Do Vinil ao Streaming
O jornalista e músico Daniel Setti viaja por 60 anos de música em livro que aborda discos marcantes, dos Beatles a Lana Del Rey
Embora tenha sido lançado lá atrás, em 1948, pela Columbia Records, o long play, popular LP, só foi decolar mesmo como formato na década de 1960. Foi a época em que explodiram bandas como os Beatles e os Rolling Stones. E discos a exemplo do “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” (1967) ou “The Freewheelin’ Bob Dylan” (1963), além de vender como água, ajudaram a firmar o álbum como produto máximo da indústria musical, o mais completo resultado que uma banda ou músico poderiam entregar ao seu público de fãs.
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É começando por essa história primordial para a arte que o jornalista e músico Daniel Setti dá o pontapé inicial em seu “Do Vinil ao Streaming: 60 anos em 60 discos” (Autêntica, 2023), uma odisseia que explora as profundas transformações pelas quais passou o mercado da música da década de 1960 até os dias de hoje. “A experiência da audição disso que convencionamos chamar de álbum, ou seja, uma coleção de canções pensadas para se escutar como um todo e em determinada ordem, é comparável à de se ler um livro ou ver um filme”, diz o autor no texto de apresentação.
Ao longo dos anos, foram muitas as inovações que ameaçaram acabar com a hegemonia do álbum musical, desde os torrents, que acostumaram uma geração de jovens à música como um produto gratuito, até os mais recentes streamings, que, com uma lógica comercial diferenciada, vêm permitindo que a indústria retome na medida do possível as rédeas do mercado. Porém, nenhuma dessas novidades, que geraram mudanças profundas na forma como nos conectamos com a música, foi capaz de causar um único arranhão à posição do álbum nessa hierarquia. “O álbum permanece como uma ideia, uma ferramenta, um canal de comunicação que sela um compromisso duradouro entre artista e público”, resume Setti na obra.
Anos 2000: a revolução digital
Sim, os anos 2000 foram a época de mais um resgate roqueiro empolgante (The Strokes, The White Stripes), da aparição de uma sublime e rebelde diva do soul retrô chamada Amy Winehouse e do auge de bandas geniais, como Radiohead e OutKast, que romperam as barreiras de seus respectivos gêneros de origem para dar ao mundo verdadeiras obras-primas na forma de álbuns. Mas não dá para ignorar a reviravolta tecnológica que serviu de pano de fundo, ou até mesmo de protagonista, para o desempenho dessas figuras iluminadas.
Em seu brilhante livro Cowboys and Indies: The Epic History of the Record Industry, de 2014, o escritor anglo-irlandês Gareth Murphy defende a tese de que a popularização do rádio, nos anos 1920, foi um golpe proporcionalmente maior à indústria fonográfica do que o boom dos programas de compartilhamento ilegal do final do milênio.
OK, interessante. Mas será difícil convencer um executivo de gravadora do século 21 disso. Como diz Jac Holzman, folclórico fundador da Elektra Records, em outro livro fundamental sobre o assunto, Como a música ficou grátis (2015), do jornalista estadunidense Stephen Witt, “A tecnologia mudou mais o negócio da música do que qualquer outro meio de entretenimento”.
Ele está certo. O que os adventos do MP3 e a internet fizeram com a música a partir da aparição do Napster em 1999 não foi menos do que uma hecatombe estrutural. A pirataria física, de camelô, criada anos antes, parecia brincadeira de criança perto do que estava acontecendo.
O Napster acabou em julho de 2001, num acordo para a distribuição de arquivos de forma paga. Os novos termos podiam ser lidos tanto como uma amostra da movimentação tardia das gravadoras em frear o prejuízo quanto como uma tentativa de se apropriar da nova forma de se comercializar música. Mas, ao longo dos anos seguintes, outros programas semelhantes pipocaram em descontrole e em versões aprimoradas, obrigando o status quo fonográfico a dar uma volta de 360 graus no seu modus operandi e jogar aquele jogo.
Toda uma geração de consumidores de música achava agora que não tinha mais que pagar por ela
“Você não precisava mais de estúdio profissional, fábrica de prensagem e rede de distribuição: o estúdio era o Pro Tools, a fábrica era um codificador MP3 e a rede de distribuição era o rastreador de torrents”, comenta Witt em seu livro.
Aturdidos, muitos artistas tiveram que aprender na marra essa nova ordem, acostumando-se a lidar com a existência virtual de parte do seu trabalho e agradecendo pelos raros casos em que suas obras inacabadas não “vazavam” antes do tempo. Toda uma geração de consumidores de música achava agora que não tinha mais que pagar por ela. E os próprios músicos passaram a questionar os esquemas de lançamento tradicionais. Alguns até se beneficiaram bastante da novidade, já que os “vazamentos” acabavam ajudando a promover os lançamentos subsequentes (Kid A, do Radiohead, foi um exemplo clássico).
Steve Jobs, um outsider do mundo fonográfico, foi quem melhor soube capitalizar com a situação indefinida e apontar o caminho à indústria, organizando a venda de música digital legalmente através do iTunes e lançando um aparelho definitivo para executar o novo formato: o iPod. Entre 2003 e 2011, a Apple soltou trezentos milhões de iPods no mundo real e dez bilhões de MP3s no virtual.
