Trecho de Livro: O Contador de Histórias, de Dave Grohl — Gama Revista

Trecho de livro

O Contador de Histórias

Da adolescência punk até o sucesso com Nirvana e Foo Fighters, Dave Grohl usa de muito bom humor para contar sua extraordinária história de vida

Leonardo Neiva 21 de Janeiro de 2022

De baterista do Nirvana, uma das mais famosas bandas de rock de todos os tempos, à posição de vocalista dos Foo Fighters, grupo que faz sucesso entre os roqueiros desde os anos 1990, a trajetória de Dave Grohl na música já é bem conhecida dos aficionados pelo gênero. Com seus tradicionais carisma e bom humor, hoje ele já se firmou como uma figurinha bastante querida da música.

Mas se, por outro lado, nem todo mundo conhece a história do homem que segue desfilando vocais poderosos à frente de sua banda, “O Contador de Histórias” (Intrínseca, 2022) é uma ótima oportunidade de saber mais não só sobre os “causos” extraordinários que marcaram a vida do músico como também ter acesso a histórias exclusivas sobre os lendários bastidores do Nirvana e a relação com o colega e amigo Kurt Cobain, morto em 1994.

Repleto de situações bizarras, sofrimentos e alegrias e um amor sempre incondicional pela música, o relato reúne memórias que vão desde uma adolescência movida a muito punk até o sucesso estrondoso conquistado com os Foo Fighters vários anos depois. Com muita sinceridade, ironia e bom humor, o livro retrata também os perrengues típicos de um músico ainda sem grana nem fama, lá no início da carreira, além do amor pela família e reflexões sobre a vida pelo ponto de vista de um dos maiores roqueiros do mundo.


Era outono de 1990 em Olympia, Washington, e eu tinha acabado de receber meu primeiro salário como integrante remunerado do Nirvana. Espantosos quatrocentos dólares, de longe o maior pagamento da minha vida profissional até então. Esse adiantamento muito necessário da Gold Mountain, nossa recém-contratada empresa de agenciamento, chegou numa época em que o Nirvana estava sendo cortejado por todas as principais gravadoras numa guerra de lances, mas Kurt e eu literalmente estávamos passando fome e vivendo em absoluta miséria. Nosso apartamento na 114 NE Pear Street ficava nos fundos de uma casa caindo aos pedaços construída por volta de 1914 e tinha um quarto, um banheiro, uma sala apertada e uma cozinha do tamanho de um armário (ironicamente, o lugar ficava de frente para a sede da loteria estadual de Washington). Nenhuma Versalhes. “Sujo” não chega aos pés de descrever a imundície que era aquele lugar. Perto daquilo, o Hotel Chelsea parecia um Four Seasons. Era tipo o banheiro da Whitney Houston virado do avesso. Um estacionamento de cinzeiros e revistas depois de um tornado. Muita gente jamais se atreveria a pisar num buraco tão desastroso, mas era a nossa humilde morada e, para nós, um lar. Kurt ficava no quarto, e eu usava o meu saco de dormir em cima de um sofá marrom velho coberto de bitucas de cigarro que era bem menor que meu 1,80 metro. Do lado do sofá, tinha uma mesa velha onde Kurt mantinha uma tartaruga de estimação dentro de um terrário pútrido. Grande amante dos animais, Kurt tinha um apreço intrigante, e talvez metafórico, por tartarugas, já que o casco delas, sua principal proteção, na verdade era muito sensível.

— Tipo como se sua coluna vertebral ficasse do lado de fora do corpo — disse ele certa vez.

Mas, por mais bonito e anatomicamente poético que esse sentimento pudesse ser, no fim das contas não fazia diferença para mim, porque aquele réptil desgraçado passava todas as noites batendo a cabeça no vidro, tentando escapar do chiqueiro em que a gente morava, e nunca me deixava dormir. Não dava para criticar a coitada. Muitas vezes, eu partilhava do mesmo sentimento.

