Canções de atormentar
O amor entre mulheres, viagens e acontecimentos cotidianos, o Brasil de hoje e as memórias da infância estão no novo e aguardado livro da poeta gaúcha Angélica Freitas
POR QUE LER?
Já se vão oito anos da publicação de “Um Útero é do Tamanho de um Punho” (Cosac Naify, 2012 e Companhia das Letras, 2017), coletânea de poemas que celebrou a gaúcha Angélica Freitas como um dos principais nomes da literatura brasileira contemporânea. Com o estrondoso título, que seguiu a estreia com “Rilke Shake” (7Letras e Cosac Naify, 2007), ela consagrou sua linguagem ácida e bem humorada: ao manipular com sagacidade as imagens socialmente construídas do feminino, criou uma obra clássica para debater as questões de gênero no Brasil. Ampliada para outros temas, essa lírica feroz — porque irônica e inteligente — está de volta em “Canções de Atormentar”, recém-lançado pela Companhia das Letras.
No novo livro, cujo título remete a uma performance apresentada pela poeta em 2017, memórias da infância no Rio Grande do Sul convivem com reflexões cansadas sobre o Brasil de hoje. Nesse ínterim, o amor e o sexo entre mulheres, o diálogo com outros artistas —Ana Cristina César, Claudia Andujar, Iberê Camargo —, um breve tratado em inglês sobre o mate, acontecimentos cotidianos e viagens recheiam as páginas. A leitura é um mergulho íntimo, em que reconhecemos no universo particular do eu lírico um pouco de nós mesmas, brasileiras do século 21.
porto alegre, 2016
quando você viu na TV
aquelas pessoas em fila na chuva
à noite numa estrada
na fronteira de um país que não as deseja
e quando você viu as bombas
caírem sobre as cidades distantes
com aquelas casas e ruas
tão sujas e tão diferentes
e quando você viu a polícia
na praça do país estrangeiro
partir para cima dos manifestantes
com bombas de gás lacrimogêneo
não pensou duas vezes
nem trocou o canal
e foi pegar comida
na geladeira
não reparou o que vinha
que era só uma questão de tempo
não interpretou como sinal a notícia
não precisou estocar mantimentos
agora a colher cai da boca
e o barulho de bomba é ali fora
e a polícia vai para cima dos teus afetos
munida de espadas, sobre cavalos
hora mágica
a esta altura da manhã
em que o parque é povoado
por velhos e bebês de colo
o relógio digital do poste
nunca informa o horário certo
a sônia
a partir de uma série de fotos de claudia andujar
nada de errado
esses peitos
esses braços
se alguém quiser saber
barriga, costelas, umbigo
quisemos
tudo
*
querer as pernas
de outra mulher
para depois do amor
ser quadrúpede
alguns dirão
era só
o que nos faltava
*
o que estarás
pensando, azul
de olhos fechados
o que acontece
dentro dessa cabeça
por favor me diz
que pensavas
em coisas banais
(bananas, arraias
coqueiros, praias)
menos em dinheiro
*
diante de ti
reclinada assim
nua
um homem saberia
exatamente o que fazer
e por isso mesmo
erraria
eles erraram
*
amada
vacinada
*
tomaste um líquido
que te deixou assim
acesa quando tudo
se apaga
esta manhã
estiveste na praia?
estás mais loira
do que a lua
*
me deixa por um momento
pensar que esses cabelos
são nuvens
e que deixaste de pensar
porque estás
nas nuvens
*
uma boca se oferece
quantas vezes?
mais uma vez, uma última vez
e desta vez, a outra mulher
*
quantas vezes pode
uma mulher deixar
a casa
e o trabalho virar corpo
e o corpo virar casa
e entender que volta
não existe
*
sônia, escutas?
de olhos fechados
sintonizas
a rádio tosca
transmitindo
entre ouvidos
por que foste
querer isto?
onde estavas
com a cabeça?
*
alguém um dia
te disse
tu és tão bonita
ou tu te olhaste
no espelho
e pensaste
sou tão bonita
que triste ser bonita
ser bonita o suficiente
ser bonita
- Canções de Atormentar
- Angélica Freitas
- Companhia das Letras
- 112 páginas
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