O Coração É o Último a Morrer, de Margaret Atwood — Gama Revista

Trecho de livro

O Coração É o Último a Morrer

Margaret Atwood, de ‘O Conto da Aia’, retorna à ficção especulativa em romance sobre um mundo economicamente arruinado

Leonardo Neiva 01 de Abril de 2022

Muito antes de o livro “O Conto da Aia” (Rocco, 2017) ser adaptado para uma série de sucesso, Margaret Atwood já era uma das autoras mais conceituadas do mundo. O sucesso que a obra reencontrou nos últimos anos – segundo a Amazon, o livro saltou direto para o topo dos mais vendidos em 2017 –, no entanto, mostrou que a história clássica não envelheceu um único dia em seus mais de 40 anos de publicação. A adaptação serviu também para apresentar uma das autoras mais versáteis e inventivas da literatura para uma nova geração de leitores.

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Agora a romancista, poeta, professora, crítica literária, ensaísta, inventora e ativista mergulha mais uma vez na ficção especulativa, aquela que lida com mundos diferentes do real, com o lançamento de “O Coração É o Último a Morrer” (Rocco, 2022). O foco da vez é a história de um casal de classe média que, assim como quase todas as outras pessoas nesse universo, com a notória exceção dos ricos, viu as economias escaparem pelo ralo e os empregos desaparecerem como num truque de mágica dolorosamente realista – uma realidade não tão distante do mundo que conhecemos.

Após um longo período tendo que viver dentro de um velho e pequeno Honda, os dois finalmente encontram consolo nos braços do Projeto Positron, que lhes oferece condições decentes de moradia, comida e um emprego fixo. Mas há um porém. Em meses alternados, eles devem ser trancafiados numa prisão, cumprindo seu tempo feito os condenados que não são. Afinal, como a própria Atwood já fez questão de lembrar, “toda distopia contém uma utopia – e vice-versa”.


Desconforto

Dormir no carro é desconfortável. Só para começar, sendo um Honda de terceira mão, não é nenhum palácio. Se fosse uma van, eles teriam mais espaço, mas era bem pouco provável que pudessem comprar uma, mesmo quando achavam que tinham dinheiro. Stan diz que eles têm sorte de ter qualquer tipo de carro, o que é verdade, mas a sorte deles não torna o carro maior.

Charmaine acha que Stan deve dormir no banco de trás, porque precisa de mais espaço — seria justo, ele é maior –, mas ele tem que ficar na frente a fim de arrancar com o carro rapidamente se houver uma emergência. Ele não confia na capacidade de funcionar de Charmaine sob tais circunstâncias: diz que ela ficaria ocupada demais gritando para conseguir dirigir. Assim, Charmaine pode ficar com o banco traseiro, mais espaçoso, embora, de todo modo, tenha que se enrolar como um caracol porque não consegue exatamente se esticar.

Eles mantêm as janelas quase sempre fechadas por causa dos mosquitos, das gangues e dos vândalos solitários. Os solitários não costumam ter pistolas ou facas — se tiverem esses tipos de armas, você tem que fugir três vezes mais rápido –, mas são capazes de andar desvairados com um taco na mão, e um louco com um pedaço de metal ou uma pedra ou mesmo um sapato de salto alto pode fazer muitos estragos. Eles vão pensar que você é um demônio ou um morto-vivo ou uma prostituta vampira, e nada que se possa fazer para acalmá-los vai mudar essa opinião. Como Vovó Win costumava dizer, a melhor coisa a fazer com os doidos — aliás, a única coisa a fazer — é estar em outro lugar qualquer.

Com as janelas fechadas e apenas uma fresta aberta em cima, o ar fica parado e saturado com seus próprios odores. Não há muitos lugares onde possam tomar uma ducha ou lavar as roupas, o que deixa Stan irritável. Charmaine também se sente assim, mas se esforça ao máximo para dominar esse sentimento e ver o lado positivo — de que adianta reclamar?

De que adianta seja o que for?, pensa com frequência. De que adianta sequer pensar De que adianta? Então ela diz: “Querido, vamos nos animar!”

“Por quê?” Stan poderia perguntar. “Me dê a porra de uma boa razão para me animar.” Ou então poderia dizer: “Querida, cala a boca!”, imitando o tom leve, positivo, dela, o que seria maldoso da parte dele. Ele pode ser maldoso quando está irritado, mas no fundo é um bom homem. A maioria das pessoas é boa se tiver a oportunidade de mostrar seu lado bom: Charmaine está determinada a continuar acreditando nisso. Uma ducha ajuda a mostrar o lado bom de uma pessoa, porque, como Vovó Win tinha o hábito de dizer: O asseio anda lado a lado com a santidade, e a santidade significa bondade.

