Engenheiro Fantasma
Em 56 sonetos, o escritor Fabrício Corsaletti sonha uma nova vida para Bob Dylan, em que o cantor se exila nas ruas de Buenos Aires
Logo no prólogo de seu novo livro, o escritor paulista Fabrício Corsaletti revela um sonho inusitado. De passeio por Buenos Aires, se depara com uma família de classe média alta, liderada por um patriarca de quase 60 anos que é também o cantor e compositor Bob Dylan. Após uma série de encontros ao acaso, descobre que aquele em solo argentino é na verdade o Dylan real, que vive por ali enquanto seu duplo vagueia pelo mundo a receber Nobéis de Literatura.
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Na brincadeira, “Engenheiro Fantasma” (Companhia das Letras, 2022) nasce de uma súbita inspiração de Corsaletti, já bem desperto, em que reconstitui parte dos sonetos produzidos pelo Dylan do sonho, todos ambientados em seu período na Argentina. Ao longo dos 56 poemas, o autor narra os dias e noitadas fictícios do norte-americano por bares, bairros e cafés portenhos, pegando emprestado aqui e acolá um pouco da voz do cantor e poeta, mas sem nunca deixar de incluir a cada verso seu estilo único.
Autor de quase 20 livros, entre eles “Esquimó” (Companhia das Letras, 2010), volume vencedor do prêmio Bravo! de literatura, o livro de crônicas “Perambule” (Editora 34, 2018) e o infantil “Poemas com Macarrão” (Companhia das Letrinhas, 2018), Corsaletti cria — ou recria, dependendo do ponto de vista — uma jornada a um tempo delirante e comovente que desafia os limites da imaginação e de quebra ainda homenageia um dos maiores ícones da música e da escrita mundiais.
no Bar del Gordo nunca falta nada
cerveja escura, canapés de porco
a gente bebe até cair de borco
depois vira motivo de piada
hoje eu tenho um encontro com uma fada
seus braços são a corda em que me enforco
todo suco de uva dela emborco
acho melhor quando ela está suada
de salto, chega a dois metros de altura
seu nome é Guadalupe, como a santa
de santa não tem nada, eu também não
“Bob, cê sabe que o amor não tem cura”
ela me diz, e eu respondo “Giganta
não se preocupe com meu coração”
no Bar del Gordo nunca falta nada/
cerveja escura, canapés de porco/
a gente bebe até cair de borco/
depois vira motivo de piada
Tom Petty me ligou desesperado
quer saber o que houve, por que vim
parar em Buenos Aires, esse fim
de mundo, se já estava combinado
de percorrermos todos os estados
mais uma vez, nova turnê, enfim
eu disse “estou numa fase ruim
Tom, não me deixe mais angustiado”
desliguei e corri para um café
Los Angelitos, perto do Congresso
onde às vezes vou ler Ernesto Sabato
pedi cerveja feita em Santa Fe
e sanduíche de jamón y queso
no sol da rua vi passar um rato
Tom Petty me ligou desesperado/
quer saber o que houve, por que vim/
parar em Buenos Aires, esse fim/
de mundo
N é filha de um líder tupamaro
seu pai morreu quando ela era criança
“lutar pela verdade jamais cansa”
ela me diz, mão no cabelo claro
estamos dentro de um instante raro
num café que é agora e é já lembrança
que me enche de medo e de esperança
diante dela eu nunca me mascaro
ela quebra nos dedos um torrão
de açúcar e propõe “que que cê acha
de irmos de moto até Montevidéu?”
“ainda não comprei o meu caixão”
respondo, e ela sorri “cheiro de graxa
me excita mais do que flores e anel”
eu tenho ouvido Violeta Parra/
a casa inteira meio que transborda/
lá embaixo a água escorre na sarjeta
em Buenos Aires só existe um dia
a cada vez, depois será de novo
hoje, com sua perfeição de ovo
um ovo nu, sem dor nem alegria
deve ser parecido na Bahia
Pablo el Boludo disse “me renovo
ao ver à minha frente o que eu aprovo”
só reconheço o que não conhecia
faz meses que não toco essa guitarra
teias de aranha sobem pelas cordas
um gato deu sumiço na palheta
eu tenho ouvido Violeta Parra
a casa inteira meio que transborda
lá embaixo a água escorre na sarjeta
- Engenheiro Fantasma
- Fabrício Corsaletti
- Companhia das Letras
- 128 páginas
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