Trecho de Livro: Mudar: Método, de Édouard Louis — Gama Revista

Trecho de livro

Mudar: Método

Em novo livro, Édouard Louis continua a saga literária de seu alter ego Eddy Bellegueule, cada vez mais dividido entre a desilusão e o sucesso

Leonardo Neiva 26 de Janeiro de 2024

Depois do acerto de contas com a família nos recentes “Quem Matou Meu Pai” e “Lutas e Metamorfoses de uma Mulher” (Todavia, 2023), o eterno enfant terrible Édouard Louis entra mais uma vez na pele de seu alter ego literário Eddy Bellegueule — cujo sobrenome é uma brincadeira com a expressão “rosto bonito” em francês. Agora, em “Mudar: Método” (Todavia, 2024), o autor narra enfim o amadurecimento do jovem protagonista de “O Fim de Eddy” e “História da Violência” (Tusquets, 2018 e 2020), personagem cuja história se funde cada vez mais à própria biografia de Louis. A Gama publica o trecho com exclusividade.

MAIS SOBRE O ASSUNTO
Quem Matou Meu Pai
A Vergonha É um Sentimento Revolucionário
Sodomita

Nascido em uma família pobre de classe operária numa cidadezinha do norte da França, assim como o escritor, Eddy segue passando pela infância e juventude enquanto enfrenta desafios relacionados à homofobia que o cerca, à desigualdade de classes e à complexidade dos laços familiares. A nova obra acentua ainda o distanciamento de Eddy/Édouard em relação aos amigos e à família, conforme o personagem luta para deixar um doloroso passado para trás.

Em sua voz tipicamente direta, sutil e afiada, o cotidiano repleto de desafios e traumas do protagonista ganha forma sem soar excessivamente melodramático, mas conservando uma sensibilidade capaz de nos transportar junto com ele para dentro da pele de Eddy. Centrado numa ideia de metamorfose que permeia quase todo o livro, “Mudar: Método” constrói uma trajetória ficcionalizada, mas não por isso menos verdadeira, de um jovem que parte de um passado de pobreza e violência rumo ao sucesso absoluto como escritor. Com tradução de Marília Scalzo, a obra funciona tanto como um manifesto quanto uma confissão, que não perde de vista aquilo que deixamos pelo caminho quando seguimos como rolos compressores em direção aos nossos maiores objetivos.


Subo as escadas de dois em dois degraus, nem sei mais em que pensava nessa escadaria, imagino que contasse os degraus para não pensar em outra coisa.
Cheguei diante da porta, recuperei o fôlego e toquei a campainha. O homem se aproximou do outro lado da porta, dava para ouvi-lo, dava para perceber o som dos seus passos no assoalho.

Tinha falado com ele pela primeira vez havia cerca de duas horas por um site. Fora ele que entrara em contato. Tinha me dito que gostava de garotos como eu, jovens, magros, louros, de olhos azuis — especificara: tipo ariano. Havia pedido que eu me vestisse como um estudante e fiz isso, pelo menos como a ideia que ele tinha de um estudante, eu usava uma blusa com capuz grande demais que peguei emprestado de Geoffroy e um par de tênis azul-anil, meu preferido, tinha me dobrado a seu desejo porque esperava que ele me pagasse mais do que havia prometido, para me recompensar por minha dedicação.

Fiquei esperando.

Ele enfim abriu a porta e, vendo seu corpo, tive que contrair os músculos do rosto para não fazer uma careta — ele não se parecia com as fotos que tinha me enviado, seu corpo era flácido, pesado, nem sei como dizer, como se caísse ou, melhor, como se escorresse para o chão.

Ele sofria só por ter se deslocado até a porta, eu via o cansaço, a falta de ar, a transpiração na forma de dezenas de gotículas minúsculas que brilhavam em sua testa; tentei olhar para ele o mínimo possível, queria evitar ver os detalhes de seu rosto; pensava Em menos de uma hora você vai estar longe daqui com o dinheiro. Seu cheiro chegava até mim, um cheiro artificial de baunilha, de leite azedo. Eu me concentrava nessa frase, Em menos de uma hora, o dinheiro, quando de repente ouvi vozes atrás dele, no apartamento. Eram vozes de homens, havia alguns ali, talvez três ou quatro; perguntei a ele quem eram; ele sorriu e disse: Não é nada. Você pode agir como se eles não estivessem aqui, eles estão acostumados, sempre chamo prostitutos, você não é o primeiro. Vamos para o meu quarto, pode ignorá-los.

