Trecho de Livro: Friday Black, de Nana Adjei-Brenyah — Gama Revista

Trecho de livro

Friday Black

Livro de contos de Nana Kwame Adjei-Brenyah usa a ficção científica e o absurdo para abordar problemas sociais bem atuais, como racismo, violência e consumismo

Leonardo Neiva 03 de Fevereiro de 2023

No texto introdutório de “A Mão Esquerda da Escuridão”, um de seus romances mais populares, a escritora Ursula Le Guin (1929-2018) afiirma que a função da ficção científica não é prever o futuro, mas descrever o presente. A citação, que surge com frequência em discussões sobre o gênero, cai também como uma luva nos contos que compõem “Friday Black” (Fósforo, 2023), livro de estreia do norte-americano Nana Kwame Adjei-Brenyah, com tradução de Rogério Galindo.

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Em 12 histórias que imaginam um futuro distópico não tão distante assim, o escritor aborda problemas sociais como o racismo, o consumismo e o uso de armas. Partindo de situações à primeira vista absurdas, o autor vai aos poucos aproximando-as do cotidiano e de acontecimentos retratados nos noticiários. O conto que abre o livro, por exemplo, narra a absolvição de um homem que decapitou cinco crianças negras simplesmente por sentir que sua integridade física estava ameaçada. E espelha de forma incômoda casos como o de Tyre Nichols e George Floyd, apenas duas das últimas vítimas de violência policial e racial nos EUA.

Sem receio de se aprofundar na violência por vezes grotesca, numa caricatura da sociedade moderna, Adjei-Brenyah faz da barbárie humana um mecanismo de participação e realização de desejos obscuros. De uma discussão pós-morte entre vítima e algoz num atentado escolar à corrida de humanos zumbificados para aproveitar as melhores ofertas da Black Friday, o autor usa o absurdo para criar situações desesperadas e constrangedoras em que o leitor não pode contar nem com o alívio momentâneo de um final feliz.


Os cinco de Finkelstein

Fela, a menina sem cabeça, andou na direção de Emmanuel. A superfície irregular no alto do pescoço, vermelha de selvageria. Apesar do silêncio, dava para sentir que ela esperava que ele fizesse algo, qualquer coisa.

Nessa hora o telefone tocou e ele acordou.

Ele respirou fundo e ajustou a negritude de sua voz para um e meio numa escala de zero a dez. “Oi. Como vão as coisas por aí? Isso, isso, perguntei esses dias sobre a situação da minha seleção para a vaga. Bom, está bem então. Bom saber. Vou estar aí. Um dia espetacular pra você.” Emmanuel saiu da cama e escovou os dentes. A casa estava em silêncio. Seus pais já tinham saído para o trabalho.

Naquele dia, como todo dia, a primeira decisão que ele tomou foi sobre a própria negritude. Sua pele era de um marrom profundo e constante. Em público, quando as pessoas conseguiam de fato ver Emmanuel, era impossível reduzir sua negritude a algo perto de um e meio. Se usasse gravata, sapatos sociais, sorrisse constantemente, falasse com a voz que usava em ambientes fechados e ficasse com as mãos presas na lateral do corpo e calmas, ele conseguia baixar sua negritude para quatro.

Embora estivesse feliz por conseguir a entrevista, Emmanuel também se sentia culpado por estar feliz com alguma coisa. A maioria das pessoas que ele conhecia ainda estava de luto pelo veredito dos Cinco de Finkelstein: depois de vinte e oito minutos de deliberação, o júri absolveu George Wilson Dunn de todas as acusações. Ele foi indiciado por supostamente usar uma motosserra para decapitar cinco meninos e meninas negros diante da biblioteca de Finkelstein em Valley Ridge, na Carolina do Sul. O tribunal decidiu que, como as crianças estavam basicamente à toa, e não dentro da biblioteca lendo, como era de se esperar de cidadãos produtivos, era razoável que Dunn se sentisse ameaçado por aqueles cinco jovens negros e, portanto, ele estava exercendo seu direito quando protegeu a própria integridade física, os dvds emprestados da biblioteca e seus filhos ao ir até a caçamba de sua Ford F-150 e pegar sua motosserra Hawtech pro 18 polegadas 48 cc.

