Ninguém Pode com Nara Leão
Uma das mais importantes vozes da música popular brasileira, Nara Leão ganha biografia escrita pelo jornalista Tom Cardoso; Gama publica um trecho com exclusividade
POR QUE LER?
Alcunhada como a “musa da bossa nova”, Nara Leão ficava longe da passividade e da intocabilidade das divas do Olimpo — e também não se limitou apenas aos embalos do banquinho e do violão, embora estes sejam signos recorrentes nos registros dela em palco. De fato, a turma-gênese da bossa nova se reunia no apartamento dos pais de Nara na Avenida Atlântica, em Copacabana, e a cantora se consagrou como uma das grandes vozes do movimento, mas não só.
Foi no espetáculo político “Opinião”, de João do Vale e Zé Keti, logo após o golpe militar de 1964, que ela lançou sua forte presença para além do círculo bossanovista e, a partir daí, desnudou-se em facetas múltiplas nos anos de auge da MPB. Em constante busca pela novidade estética, Nara descobriu Maria Bethânia na Bahia e se apaixonou pelo som de Fagner no Ceará, dividiu seu vasto repertório entre choro, samba de morro, canção de protesto e tropicália. “Nasceu tropicalista antes de o termo existir”, escreve Tom Cardoso.
O jornalista — que já esmiuçou a vida de figuras como o jogador Sócrates e o político Sérgio Cabral e ganhou um Jabuti pelo livro-reportagem “O Cofre do Dr. Rui” (Record, 2011) — é o autor da biografia “Ninguém Pode Com Nara Leão”, na qual desvenda a vida e a obra de uma das mais importantes personalidades da música popular brasileira. Com lançamento previsto para o final de janeiro pela editora Planeta, o livro traz ainda um prefácio do respeitado crítico Tarik de Souza e, ao final, a discografia completa de Nara — prova de seu ecletismo profícuo e trilha sonora para cada momento da leitura.
Duas mortes, ambas inesperadas, ocorridas num período de seis meses, abalaram ainda mais o estado emocional de Nara. No dia 22 de agosto de 1981, morria Glauber Rocha, vítima de septicemia. Mais que um grande amigo, ele a incentivou a levar em frente as suas transgressões e ousadias, bastante presentes nos três primeiros discos – em Opinião de Nara, o cineasta baiano foi um produtor informal, dando palpites em quase tudo.
Glauber amava as diferentes facetas de Nara. Assim como Ruy Guerra, não se deixava levar pela aparente fragilidade física e o temperamento dócil e delicado da cantora – sabia com quem estava lidando. Em cartas do exílio na Europa enviadas a Cacá Diegues, Glauber enaltecia as qualidades da companheira do amigo, referindo-se a ela como se fossem duas em uma só: “Amo Nara Leão. Nara e Narinha. Essa mulher sabe tudo do Brasil 1964. Essa mulher é a primeira mulher brasileira. Essa mulher não tem tempo a perder. Atenção: ninguém pode com Nara Leão”.
Essa mulher sabe tudo do Brasil 1964. Essa mulher é a primeira mulher brasileira
Por alguns anos, a maior cantora do Brasil não reconheceu nenhum poder em Nara Leão, mas mudou de atitude no final da vida. No dia do aniversário de Nara, em 19 de janeiro de 1982, os amigos ligaram para lhe dar parabéns e para informar que Elis Regina estava morta após uma overdose de cocaína potencializada por bebida alcoólica. Nara custou a acreditar. Tinha estado com Elis meses antes num inesperado encontro dentro de um avião, ambas voltando para o Rio.
No meio do voo, Elis se levantou e fez questão de ir até o assento de Nara, com quem havia alimentado – muito mais por conta do seu temperamento – uma das maiores inimizades da classe musical. Ao vê-la vindo para o fundo da aeronave, encolheu-se na poltrona, preparando-se para o pior.
Nem a mais violenta das turbulências seria mais desagradável do que iniciar um arranca-rabo dentro do avião com Elis Regina – sem poder sair pela primeira porta. Porém se surpreendeu quando, após sentar ao seu lado, ela pediu desculpas pelas grosserias e lá ficou até o fim do voo. Falaram dos mais variados assuntos, menos sobre Ronaldo Bôscoli.
Nem a mais violenta das turbulências seria mais desagradável do que iniciar um arranca-rabo dentro do avião com Elis Regina
As duas tinham um traço em comum, entre muitas diferenças de personalidade: a entrega total à música. Esse comportamento resultava em rompimentos violentos – cada uma à sua maneira – com o que representasse um entrave ao desenvolvimento delas como artista ou o limitasse.
Desde que rompera com a turma da bossa nova, Nara não admitia se tornar refém de nada. Nem dos amigos. Para o maior deles, Roberto Menescal, falou com franqueza: estava cansada dos músicos que sempre a acompanhavam e também das conversas no estúdio girando em torno dos mesmos temas. Do que adiantava gravar novos compositores a cada disco se o estúdio parecia uma representação do velho apartamento de Copacabana?
Ela queria respirar novos ares, e nada melhor que retomar uma velha amizade com um músico que também fizera parte da patota, mas sempre se recusou a se prender a modismos e grupinhos. O apreço por fusões musicais, nem sempre palatáveis ao gosto popular, o distanciamento da bossa nova, num momento em que seria fácil – e legítimo – faturar com ela, tinham distanciado João Donato do núcleo criador do gênero.
Ela queria respirar novos ares, e nada melhor que retomar uma velha amizade com um músico que também fizera parte da patota, mas sempre se recusou a se prender a modismos e grupinhos
Nara o admirava por sua coragem e liberdade. Donato nunca fez concessões. Nem mesmo no início da carreira, quando, muito jovem, lutando para sobreviver no Rio, negava-se a tocar o que os gerentes e clientes de boates queriam ouvir: boleros e clássicos do samba-canção. No novo disco da cantora, o pianista podia tocar o que quisesse – se pudesse compor para ela, melhor ainda.
Donato fez mais do que isso. Compôs canções e assinou os arranjos de várias músicas do disco Nasci para bailar, lançado em 1982. Durante toda a gravação, combinaram de ir ao trabalho juntos. Nara pegava um ônibus, vindo do Leme, e passava pela rua Montenegro (atual Vinicius de Moraes), onde o pianista já a esperava. Ela acenava, ele entrava e de lá partiam juntos para o estúdio da Philips, aonde chegavam de mãos dadas.
- Ninguém Pode com Nara Leão
- Tom Cardoso
- Planeta
- 240 páginas
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