Pensei: não quero que os outros vejam meu rosto — a vergonha começou a subir, a invadir meu corpo desde a ponta dos dedos até a nuca, como um fluido morno, paralisante, eu reconhecia sua ardência. Eu o ameacei dizendo que ia voltar para casa. Achei que minha frase o machucaria ou irritaria, mas ele não tentou me segurar, me propôs, calmamente, me dar cinquenta euros pelo deslocamento se eu quisesse dar meia-volta e ir embora, e eu o odiei por não ter se irritado. Precisava de mais do que cinquenta euros. Eu disse Tá bom, vamos direto para o seu quarto, eles não vão me ver, eu ponho o capuz.
Jurou que seus amigos não iam tentar ver meu rosto, Eles não estão nem aí, ele começou a se virar, eu via sua nuca branca e sebosa, Pensa no dinheiro, pensa no dinheiro.

Você é um tesão com essa carinha de nazista

Atravessei a sala com ele, que andava na minha frente. Abaixei a cabeça, o capuz escondia meu rosto. No quarto ele se sentou na beirada da cama, o contato de seu corpo pesado com o colchão produziu um barulho seco e agudo.
O colchão gritava em meu lugar.
Eu estava de pé, diante de seu corpo, não ousava me mexer, ele me olhava, Porra você é um tesão com essa carinha de nazista. Eu não disse nada, sabia que meu silêncio lhe agradaria, que era isso que ele queria e que era por isso que me pagava, pela minha dureza, minha frieza. Eu desempenhava um papel. Ele pediu para que eu me despisse, dizendo: o mais devagar possível, e assim eu fiz.
Então estava nu diante dele, e esperava. Ele disse apenas: Eu queria que você me comesse como uma vagabunda. Ele se ergueu, abaixou as calças até os joelhos, sem tirá-las completamente, e virou de costas para ficar de quatro em cima da cama — sua bunda na minha frente muito branca e muito vermelha, emaciada, molenga, coberta de pequenos pelos castanhos — ele repetia, Anda, me come, me come como se eu fosse sua putinha. Esfreguei meu pau em seu corpo, mas nada acontecia, meu pau continuava inerte, eu falhava, não conseguia pensar em outra coisa, nem me imaginar em outra situação, a realidade de seu corpo se impunha, como se a realidade de seu corpo fosse tão brutal, tão total que tornasse impossível qualquer tentativa de imaginação. Ele perguntou Então, você não está conseguindo, e para ganhar tempo respondi Cala a boca. Senti seu corpo estremecer sob meus dedos com essa frase, ele gostava.

Tentei de novo, me esfregava nele, em cima dele, desesperadamente, tentava imaginar outro corpo em vez do dele, imaginar outro corpo sob o meu corpo, ou melhor, sobre meu corpo, pois sabia que era essa configuração que costumava despertar meu desejo, me concentrei, mas o contato com sua pele seca e fria me fazia voltar à realidade, à sua presença. Ele suspirava para me mostrar sua impaciência. Eu disse de novo, Já mandei você calar a boca e não se mexer, mas sabia que não funcionaria tão bem uma segunda vez. Ele queria outra coisa. Me esfreguei nele com ainda mais força, mas sabia que tinha perdido, já tinha perdido desde o início, hoje percebo que tinha compreendido isso assim que entrei em seu quarto.

Pensei no dinheiro de que eu precisava, na vergonha no dia seguinte se tivesse que dizer para o dentista que não poderia pagar, meu olhar no dele e aquelas frases que ele devia saber de cor, Será que posso pagar da próxima vez, sinto muito, não trouxe a carteira, esqueci, ele sabendo que eu estava mentindo e eu sabendo que ele sabia, e a vergonha provocada por esse jogo de espelhos infinito — era simples assim, tão banal quanto isso, e era por esse motivo que eu estava na casa desse homem, nu, roçando nele.

Quando fazemos as coisas pela metade ganhamos apenas a metade do que merecemos. Na vida é preciso saber o que se quer

Ele continuava na mesma posição, imóvel, de quatro. Recuei um pouco, dei a volta na cama e cheguei na frente de seu rosto. Ele tinha os traços deformados, o rosto exausto de esperar, suplicante. Eu lhe disse Chupa, e ele pegou meu pau, que continuava mole dentro da sua boca. Fechei os olhos. Não sei como consegui, mas depois de uns vinte minutos em pé diante dele meu pau endureceu e eu gozei, tirei o pau da sua boca para encobrir seu rosto, baixei a cabeça e vi o líquido branco e espesso na sua testa, nas suas bochechas, nas suas pálpebras.
Minha respiração estremeceu.