Essa era uma das coisas que ela podia dizer, como: Sua mãe não se suicidou, isso foi só conversa. Seu pai fez o melhor que pôde, mas ele tinha que suportar muita coisa e foi demais para ele. Você deve se esforçar para esquecer todas essas coisas, porque um homem não é responsável quando bebeu demais. E então ela diria: Vamos fazer pipoca!

E elas faziam pipoca e Vovó Win dizia: Não olhe pela janela, queridinha, você não vai querer ver o que eles estão fazendo lá fora. Não é bonito. Eles gritam porque querem. É uma forma de expressão. Sente-se aqui ao meu lado. Tudo acabou bem, porque, olha só, aqui está você, e nós estamos felizes e seguras agora!

Mas isso não durou muito. A felicidade. A segurança. O agora.

Stan diz que eles têm sorte de ter qualquer tipo de carro, o que é verdade, mas a sorte deles não torna o carro maior

Onde?

Stan se contorce no banco da frente, tentando ficar confortável. Não há muita chance de isso acontecer. Então, o que ele pode fazer? Para onde podem se virar? Não há lugar seguro, não há instruções. É como se ele estivesse sendo levado por um vento cruel e insensato, sem rumo, em círculos, dando voltas e mais voltas. Sem saída.

Ele se sente muito só e, às vezes, ter Charmaine ao seu lado faz com que se sinta ainda mais solitário. Ele a decepcionou.

Ele tem um irmão, é verdade, mas isso seria um último recurso. Ele e Conor haviam seguido caminhos diferentes, era a maneira educada de dizer isto. Uma briga de bêbados no meio da noite, com livre troca de xingamentos, seria a forma indelicada, e foi, na verdade, a maneira que Conor havia escolhido durante o último encontro deles. Para ser preciso, Stan também havia escolhido esse caminho, embora nunca tivesse tido uma boca tão suja como Con.

Na opinião de Stan — a opinião que tinha na época –, Conor era quase um criminoso. Mas na visão de Con, Stan era um idiota do sistema, um puxa-saco, uma farsa e um covarde. Um palerma.

Onde estará o escorregadio Conor agora, o que estará fazendo? Ao menos ele não perdeu o emprego no grande colapso financeiro e comercial que transformou esta parte do país em sucata: você não pode perder seu trabalho se não tiver um. Ao contrário de Stan, ele não foi expulso, excluído, condenado a uma vida de perambulação frenética, com os olhos ardendo de poeira e as axilas rançosas. Desde criança, Con sempre viveu à custa do que podia surrupiar dos outros. Stan não esqueceu seu canivete suíço, comprado com o dinheiro que tinha poupado, seu Transformer, sua arma Nerf com as balas de espuma. Todos eles desapareceram como por mágica, com a cabeça do irmão mais novo abanando de um lado para o outro, de jeito nenhum, quem, eu?

Stan acorda no meio da noite pensando por um momento que está em casa na cama, ou pelo menos em uma espécie qualquer de cama. Estende a mão para tocar em Charmaine, mas ela não está ao seu lado. Percebe então que se encontra dentro do carro fedorento, com vontade de urinar, mas com medo de destrancar a porta por causa das vozes alteradas que vêm em sua direção, dos passos triturando o cascalho ou pisando com força no asfalto, e talvez de um punho cerrado batendo no teto e um rosto com cicatrizes e desdentado sorrindo à janela: Olhem só o que temos aqui! Caralho! Vamos abrir isto! Me passem um pé de cabra!

E então o sussurro apavorado de Charmaine: “Stan! Stan! Temos que ir embora! Temos que ir agora mesmo!” Como se ele não tivesse percebido. Ele sempre mantém a chave na ignição. Motor ligado, guincho de pneus, gritaria e insultos, o coração aos saltos, e depois? Mais do mesmo em algum outro estacionamento ou numa ruela qualquer, em algum outro lugar. Seria bom se ele tivesse uma metralhadora: qualquer coisa menor do que isso não serviria para nada. Do jeito que as coisas estão, sua única arma é a fuga.

Sente-se perseguido pelo azar, como se a falta de sorte fosse um cão raivoso, movendo-se furtivamente atrás dele, farejando-o, esperando por ele nas esquinas. Espreitando por baixo dos arbustos para fitá-lo com olhos amarelos malévolos. Talvez ele precise de um bruxo, algum feiticeiro vudu sério. E de algumas centenas de dólares para poderem passar uma noite em um motel, com Charmaine ao seu lado, e não na parte de trás do carro, longe do seu alcance. Isso seria o mínimo necessário: pedir mais seria um abuso.