Grande amante dos animais, Kurt tinha um apreço intrigante, e talvez metafórico, por tartarugas, já que o casco delas, sua principal proteção, na verdade era muito sensível

Na época, eu tinha aprendido a sobreviver à base da promoção de três espetos de salsicha empanada por 99 centavos da loja de conveniência do posto de gasolina do outro lado da rua. O segredo era comer um no café da manhã (ao meio-dia) e deixar os outros dois para um jantar tardio depois do ensaio, dando forças para seguir até que as pontadas de dor da fome começassem de novo e eu fosse obrigado a fazer uma nova incursão vergonhosa à loja de conveniência com outra nota amassada de um dólar na mão. (Até hoje, só de ver uma salsicha num espeto, eu já tremo.) Puro sustento, era o que bastava para manter o meu metabolismo de 21 anos rodando, apesar da lamentável e completa falta de valor nutricional. Essa dieta subnutrida, combinada com meu hábito de tocar bateria cinco noites por semana com todas as forças do meu corpo magricela, me reduziu a praticamente um boneco esquálido, que mal preenchia as roupas velhas e sujas que eu guardava numa bolsa largada no canto da sala. Era mais do que o suficiente para fazer qualquer pessoa voltar com o rabo entre as pernas para o conforto da comida caseira da mamãe, mas eu estava a 4.483 quilômetros de Springfield, Virgínia. E estava livre.

“Quem me dera saber o que sei agora quando era jovem”, cantou Ronnie Wood na clássica “Ooh La La”, do Faces, de 1973. Ah, Ronnie, se você soubesse. É a mais pura verdade. Aquele adiantamento de quatrocentos dólares era de longe a maior quantia de dinheiro que eu já tinha visto na vida! Na minha cabeça, tinha virado a porra do Warren Buffett! Eu era filho de uma professora de escola pública de Fairfax County, então a minha infância não teve nada de frívolo, e aprendi a viver de acordo com as minhas condições, trabalhando para pagar as contas da melhor forma possível e encontrando felicidade nas coisas simples da vida. Música, amigos e família. Nunca conquistei tamanho patrimônio aparando gramados, pintando casas, preparando móveis para entregas ou cuidando do caixa numa Tower Records no centro de Washington. Para mim, aquilo era o topo. Eu enfim tinha faturado o prêmio máximo, mas, em vez de economizar e administrar essa vasta recompensa para garantir a minha sobrevivência (imagine a quantidade de salsichas!), fiz o que a maioria dos músicos jovens fazem com o primeiro pagamento: torrei em besteira.

Em retrospecto, agora entendo por que fui direto para uma loja de departamentos para comprar uma espingarda de chumbinho e um Nintendo. Era óbvio que eu estava curtindo os luxos de infância com que havia sonhado quando era pequeno, mas que nunca tive. Não digo que fui uma criança infeliz ou carente, mas todo dinheiro que sobrava lá em casa era reservado para coisas mais práticas, como sapatos ou casacos novos (talvez tenha havido uma motoneta de cinquenta dólares, mas isso é outra história). Minha incansável mãe trabalhava em vários empregos para fechar a conta do mês: professora durante o dia, atendente em loja de departamentos à noite e, nos fins de semana, fazia orçamentos para uma empresa de limpeza de carpetes.

Sendo mãe solo com duas crianças para alimentar, ela fazia de tudo para manter a gente feliz e saudável. E a gente foi. Uma pessoa genuinamente altruísta, em todos os sentidos, ela me ensinou a precisar de bem pouco e a dar muito. O profissionalismo dela está bem enraizado em mim, e sem dúvida é graças a ela que estou onde estou agora. A sensação persistente de que preciso ser produtivo, que tira o meu sono à noite e me arranca da cama de manhã, tem suas origens naquelas noites longas que ela passava corrigindo provas na escrivaninha da sala debaixo de uma luminária velha e acordando antes do amanhecer para garantir que a minha irmã e eu saíssemos de casa de banho tomado, vestidos e alimentados. De fato, minha profissão não é nada em comparação com a carreira de educadora dela, mas hoje, graças a ela, entendo a importância do trabalho. Então, quatrocentos dólares por tocar um rock and roll alto e dissonante? Grana fácil!