Eu me vesti. Pensava: Está quase no fim. Quase no fim. Ele pegou uma toalha que estava na mesa de cabeceira e que provavelmente tinha deixado ali sabendo que eu viria, limpou o rosto e se dirigiu a uma cômoda. Tirou dali um maço de dinheiro e se virou para mim.
Me deu cem euros; não me mexi. Ele sabia exatamente o que eu esperava e por que não me mexia, mas fingia não entender. Ele brincava comigo, estava ciente de que eu entendia o que estava acontecendo, que sabia que ele estava brincando, mas que eu tinha medo demais para dizer alguma coisa. Finalmente ele disse Você fez as coisas só pela metade e por isso estou pagando só a metade. Você deveria ter me comido, e não fez isso. Uma puta que não fode não é uma puta. Você devia ficar feliz por eu te dar cem. Não disse isso num tom agressivo, mas sim como uma constatação, como alguém que lê uma regra administrativa ou os termos de um contrato. Eu o via, tinha aprendido a identificar o nível de riqueza de uma pessoa num só olhar, nunca me enganava, sabia que era rico e que cem euros a mais não mudariam nada para ele, que cem euros a menos não teriam nenhum impacto em sua vida. Meu coração batia forte no peito (não era meu coração que batia, mas todo meu corpo). Comecei a descrever a situação para esse homem na minha frente, não sabia nem o seu nome, mas disse tudo, a vergonha, o dentista. Ele disse que não era problema dele, Quando fazemos as coisas pela metade ganhamos apenas a metade do que merecemos. Na vida é preciso saber o que se quer. Você é novo, tem tempo para aprender.
Foi depois dessa frase que decidi deixar para lá. Havia o risco de que seus amigos na sala ao lado acabassem ficando preocupados e entrassem no quarto para ver se estava tudo bem, eu não queria que vissem meu rosto, Eles não podem ver seu rosto, Os outros não devem ver seu rosto.

Peguei o dinheiro, saí, atravessei Paris imersa na noite e voltei para casa. Do lado de fora as calçadas brilhavam por causa da chuva, refletiam a cidade, como uma segunda cidade projetada no chão. Eu caminhava. Não pensava que o detestava. Não pensava em nada.

Foi nesse momento que me perguntei se eu poderia um dia escrever uma cena como essa, uma cena tão distante da criança que fui

Quando passei pela porta do meu apartamento, sentei na beirada da cama e chorei. Mesmo chorando eu não pensava em nada. Eu não sabia mais meu nome. Não chorava pelo que tinha acabado de acontecer, que não era tão grave, era apenas um momento desagradável como algum que se pode viver em qualquer situação; ou melhor, o que acabara de acontecer me autorizava a chorar por todas as vezes na vida em que não tinha chorado, todas as vezes em que me segurara. Pode ser que naquela noite, naquele quarto, eu tenha deixado meus olhos chorarem vinte anos de lágrimas não choradas.
Fui até o chuveiro. Não tirei a roupa. Deixei a água morna correr e a senti escorrer sobre mim, da cabeça até os calcanhares. Joguei a cabeça para trás, estiquei o pescoço e abri a boca, como se fosse gritar, um belo e comprido grito, mas não gritei. A água encharcou minha roupa, minha camiseta branca foi ficando da cor da minha pele, minha calça ensopada de água estava mais escura e mais pesada.
Fiquei um bom tempo debaixo do chuveiro, vendo a água que escorria sobre mim. Quando saí já estava amanhecendo. Foi, me parece, nesse momento que me perguntei se eu poderia um dia escrever uma cena como essa, uma cena tão distante da criança que fui e de seu mundo, não uma cena trágica ou patética, mas acima de tudo radicalmente estranha a essa criança, e foi então que prometi a mim mesmo que faria isso um dia, contaria tudo o que me levara até essa cena e tudo o que aconteceu depois, como uma tentativa de voltar no tempo.

Produto

  • Mudar: Método
  • Édouard Louis (trad. Marília Scalzo)
  • Todavia
  • 240 páginas

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