A compaixão de Charmaine torna tudo pior. Ela se esforça muito. “Você não é um fracassado“, dizia ela. “Só porque perdemos a casa e estamos dormindo no carro, e você ter sido…” Ela não quer dizer demitido. “E você não desistiu, pelo menos está procurando um emprego. Essas coisas como perder a casa, e, e… essas coisas aconteceram com muita gente. Com a maioria das pessoas.”

“Mas não com todas”, respondia Stan. “Não com todo mundo.”

Não aconteceu com os ricos.

A compaixão de Charmaine torna tudo pior. Ela se esforça muito. “Você não é um fracassado”, dizia ela

Eles haviam começado muito bem. Na época, ambos tinham emprego. Charmaine trabalhava na rede Clínica e Casa de Repouso Ruby Slippers, na área de entretenimento e eventos. Possuía um jeito especial com os idosos, diziam os supervisores, e estava subindo na empresa. Ele também estava indo bem: assistente de controle de qualidade na Dimple Robotics, testando o módulo de Empatia nos modelos automatizados de atendimento ao cliente. As pessoas não queriam simplesmente que suas compras fossem ensacadas, ele costumava explicar a Charmaine: elas desejavam uma experiência de compra completa, o que incluía um sorriso. Os sorrisos eram difíceis; eles podiam se transformar num esgar ou num trejeito malicioso, mas se você conseguisse obter um sorriso direito, as pessoas estavam dispostas a pagar mais por isso. Era espantoso imaginar, agora, com o que as pessoas um dia estiveram dispostas a gastar dinheiro extra.

Eles tiveram um casamento discreto — apenas amigos, já que não restava muita família de nenhum dos lados, uma vez que os pais de ambos tinham morrido de uma forma ou de outra. Charmaine dissera que não teria convidado a família dela de qualquer maneira, embora não tenha se estendido sobre o assunto porque não gostava de falar dos parentes, mas que teria gostado se sua Vovó Win pudesse ter comparecido. Quem sabia onde estava Conor? Stan não o procurou porque, se ele tivesse aparecido, provavelmente teria tentado apalpar Charmaine ou fazer outra palhaçada qualquer para chamar a atenção.

Depois, tinham ido passar a lua de mel nas praias da Geórgia. Isso tinha sido um ponto alto. Lá estavam os dois nas fotografias, bronzeados e sorridentes, o sol à sua volta como uma névoa, erguendo seus copos de… o que era mesmo aquilo, um coquetel tropical qualquer carregado de licor de limão. Erguendo seus copos à nova vida. Charmaine em um top sem mangas, estampado de flores, com um sarongue e uma flor de hibisco enfiada atrás da orelha, os cabelos louros brilhando, despenteados pela brisa, ele em uma camisa verde com pinguins, que Charmaine havia escolhido, e um chapéu-panamá; bem, não um panamá de verdade, mas nesse estilo. Pareciam tão jovens, tão puros. Tão ansiosos pelo futuro.

Stan enviara uma dessas fotografias a Conor para mostrar que, finalmente, ele tinha uma garota que o irmão não podia roubar. Também como exemplo do sucesso que o próprio Con poderia esperar ter se ele se assentasse, se endireitasse, parasse de cumprir pequenos períodos de pena na prisão e de viver na marginalidade. Não que Con não fosse esperto: era esperto até demais. Sempre aproveitando todas as oportunidades.

Con enviara uma mensagem de volta: Belas tetas e traseiro, mano. Ela sabe cozinhar? Mas que pinguins idiotas. Típico: Con tinha que zombar, tinha que menosprezar. Isso fora antes de Stan bloquear o contato, jogar fora seu e-mail, recusar-se a lhe fornecer seu endereço.

Pareciam tão jovens, tão puros. Tão ansiosos pelo futuro

Quando regressaram ao Norte, deram entrada na compra de uma casa, um pequeno imóvel de dois quartos precisando de um pouco de amor, mas com espaço para a família crescer, dissera o agente com uma piscadela. Parecia acessível, mas, em retrospectiva, a decisão de comprar revelara-se um erro — houve as reformas e consertos, o que significou uma dívida extra, além da hipoteca. Disseram a si mesmos que poderiam lidar com isso: não eram muito gastadores e trabalhavam arduamente. Isso era o pior: o trabalho árduo. Ele se matara de trabalhar. Poderia muito bem não ter se incomodado, uma vez que tudo fora por água abaixo. Stan fica maluco só de pensar em como ele se esfalfara.