Mas o negócio da música encolhia para as gravadoras e afetava diretamente os artistas, porque o hábito de fazer downloads não pagos se disseminava livremente. Os formatos físicos minguavam: em 2007, a venda de CDs caiu pela metade se comparada ao seu auge, no ainda recente ano de 2000. A pirataria estimulou uma intensa corrida tecnológica.
Com tanta facilidade de acesso pago ou não a faixas, o formato álbum parecia estar em xeque — só que não. No submundo digital das deep webs, o produto em torno do qual diferentes grupos de piratas rivalizavam para ver quem conseguia vazar antes eram eles, os discos. E os grandes exemplares do gênero, felizmente, continuaram saindo aos montes.
Com tanta facilidade de acesso pago ou não a faixas, o formato álbum parecia estar em xeque — só que não
The Strokes
Is This It (2001)
Não importa que os Strokes já não importem mais tanto assim. Eu sempre agradecerei a esses garotos brancos nova-iorquinos bem-nascidos por terem gravado Is This It. O disco de 2001 me trouxe de volta ao rock, gênero que eu jamais deveria ter abandonado.
Convertido à seita pop-roqueira ainda na infância, eu desvirtuaria por estranhos caminhos no meio da adolescência, quando a fácil impressionabilidade dos jovens músicos me fez presa fácil da armadilha do jazz fusion e do progressivo. Antes da virada do milênio, esse “desvio de rota” felizmente já seria corrigido, levando-me a redomas mais confiáveis como o funk, o soul, o drum and bass, o jazz dos caras certos, o hip-hop e, claro, a música brasileira. Mas quando a maioridade chegou, rock meeesmo, tirando um Morphine aqui ou um Jimi Hendrix ali, não tinha lá muito espaço no meu case de CDs (!). Nem no OK Computer, do Radiohead, eu prestei a devida atenção à época de seu lançamento, em 1997.
Conto essa vivência pessoal porque sei que possivelmente reverberará as de muitas outras pessoas. Tenho um monte de amigos — músicos ou não, alguns nem sequer roqueiros — que mergulharam de cabeça nas onze canções perfeitas de Is This It. Não resistiram, como não resistiriam Noel Gallagher, Dr. Dre e outros famosos que se tornaram fãs, à sua energia quase que fisicamente palpável e sua complexa simplicidade.
Seguindo parte do ritual de preparação deste livro, durante o qual me dediquei alguns dias a audições incessantes, obsessivas, da bolacha analisada antes de sentar para escrever (o melhor cenário é sempre uma semana de ininterrupta escuta), com esse álbum ocorreu um fenômeno inédito: seu repertório entrou em minha cabeça quando eu nem sequer ainda havia dado o primeiro play. Ou seja, não tive problemas em mentalizar todas as faixas, lembrando de todos os arranjos e melodias e revivendo o efeito que me causam, sem precisar ouvi-las novamente. Depois, claro, botei Is This It para tocar.
O salve-se-quem-puder da nova ordem outorgava a poucos a sorte de se tornar um ‘fenômeno da internet’. Os Strokes foram um dos primeiros deles
Cada década com o seu Nevermind
Eu sei, não é assim uma exceção. A minha anedota redentora relacionada ao trabalho de estreia dos Strokes é uma interpretação, afinal, do que rolou com meio que todo o mundo pop. De certa forma, Is This It é o Nevermind dos anos 2000. E, mais do que uma coincidência, o fato de os dois terem sido lançados nos primeiros anos de suas respectivas décadas é sintomático.
Por um lado, a ruptura proporcionada pelo Nirvana em 1991 era mais necessária, porque no final dos anos 1980 a situação do rock no mainstream realmente se encontrava em um ponto crítico, com hard rock “farofa” e poperô dominando as paradas. Por outro, no crepúsculo dos 1990, com boy bands, nu-metaleiros e Britneys dando as cartas, um R&B cada vez mais tedioso e a eletrônica como uma das únicas válvulas de escape de renovação, o rock também precisava de uma injeção de adrenalina para não fazer feio no boom do milênio.
Um paralelo deve ser traçado, diga-se, guardando as devidas proporções e considerando os contextos dos surgimentos dos dois discos. Em 1991, a indústria fonográfica estava próxima do seu auge financeiro, e até azarões como Kurt Cobain poderiam se tornar uma febre de vendas, alcançando o primeiro milhão de unidades vendidas nos Estados Unidos dois meses após lançarem seus discos. Já em 2001, no meio da revolução engatilhada pelo Napster, o salve-se-quem-puder da nova ordem outorgava a poucos a sorte de se tornar um “fenômeno da internet”.
Os Strokes foram um dos primeiros deles. A trupe se beneficiou do vazamento das faixas de seu trabalho de estreia, gerando um burburinho promocional descomunal ao longo dos meses anteriores ao seu lançamento. Entretanto, por causa das mudanças radicais trazidas pelo formato MP3, o álbum demoraria uma década até superar um milhão de cópias vendidas, em fevereiro de 2011. Eles não tiraram o Michael Jackson do topo das paradas, como fez o Nirvana, tampouco seu disco figura entre os trinta mais vendidos da história, como o Nevermind. Os tempos já eram outros.
- Do Vinil ao Streaming
- Daniel Setti
- Autêntica
- 512 páginas
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