Em Águas Profundas
Esgotado no Brasil há décadas, o thriller de 1957 da norte-americana Patricia Highsmith, autora de ‘O Talentoso Ripley’, ganha nova edição nacional e adaptação para o cinema
POR QUE LER?
Um casal que continua junto para manter as aparências, o assassinato de um dos amantes da esposa, uma reviravolta nas atitudes do marido. Em linhas gerais, essa é a receita de “Em Águas Profundas”, da norte-americana Patricia Highsmith (1921-1995), uma das grandes mestres do romance policial. Escrito em 1957, o thriller estava há décadas esgotado no Brasil e ganha agora nova edição pela Intrínseca — que envia o livro de brinde para os assinantes do clube de leitura da editora em dezembro. A narrativa também chega às telas no ano que vem, adaptada pelo diretor britânico Adrian Lyne, de “Atração Fatal” (1987), com Ana de Armas e Ben Affleck no papel dos protagonistas.
Autora de mais de 20 livros e vencedora de diversos prêmios importantes, entre eles o Edgar Allan Poe, Highsmith construiu tramas icônicas baseadas no conceito do “herói-criminoso”. Em obras como “Pacto Sinistro”, de 1950 (inspiração para o longa de Alfred Hitchcock, lançado no ano seguinte), e o clássico “O Talentoso Ripley”, de 1955 (que virou filme em 1959 e em 2000), ela explora essas figuras, desvendando as mentes de sociopatas mais do que arquitetando tramas complexas à la Agatha Christie.
As histórias de crimes banais de Highsmith são pano de fundo para o desenvolvimento de ideias perversas em figuras aparentemente pacíficas. “Desde Dostoievski, não se viam personagens tão assolados pela dúvida e com tal senso de dualidade psicológica”, é a avaliação de sua biógrafa, a dramaturga norte-americana Joan Schenkar. Não é diferente com Vic, o marido de Melinda e herói-criminoso de “Em Águas Profundas”.
No dia seguinte, Melinda ainda estava dormindo quando Vic chegou em casa para o almoço. Sabia que ela tinha ficado acordada até muito tarde na noite anterior porque vira a luz do quarto dela nos fundos do jardim quando apagou a luz do próprio quarto às duas e meia da manhã. Quando voltou para casa às sete da noite, ela ainda não tinha se recuperado da ressaca, embora dissesse que havia dormido até às três da tarde. Vic tinha duas coisas para lhe contar, uma agradável e outra talvez não tão agradável, então contou a primeira antes do jantar, quando a ressaca estava no auge, na esperança de que Melinda se sentisse melhor.
— Não vou contar o episódio do detetive a Horace, Phil ou quem quer que seja. Por isso, se Wilson e Ralph ficarem de bico calado, e eles têm toda a razão para isso, ninguém vai ficar sabendo. Alguém mais sabe? — perguntou, preocupado, como se estivesse do lado dela.
— Não — murmurou, completamente vulnerável na sua hora de sofrimento.
— Achei que você podia se sentir melhor ao saber disso — comentou Vic.
— Obrigada — disse ela com indiferença.
Ele deu de ombros involuntariamente. Mas Melinda não estava olhando para ele.
— Hoje recebi uma carta de Brian Ryder. Ele vai dar um pulo até aqui na terceira semana de novembro. Disse a ele que poderia ficar em nossa casa. Serão duas noites, três no máximo. Vamos ter muito trabalho na gráfica, então ele não ficará muito tempo aqui.
Depois de um minuto sem que ela desse qualquer sinal de que o tinha escutado, como se as palavras houvessem penetrado nos ouvidos de uma pessoa adormecida, ele acrescentou, sentindo-se um tanto estranho, como se estivesse falando consigo mesmo:
— Pelas cartas, tenho certeza de que é um jovem muito civilizado. Tem apenas vinte e quatro anos.
— Será que poderia preparar outro drinque para mim? — pediu ela, estendendo o copo vazio para ele, seu olhar ainda fitando o chão.
Ela comeu bem no jantar. Sempre conseguia se alimentar mesmo de ressaca, e uma de suas teorias era a de que quanto mais comer de ressaca, melhor se sentirá. “Ferro na ressaca!” era o seu remédio. Depois do jantar, já se sentia bem o bastante para dar uma olhada no jornal da tarde. Vic colocou Trixie na cama, voltou e sentou na poltrona.
— Melinda, eu queria te perguntar uma coisa — começou.
— O que é? — Ela olhou para Vic por cima do jornal.
— Você se divorciaria de mim? Se eu lhe desse uma boa pensão para viver bem.
Ela o encarou por uns cinco segundos.
— Não — respondeu com firmeza e certa raiva.
— Mas onde é que vamos parar? — questionou Vic, abrindo as mãos e sentindo-se de repente a encarnação da lógica — Você me odeia, me trata como inimigo. E contratou um detetive para vir atrás de mim…
— Porque você matou o Charley. Isso é tão certo quanto você estar sentado aí.