Depois, tudo desandou. Como se tivesse sido de um dia para o outro. E não apenas em sua própria vida pessoal: todo o castelo de cartas, todo o sistema desmoronara, trilhões de dólares evaporados dos balancetes como neblina de uma vidraça. Na televisão, hordas de peritos de meia-tigela tentavam explicar por que tudo aquilo havia acontecido — demografia, perda de confiança, gigantescos esquemas fraudulentos no mercado financeiro –, mas tudo não passava de conjecturas estúpidas. Alguém havia mentido, alguém havia trapaceado, alguém havia minado o mercado, alguém havia inflacionado a moeda. Poucos empregos, gente demais. Ou poucos empregos para o americano médio como Stan e Charmaine. O Nordeste, onde estavam, foi o mais atingido.

A filial da Ruby Slippers onde Charmaine trabalhava teve dificuldades: era dirigida à classe alta, de modo que muitas famílias não tinham mais condições de manter seus idosos lá. Os quartos se esvaziaram, despesas gerais foram cortadas. Charmaine candidatou-se a uma transferência — a rede ainda estava indo bem na Costa Oeste –, mas isso não aconteceu, e ela tornou-se dispensável. A seguir, a Dimple Robotics fez as malas e se mudou para o Oeste, e Stan foi lançado do alto sem paraquedas.

Sentaram-se na casa recém-comprada, no sofá recém-comprado, com as almofadas floridas que Charmaine tivera tanto trabalho de combinar, abraçaram-se, disseram que se amavam, Charmaine chorou, Stan lhe deu palmadinhas nas costas e se sentiu inútil.

Charmaine arranjou um emprego temporário servindo mesas; quando o lugar fechou as portas, ela conseguiu outro emprego. E depois outro, em um bar. Não eram lugares sofisticados; esses estavam desaparecendo, pois quem podia se dar ao luxo de comer comida fina estava se empanturrando mais a oeste, ou então em países exóticos onde o conceito de salário mínimo nunca existira.

Stan não teve a mesma sorte com os biscates: qualificado demais, era o que lhe diziam na agência de empregos. Ele alegava que não era exigente, que não se importava de lavar o chão, de cortar grama. Eles sorriam com desdém (Que chão? Que gramados?) e lhe diziam que o manteriam no registro. Mas então a própria agência de empregos fechou. Para que mantê-la aberta se não havia emprego?

Só foi testado em ratos. Ratos não são pessoas! Mas há gente que se agarra a qualquer coisa. Nós recusamos ao menos uma dúzia de ofertas de sangue de bebês

Eles permaneceram em sua pequena casa, vivendo de fast-food e do dinheiro que ganharam com a venda da mobília, poupando no consumo de energia, sentados no escuro, na esperança de que as coisas tomassem um rumo diferente. Por fim, colocaram a casa à venda, mas já não havia compradores; as casas que a ladeavam já estavam vazias e os saqueadores já haviam passado por elas, arrancando qualquer coisa que pudesse ser vendida. Um dia, pararam de ter dinheiro para pagar a hipoteca e seus cartões de crédito foram bloqueados. Eles saíram antes de serem despejados, fugiram antes que os credores pudessem tomar seu carro.

Por sorte, Charmaine tinha economizado um pouco de dinheiro. Isso, e o parco salário que recebia no bar, mais as gorjetas, davam para pagar a gasolina do carro e uma caixa postal, de modo que pudessem fingir que ainda tinham um endereço, caso alguma coisa viesse para Stan. Além de uma ou outra ida à lavanderia automática quando não suportavam mais a imundície de suas roupas.

Stan tinha vendido sangue duas vezes, apesar de não lhe pagarem grande coisa.

— Você pode não acreditar — disse a mulher ao lhe entregar um copo de papel com suco artificial depois da segunda sessão –, mas teve gente que nos perguntou se não queríamos comprar o sangue de bebês. Dá para acreditar?

— Não diga! — respondeu Stan. — Por quê? Os bebês não têm assim tanto sangue.

Era mais valioso, foi a resposta dela. Disse que surgira uma notícia afirmando que uma total renovação do sangue, sangue novo no lugar do velho, prevenia a demência e fazia seu relógio biológico retroagir vinte, trinta anos.

— Só foi testado em ratos — explicou ela. — Ratos não são pessoas! Mas há gente que se agarra a qualquer coisa. Nós recusamos ao menos uma dúzia de ofertas de sangue de bebês. Dissemos que não podíamos aceitar.

Mas alguém anda aceitando, pensou Stan. Podem apostar que sim. Se houver dinheiro envolvido.

Produto

  • O Coração É o Último a Morrer
  • Margaret Atwood
  • Rocco
  • 416 páginas

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