O caso do Porsche: medidas e suas incertezas — Gama Revista
COLUNA

Marcelo Knobel

O caso do Porsche: medidas e suas incertezas

Precisamos pensar criticamente, entendendo os limites de cada medida experimental e permitindo utilizar a tecnologia da melhor maneira possível

07 de Maio de 2024

Causou comoção no país o trágico acidente que ocorreu recentemente em São Paulo, onde um carro de luxo bateu com força na traseira de outro carro, causando a morte do motorista de aplicativo que dirigia o carro atingido e causando graves ferimentos ao colega do motorista do carro que causou o incidente. O acidente teve ainda mais repercussão porque foi completamente registrado em vídeo, que circulou rapidamente pela internet, e porque o motorista do Porsche foi imediatamente liberado pela polícia no local do evento, que ocorreu na madrugada de 31 de março deste ano em uma avenida na Zona Leste de São Paulo.

De acordo com o relatório final da Polícia Civil, que cita o laudo 116742/2024 da Polícia Técnico-Científica, no item “5 Dinâmica do Acidente”, mais precisamente à fl. 458, o perito responsável pelo exame afirma que “a estimativa da velocidade média mais provável com que o PORSCHE 911 CARRERA GTS era conduzido instantes antes do acidente é de 156,4 km/h com desvio padrão de 7,7 km/h” e no instante imediatamente anterior à colisão “a estimativa da velocidade média mais provável com que o PORSCHE 911 CARRERA GTS era conduzido (…) é de 114,8 km/h com desvio de padrão de 6,1 km/h”. O Sandero transitava entre 38,3 km/h e 40 km/h, sendo que o limite para a avenida é de 50 km/h.

As imagens são de fato impressionantes e não é necessário ser perito para perceber que o Porsche estava a uma velocidade muito acima da permitida na via. Ao estudar cinemática, aprendemos que se temos a distância percorrida e o tempo decorrido para percorrer essa distância podemos facilmente calcular a velocidade média dos carros. Quanto mais precisão temos na medida, melhor pode ser a estimativa, no limite podemos até calcular a velocidade instantânea em vários pontos da trajetória. No entanto, como muito bem destacado em um fio de Twitter do Físico Leandro Tessler, é impossível determinar a velocidade dos carros com a precisão que sugere o texto.

De fato, para atingir a precisão indicada eles precisariam de medidas de distância e de tempo com precisão de 10-4. Ao assistir o vídeo, e com uma análise muito cuidadosa (talvez no local do acidente, ou com uma reconstrução 3D) poderia-se, na melhor das hipóteses, chegar a precisões da ordem dos centímetros para distâncias da ordem de dezenas de metros (isso significa uma precisão da ordem de milésimos, 10-3). Para calcular o tempo, os peritos estão limitados pela frequência de aquisição de imagens, que nas câmeras comuns de trânsito geralmente é de 30 quadros por segundo, ou seja, uma foto a cada 33 milissegundos (ms). Considerando a ordem de grandeza da velocidade como sendo 160 km/h (o que é aproximadamente 44 m/s), cada foto flagra o carro após uma distância de aproximadamente 1,5 m (pois ela tira uma foto a cada 33 ms) e, para andar 10 metros, o carro levaria por volta de 230 ms. Novamente, mesmo que fosse possível fazer uma excelente medida, sempre há imprecisões que são inerentes a quaisquer condições de medidas.

O carro não estava ‘um pouco acima’ do limite de velocidade, mas sim muito acima desse limite

Considerando ainda a propagação das incertezas, seria razoável no máximo estimar a velocidade com incertezas da ordem de centésimos (10-2). Para ser justo, o laudo indica os “desvios-padrão” calculados, ou seja, as incertezas das medidas, que chegam a 8 km/h. Ora, se a incerteza final é de alguns quilômetros por hora, não dá para afirmar que a velocidade era exatamente 156,4 ou 114,8 km/h. Assim, o mais correto seria divulgar a velocidade do carro com os algarismos significativos corretos, algo por exemplo como 160±10 km/h, ou quem sabe 156±8 km/h, pois não há como ter precisão suficiente para dizer outra coisa. O mesmo argumento vale para o carro que estava em menor velocidade. De qualquer modo, essa velocidade é certamente muito maior do que o permitido na avenida, em pelo menos três vezes. A conclusão segue clara: o carro não estava “um pouco acima” do limite de velocidade, mas sim muito acima desse limite.

Que fique claro que a intenção aqui não é contestar o laudo técnico, mas chamar a atenção para o quanto precisamos pensar criticamente, entendendo os limites de cada medida experimental e permitindo utilizar a tecnologia da melhor maneira possível. Nos cursos básicos de Física experimental são ensinados aos alunos os limites e incertezas de uma medida, e de que maneira estimar essas incertezas e assim representar adequadamente uma grandeza. Se não há precisão suficiente, não é correto representar a grandeza com uma quantidade de algarismos maior do que a nossa medida permite, e só devemos usar o número certo dos chamados “algarismos significativos”.

Por exemplo, se medirmos o comprimento de um lápis, é muito diferente escrever 12,234 cm, 12,23 cm, 12,2 cm, ou 12 cm, pois quando se colocam mais algarismos significativos entende-se que a medida tem precisão suficiente para afirmar que o valor é preciso pelo menos até o último algarismo colocado. Como a incerteza também é uma estimativa, o correto também é escrevê-la com apenas um algarismo significativo. Mas claro, é muito comum encontrarmos no nosso cotidiano diversas grandezas erroneamente escritas com um número excessivo de algarismos significativos, como no peso de produtos alimentícios.

Além disso, ao preparar este artigo, me deparei com alguns fenômenos interessantes que ocorrem na divulgação das notícias. Simplesmente não consegui encontrar o laudo completo, pois nenhuma das notícias veiculadas pelos diferentes meios de comunicação colocaram um link ou acesso ao laudo original. Tive que apelar para colegas jornalistas para tentar conseguir acesso ao laudo original, mas sem sucesso (só consegui o relatório final). Aliás, isso reitera outro aspecto que me causou estranheza, que foi a quantidade de notícias idênticas, que são simplesmente copiadas de uma reportagem para outra, até com as mesmas palavras. Quantos jornalistas terão tido a preocupação de checar as informações no laudo original? Quantas informações são eventualmente deturpadas nesse verdadeiro “telefone sem fio” que se tornaram as notícias veiculadas pela internet, que são facilmente copiadas e adaptadas com um simples “copia” e “cola”?

Marcelo Knobel Marcelo Knobel é físico e professor do Instituto de Física Gleb Wataghin, da Unicamp. Escreve sobre ciência, tecnologia, inovação e educação superior, e como impactam nosso cotidiano atual e o futuro

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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