei nos países recém-nascidos. Uma lei que deve neutralizar antagonismos mundiais correntes. A África pode contribuir imensamente na construção dessa ordem se escolher uma lei que veja primeiro o valor e as necessidades das pessoas, em vez de sua destruição. Os/As africanos/as devem se unir e pisar firmemente com os próprios pés neste tempo em que mesmo os países mais democráticos se tornam antidemocráticos; um tempo em que países de manutenção da paz se tornam países partidários da ditadura; um tempo em que os/as observadores/as dos direitos humanos se tornam incentivadores/as da matança humana. A salvação africana não virá nem do Oriente nem do Ocidente. Ela é, totalmente, um assunto africano. Nosso mundo está amedrontado com o que quer que seja porque estamos inteiramente jogados/as num oceano de sangue humano e ninguém pode respirar. Espero que este estudo, em sua perspectiva tradicional africana de lei e crime, seja de interesse para os/as legisladores/as e melhore o entendimento desses conceitos africanos, especialmente os relativos à terra e à estrutura social.
A salvação africana não virá nem do Oriente nem do Ocidente. Ela é, totalmente, um assunto africano
O estudo em si não é comparativo entre os conceitos africanos e ocidentais de lei e crime, mas uma descrição dos conceitos tradicionais legais africanos entre os/as Kongo, compreendendo uma das zonas mais importantes da cultura africana. Os elementos de lei descritos aqui poderiam, no futuro, servir como fontes de informação para um estudo comparativo de lei e crime. Esses conceitos são importantes porque refletem a história cultural e a sociedade em geral. Por causa da aliança com mestres capitalistas-imperialistas ocidentais, a liderança africana atual está desenvolvendo sistemas legais com fundamentos ocidentais, que carecem de entendimento das tradições culturais africanas, no que diz respeito à lei; tradições que devem suscitar autênticas e originais Constituições Africanas, Tusikudukusu — forma plural de Lusikudukusu.
É quase impossível, nos dias de hoje, evitar a influência ocidental, mesmo a oriental, na legislatura africana. Contudo, a tendência à ocidentalização ou à orientalização da legislatura africana levanta sérias questões: as instituições ocidentais ou orientais importadas para a África ajustar-se-ão às bases culturais “tribais/étnicas”? Não estarão essas bases em constante conflito? A substituição das leis tradicionais africanas baseadas no tabu pelas leis ocidentais ou de outras bases não causará algum tipo de desequilíbrio social aos conceitos e valores fundamentais africanos? Não é o tabu tradicional, sistema africano coletivista ou comunalista, o melhor sistema para o desenvolvimento africano? São algumas questões importantes que eu gostaria de discutir, não como um especialista no assunto, mas como um africano que foi alimentado pela experiência da vida cotidiana desse sistemático modo africano de viver por mais de quarenta anos em minha comunidade Kongo. Não nas cidades, mas no interior, onde a vida real africana é encontrada e onde os problemas africanos mais críticos são vividos, e, acima de tudo, onde línguas e cosmologias que geram todo o pensamento e filosofia africanos ainda estão vivas.
As instituições ocidentais ou orientais importadas para a África ajustar-se-ão às bases culturais “tribais/étnicas”?
- O Livro Africano Sem Título: cosmologia dos Bantu-Kongo
- Bunseki Fu-Kiau (trad. Tiganá Santana)
- Cobogó
- 208 páginas
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