As tardes em Olympia passaram a ser dedicadas a atirar em caixas de ovos no quintal da nossa casa velha e jogar Super Mario World até o sol nascer

Em pouco tempo, nossas tardes em Olympia passaram a ser dedicadas a atirar em caixas de ovos no quintal da nossa casa velha e jogar Super Mario World até o sol nascer (não nego nem confirmo que talvez tenhamos dado uns tiros também no prédio da loteria do outro lado da rua em nome da revolução). Nosso chiqueiro miserável se transformou num playground adolescente dos infernos. Para mim, aquilo era Versalhes. Entretanto, como eu não tive nenhum juízo ou apreço por gastos práticos, a fortuna acabou rápido, e só me sobrou dinheiro para um último mimo ridículo: uma tatuagem. Mas não era a minha primeira. Não, a primeira foi uma obra-prima que infligi em mim mesmo com uma agulha de costura, linha e um vidro de nanquim preto aos catorze anos de idade. Quando vi aquela cena forte da tatuagem caseira em Eu, Christiane F., 13 Anos, Drogada e Prostituída, a obra-prima de Uli Edel, decidi decorar meu antebraço esquerdo do mesmo jeito autônomo com a logo do Black Flag, minha banda preferida na época. Depois de coletar todos os elementos necessários nas gavetas de tralha da minha casa, esperei todo mundo ir dormir, instalei um estúdio de tatuagem improvisado no meu quarto e comecei a operação nefasta. Que nem tinha visto no filme, esterilizei a agulha na chama de uma vela, enrolei com cuidado a linha fina na ponta e a mergulhei no vidro de nanquim, vendo as fibras absorverem o líquido preto denso. E então, com a mão firme, comecei. Espeta. Espeta. Espeta. Espeta. A ferroada da agulha ao penetrar minha epiderme me dava calafrios, e eu parava de vez em quando para limpar o excesso de pigmento borrado e avaliar o estrago. Eu definitivamente não era nenhuma Kat Von D, mas persisti, cravando a agulha até onde a minha resistência à dor permitia para garantir que aquela imagem importante nunca se apagasse. Se você conhece a icônica logo do Black Flag, sabe que é uma sequência irregular de quatro barras pretas grossas na vertical. Um trabalho difícil para um adolescente vagabundo e o kit de costura quase nunca usado da mãe. De alguma forma, consegui completar três das quatro barras antes de falar “Foooooda-se!” e parar. Não era a pièce de résistance que eu tinha em mente, mas meu coração estava tomado por um senso de algo definitivo que, de alguma forma, me encheu de energia. Um negócio para sempre.

Com o passar dos anos, compilei uma bela coleção dessas memoriazinhas borradas pelo corpo. Uma marquinha aqui, outra marquinha acolá, até eu enfim ser abençoado pela oportunidade de ter uma tatuagem legítima de um artista italiano chamado Andrea Ganora, que morava numa ocupação lendária de Amsterdã conhecida como Van Hall. O edifício, uma fábrica antiga de dois andares, tinha sido dominado e ocupado por um grupo pequeno de punk rockers da Europa toda no final de 1987. Holandeses, alemães, italianos — era uma comunidade unida de amigos que haviam transformado aquele prédio frio e cavernoso num lar, incluindo um palco para apresentações ao vivo no térreo (onde, por coincidência, gravei o meu primeiro disco ao vivo, SCREAM Live! at Van Hall, em 1988). Quando eu tinha dezoito anos, o lugar se tornou praticamente uma base para o Scream. Andrea era o tatuador de plantão, e a maioria dos residentes de Van Hall ostentava alguma obra dele. Ele era um verdadeiro artista, mas, ao contrário do ambiente estéril da maioria dos estabelecimentos de tatuagem chancelados, que mais pareciam laboratórios, seu estúdio era seu quarto, e sua máquina era feita a partir de uma campainha velha. A gente fumava um baseado atrás de outro e ouvia discos de punk e metal enquanto nossa risada e o zumbido elétrico da máquina ecoavam pelo cômodo. Até hoje, ainda tenho lembranças vívidas da empolgação com aquela primeira tatuagem “de verdade” e penso naquele sotaque italiano carregado e no cheiro adocicado de haxixe sempre que me olho no espelho e vejo o presente que ele me deu aquela noite. Foi há 33 anos, e ainda não desbotou.