— Querida, eu não matei Charley. Por que você não volta à razão?
— Todo mundo sabe que você matou!
— Quem?
— Don Wilson sabe, Harold acha o mesmo. E Ralph sabe.
— Por que eles não provam? — questionou com delicadeza.
— Dê um tempo a eles. Vão provar. Ou eu vou — argumentou ela, inclinando-se no sofá e pegando de forma abrupta seu maço de cigarros na mesa lateral.
— Posso saber como? Existe uma coisa que é incriminar um homem, naturalmente — disse, um pouco pensativo —, mas acho que agora já é tarde. Ouça, por que Don Wilson ou Carpenter não me submetem a um detector de mentiras? Não que eles tenham qualquer poder legal de fazer isso.
— Harold acha que você nem sequer reagiria a um detector. Ele acha você maluco demais.
— Maluco a ponto de deixar você livre?
— Não banque o engraçadinho, Vic.
— Desculpe, não estava tentando bancar o engraçadinho. Voltando ao que perguntei antes, eu lhe dou tudo, menos Trixie, se quiser o divórcio. Pense no que isso representaria. Você teria dinheiro para fazer o que quiser, para encontrar com quem quiser. Estaria livre de responsabilidades, livre da responsabilidade por uma filha e por um marido. Pense em como se divertiria.
Ela mordeu os lábios inferiores como se aquelas palavras a torturassem… talvez com a tentação.
— Ainda não acabei com você. Quero destruir você, esmagar você.
Ele abriu as mãos com delicadeza.
— Isso já foi feito. Tem sempre o arsênico na sopa. Mas minhas papilas gustativas são muito sensíveis. E ainda tem…
— Não quis dizer matar você. Você é tão… maluco, não acredito que se incomodasse muito com isso. Eu quero acabar com o seu ego desprezível!
— E já não fez isso? Querida, o que mais poderia fazer além do que já tem feito? Acha que estou vivendo do quê?
— Ego.
Uma risada aflorou nele, mas logo voltou a ficar sério.
— Não, não há nenhum ego. Apenas os pedaços de mim, que ainda consigo juntar e manter juntos… pela força de vontade. Força de vontade, se quer saber, é isso que me sustenta, não o ego. Como eu ainda poderia ter algum ego? — resumiu desesperadamente, desfrutando muitíssimo a discussão e também apreciando o som da própria voz, que parecia objetiva, como num gravador de fita tocando para ele o que havia acabado de gravar. Também estava ciente do tom tespiense que assumira, fazendo de suas palavras uma combinação de paixão destilada e pura canastrice. Prosseguiu em tons ricos e amplos, com um gesto franco da mão: — Você sabe que eu amo você, sabe que eu lhe daria tudo o que quisesse ou que eu pudesse lhe dar. — Parou por um instante, achando que já tinha dado a ela a outra metade da cama no seu quarto, a sua metade, mas não podia dizer aquilo por medo de cair na risada ou de fazê-la rir. — É minha última oferta. Não sei mais o que posso fazer.
— Já disse a você — retrucou Melinda devagar. — Ainda não acabei com você. Por que não se divorcia de mim? Seria muito mais seguro para você. Com certeza acha que tem todos os motivos a seu favor, não? — Seu tom era sarcástico. Como se os motivos fossem ilusórios ou ele seria um canalha se os usasse.
— Nunca disse que queria me divorciar de você, disse? Eu me sentiria como se estivesse omitindo a minha responsabilidade se fizesse isso. Além do mais, não é apropriado que um homem se divorcie da mulher. Ela é quem deve se divorciar dele. Mas o que estou querendo dizer… toda essa discussão…
— Você ainda não ouviu o final.
— Foi o que quis dizer. Precisa falar comigo nesse tom beligerante? — O tom de Vic ainda era suave.
— Você está certo. Tenho que guardá-lo para o ataque final — disse ela, ainda beligerante.
Vic suspirou.
— Bem, vejo que o status quo ainda é o status quo ante. Quando vai convidar Ralph e Wilson para nossa casa? Que venham, posso encará-los.
Ela o encarou, seus olhos castanho-esverdeados tão frios e fixos como os de um sapo.
— Não tem mais nada a dizer? — perguntou Vic.
— Já disse.
— Então acho que vou me recolher. — Ele se levantou e sorriu para ela. — Boa noite. Bons sonhos. — Pegou o cachimbo da mesinha ao lado da poltrona e foi para o outro mundo da garagem e seu quarto.
- Em Águas Profundas
- Patricia Highsmith
- Intrínseca
- 304 páginas
Caso você compre algum livro usando links dentro de conteúdos da Gama, é provável que recebamos uma comissão. Isso ajuda a financiar nosso jornalismo.