O tribunal decidiu que, como as crianças estavam basicamente à toa, e não dentro da biblioteca lendo (…), era razoável que Dunn se sentisse ameaçado por aqueles cinco jovens negros

O caso dominou os ouvidos e o coração do país e continuava sendo basicamente a única coisa de que as pessoas falavam. Finkelstein se tornou o centro do noticiário. De um lado do mundo das transmissões televisivas os âncoras choravam abertamente pelas mortes das crianças, que a seus olhos eram santas; do lado oposto havia personalidades como Brent Kogan, o apresentador ríspido e desagradável de Por que todo esse drama? que durante um debate na internet disse: “Claro, claro, eram crianças, mas, por outro lado, fodam-se os pretos”. A maior parte das emissoras ficava entre um extremo e outro.

No dia do veredito, parentes e amigos de Emmanuel de todas as raças e origens se reuniram e ligaram num canal que demonstrara compaixão pelas crianças, conhecidas popularmente como os Cinco de Finkelstein. Foram servidos pedaços de pizza e bebidas. Quando a decisão foi anunciada, Emmanuel sentiu algo estalar e se reduzir a pó em seu peito. Uma queimação. Sua mãe, conhecida como uma das pessoas mais animadas e alegres do bairro, arremessou um copo plástico cheio de Coca-Cola de um lado a outro da sala. Quando o copo caiu e o refrigerante espirrou, as pessoas olharam para a mãe de Emmanuel. Ver a sra. Gyan daquele jeito significava que era verdade: eles tinham perdido. O pai de Emmanuel se afastou do grupo secando as lágrimas dos olhos, e Emmanuel sentiu a opressão no seu peito se reduzir a um vácuo frio. No caminho para casa, o pai dele xingou. A mãe arrancou sons da buzina dando socos no volante. Emmanuel respirou e viu suas mãos aparecerem, depois desaparecerem, depois aparecerem, depois desaparecerem à medida que eles passavam pelos postes de luz. Deixou o nada que estava sentindo tomar conta dele em ondas geladas.

Mas agora que foi chamado para uma entrevista na Stitch’s, uma loja que se descreve como “inovadora com uma sensibilidade clássica” especializada em blusas vintage, Emmanuel tinha algo em que pensar além dos corpos daquelas crianças decapitadas, ficando cada vez mais molhados por um sangue espesso que pulsava, jorrava. Em vez disso, ele pensou no que devia vestir.

Num vago gesto de solidariedade, ele vestiu as calças cargo largas que tinha usado para acampar. Em seguida, subiu nos Space Jams de couro, com os cadarços que se cruzavam firmes e limpos sobre a lingueta preta. Depois, pegou um moletom com capuz há muito abandonado e mergulhou em seu túnel. Como ato final de solidariedade, Emmanuel colocou um boné parecido com aqueles que dois dos Cinco de Finkelstein usavam no dia em que foram mortos — um fato que a defesa de George Wilson Dunn ressaltou durante todo o julgamento.

Emmanuel começou a aprender o básico de sua negritude antes de aprender a fazer divisões com números maiores: sorrir quando estivesse zangado, sussurrar quando estivesse com vontade de gritar

Emmanuel saiu para o mundo exterior, sua negritude em bons 7,6. Ele se sentiu como Evel Knievel no topo de uma rampa. No shopping ele ia procurar algo para usar na entrevista, algo que o levasse novamente pelo menos para 4,2. Pôs a aba do boné para a frente e baixou para cobrir os olhos. Subiu uma ladeira na direção da Canfield Road, onde ia pegar um ônibus. Ouviu as pedrinhas arrastando debaixo da sola dos pés. Fazia muito tempo que a negritude dele não chegava nem perto de sete. “Quero você em segurança. Você tem que aprender como se mexer”, o pai disse quando ele era bem novinho. Emmanuel começou a aprender o básico de sua negritude antes de aprender a fazer divisões com números maiores: sorrir quando estivesse zangado, sussurrar quando estivesse com vontade de gritar. No ginásio, voltando de um passeio ao zoológico onde foi acusado de roubar um panda de pelúcia da loja de presentes, Emmanuel queimou sua última calça jeans baggy na entrada da garagem de casa. Ficou observando o jeans se crispar e virar cinzas sem nem piscar. Quando o pai saiu da casa, Emmanuel achou que ia levar uma bronca. Em vez disso, o pai ficou em silêncio do lado dele. “Essa é uma lição importante”, o pai disse. Os dois ficaram olhando até o fogo apagar sozinho.