Não demorou para minha lua de mel tipo Lifestyles of the Rich and Famous na Pear Street acabar, e voltei a racionar salsichas empanadas e lamentar a batucada incessante no terrário da tartaruga noite após noite, enterrando a cabeça nas almofadas sujas daquele sofá velho. Aprendi a lição. A temporada complicou, e a saudade de casa começou a bater. Eu tinha deixado meus amigos, minha família, minha doce Virgínia para trás em troca… daquilo. O inverno cruel do noroeste do país e a falta de sol só agravaram o sentimento de depressão que espreitava das sombras, mas, felizmente, eu ainda tinha algo para me impedir de recuar de volta para casa: a música. Por mais que o Nirvana às vezes pudesse ser disfuncional, surgia uma concentração implícita sempre que a gente pegava os instrumentos e ligava os amplificadores. A GENTE QUERIA ESTOURAR. Ou, como Kurt disse certa vez para Donnie Ienner, executivo e titã da indústria musical, quando estava sendo cortejado na sala dele num arranha-céu de Nova York: “A gente quer ser a maior banda do mundo.” (Achei que fosse brincadeira.)

À medida que o longo inverno dava lugar à primavera, passávamos incontáveis horas naquele estúdio improvisado, preparando músicas para o que viria a ser o álbum hoje conhecido como Nevermind

Nosso espaço de ensaios era tipo um celeiro que tinha sido convertido em estúdio de gravação, a meia hora de viagem ao norte de Olympia, num bairro residencial de Tacoma. Um pouquinho melhor que um porão velho e úmido, o espaço tinha aquecimento e um pequeno sistema de alto-falantes (sem falar no carpete felpudo duvidoso), então atendia bem às nossas demandas simples. Kurt e eu fazíamos a viagem empolgados cinco dias por semana num Datsun B210 que, por algum motivo, uma senhora tinha dado para ele de presente, e mal conseguíamos percorrer a Interestadual 5 sem que o carro caísse aos pedaços (um dos pneus chegou a soltar uma vez, espalhando os parafusos pelo cascalho na entrada da garagem no escuro). Nossa música era a única coisa que me distraía das dificuldades da vida nova que eu estava levando, a única coisa que fazia tudo valer a pena. Todos os ensaios começavam com uma “sessão de barulho”, que virou uma espécie de exercício de improvisação de dinâmica que aperfeiçoava nosso instinto coletivo e fazia com que não fosse preciso combinar verbalmente a estrutura das músicas; ela só acontecia, quase como um bando de andorinhas que flui graciosamente numa onda hipnótica sobre um campo no inverno. Esse método era crucial para a dinâmica de silêncio/barulho pela qual a gente ficou conhecido, mas não foi invenção nossa. O mérito pertencia aos Pixies, nossos heróis, uma influência enorme para a gente. Tínhamos adotado a marca simples deles em mais de uma das nossas músicas novas: versos breves e simples que explodiam em refrões gigantes e estridentes. Uma justaposição sônica com resultados ferozes, principalmente em “Smells Like Teen Spirit”.

À medida que o longo inverno dava lugar à primavera, passávamos incontáveis horas naquele estúdio improvisado, preparando músicas para o que viria a ser o álbum hoje conhecido como Nevermind.

Produto

  • O Contador de Histórias
  • Dave Grohl
  • Intrínseca
  • 416 páginas

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