O ponto de ônibus estava lotado. Ele sentiu os olhares virando na sua direção enquanto carteiras mudavam de lugar. Emmanuel pensou em George Wilson Dunn. Imaginou o sujeito de meia-idade parado ali diante dele, sorrindo, com uma motosserra rugindo nas mãos. Ele decidiu fazer algo perigoso: virar a aba do boné para trás para proteger a nuca do sol. Emmanuel sentiu sua negritude dar um salto e latejar rumo a oito. As pessoas ficaram quietas. Tentaram parecer superamistosas mas ao mesmo tempo distantes, como se ele fosse um tigre ou um elefante que elas estivessem observando debaixo de uma grande tenda. Uma trilha se abriu para Emmanuel em meio à multidão.

Não demorou e ele logo estava de pé perto do banco. Uma mulher com longos cabelos castanhos e um sujeito que estava com os óculos escuros em cima da aba do boné imediatamente se lembraram que precisavam estar em outro lugar. Uma mulher mais velha continuou sentada, e Emmanuel pegou o lugar que acabava de vagar ao lado dela. A mulher olhou de relance para Emmanuel enquanto ele sentava. Ela deu um leve sorriso. A aparência de desinteresse dela fez o coração dele cantar. Ele virou a aba do boné para a frente e sentiu sua negritude baixar para impressionantes 7,6. Um minuto depois, a mulher de cabelos castanhos voltou e sentou ao lado dele. Ela sorria como se alguém tivesse dito que, caso parasse com aquele sorriso frenético e de olhos arregalados, Emmanuel ia estourar os miolos dela.

O meu cliente, o sr. George Dunn, acreditou que estava em perigo. E sabem de uma coisa, se você acredita em algo, seja lá o que for, isso é o que mais importa. Neste país nós temos o direito de acreditar

“O fato é que George Wilson Dunn é um americano. Americanos têm o direito de se proteger”, o advogado disse com voz melodiosa, encantadora. “Vocês têm filhos? Alguém que vocês amem? A acusação tentou assustar vocês com palavras como ‘lei’ e ‘assassinato’ e ‘sociopata’.” O indicador e o dedo médio do advogado rasgavam o ar repetidamente para indicar aspas. “Estou aqui para dizer a vocês que este caso não tem a ver com nada disso. Este caso trata do direito que um homem americano tem de proteger a sua vida e a vida de sua linda bebezinha e de seu belo filho. Então eu pergunto: o que vocês amam mais, essa suposta lei ou seus filhos?”

“Objeção?”, diz a promotora.

“Pedido registrado. Indeferido”, diz a juíza, secando os cantinhos úmidos dos olhos. “Por favor continue, advogado.”

“Obrigado, meritíssima. Não sei vocês, mas eu amo meus filhos mais do que amo a lei. E amo meu país mais do que amo meus filhos. É disso que esse caso trata: do Amor, com A maiúsculo. E do nosso país. É isso que estou defendendo aqui hoje. O meu cliente, o sr. George Dunn, acreditou que estava em perigo. E sabem de uma coisa, se você acredita em algo, seja lá o que for, isso é o que mais importa. Neste país nós temos o direito de acreditar. Os Estados Unidos, nossa bela e soberana nação. Por favor, não matem isso hoje aqui.”

Produto

  • Friday Black
  • Nana Kwame Adjei-Brenyah
  • Fósforo
  • 224 páginas

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