Trecho de Livro: Autocuidado de Verdade, de Pooja Lakshmin — Gama Revista

Trecho de livro

Autocuidado de Verdade

Em livro, psiquiatra Pooja Lakshmin critica a “tirania do autocuidado” e aponta caminhos saudáveis para além da ioga e do banho de espuma

Leonardo Neiva 08 de Setembro de 2023

Após dedicar milhares de horas de trabalho a atender mulheres que sofriam de esgotamento profissional, depressão e ansiedade, a psiquiatra estadunidense Pooja Lakshmin achou que era hora de abordar o assunto da moda: o autocuidado feminino. No entanto, quem se sentir tentado a adquirir o livro “Autocuidado de Verdade” (Fontanar, 2023) não vai encontrar em suas páginas dicas tais como tomar um banho de espuma relaxante ou praticar ioga diariamente, muito menos listas de sugestões instagramáveis, com produtos e serviços que vêm impulsionando os trilhões de dólares da indústria do bem-estar no mundo todo.

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Pelo contrário, além de apontar os caminhos para realmente cuidar da própria saúde física e mental em meio a um cotidiano cada vez mais estressante e exigente, o volume também critica duramente como marcas e influenciadores têm vendido soluções que acabam colocando ainda mais pressão sobre muitas mulheres já desgastadas. “O autocuidado de verdade, como verá, não é algo que pode ser encontrado em um único lugar, como em um spa refinado ou em um app de registro de atividades: é um processo interno que envolve tomar decisões difíceis que valerão a pena no longo prazo”, aponta já no capítulo introdutório.

E Lakshmin tem propriedade para falar do assunto. Aos 20 e tantos anos, ela abandonou a prática médica para adentrar uma obscura comunidade voltada para o bem-estar sexual feminino e meditação orgástica. Só depois de quase dois anos a autora percebeu as inconsistências no grupo e abandonou o movimento — que mais tarde acabou virando até caso de polícia. “Acabei aprendendo da pior maneira que o autocuidado é um trabalho interno”, explica a psiquiatra. E é esse conhecimento que adquiriu na pele, seja na clínica onde atende até hoje ou por experiência de vida, que Lakshmin apresenta de forma clara, direta e envolvente na obra, com tradução de Lígia Azevedo. Uma oportunidade para abrir os olhos ao que de fato significa essa palavra repetida à exaustão nas redes sociais.


Calorias vazias
O falso autocuidado não nos salvou

Minha paciente Erin, uma mulher de 38 anos com três filhos em idade escolar, queria arrancar os cabelos sempre que ouvia falar em “autocuidado”. Na maior parte dos dias, ela acordava antes das cinco da manhã para responder a e-mails, arrumar as crianças para a escola e depois correr para o escritório, onde cumpria um expediente de dez horas. À noite, Erin pegava as crianças na escola, depois preparava o jantar, ajudava-as com a lição de casa e cumpria toda a rotina da hora do sono. Por volta das nove e meia, ela abria o laptop e trabalhava mais duas horas.

“Agora me diga, onde vou encontrar tempo para o autocuidado em meio a esse caos?”, ela se lamentou comigo. “Não preciso de uma massagem de duzentos dólares, por melhor que seja. Preciso de mais cinco horas de sono à noite.”

Sempre que Erin encontrava alguns minutos para fazer algo por si mesma, os conselhos que recebia pareciam bastante condescendentes: “aprenda a meditar” ou “faça uma lista de tudo pelo que se sente agradecida”. Em vez de lhe dar algum alívio, tais recomendações só faziam com que se sentisse mal. “Se todo mundo parece se sentir melhor com um banho de espuma e uma taça de vinho, por que não consigo fazer isso funcionar para mim, qual é o meu problema?”

Hina, uma paciente de 29 anos, estava com dificuldade de atingir o almejado equilíbrio entre trabalho e vida pessoal. Em sua busca, ela se viu mergulhando de cabeça nas estratégias de otimização e produtividade. Era sempre a primeira em seu grupo de amigas a pedir comida de um restaurante novo e tinha a sorte de poder terceirizar tarefas domésticas de vez em quando. Seu foco na produtividade teoricamente estava a serviço de encontrar tempo para o autocuidado; no entanto, Hina nunca parecia capaz de dedicar a si mesma todo o tempo economizado. Quando conseguia uma hora extra, ficava irritada com a louça para lavar na pia e a culpa a acometia por não ter ficado mais no escritório.

Essas histórias são comuns na minha prática clínica. Vejo mulheres de todas as origens e todas as idades, solteiras ou com companheiro ou companheira, com ou sem filhos. Algumas delas lidam com depressão ou ansiedade, mas muitas tentam simplesmente encontrar uma maneira de cuidar de si próprias em meio a uma vida ocupada e agitada demais — isso ainda antes que a pandemia elevasse nossos níveis de estresse e ansiedade a proporções épicas. O que todas essas mulheres têm em comum é evidente: elas enfrentam dificuldades, e o que fazem no momento para encontrar alívio não está funcionando.

Não preciso de uma massagem de duzentos dólares, por melhor que seja. Preciso de mais cinco horas de sono à noite

As falsas promessas do falso autocuidado

Nos últimos anos, notei algo curioso. Além de falhar em oferecer consolo, a obsessão cultural com o autocuidado faz as mulheres se sentirem mais culpadas e pressionadas. No consultório, sempre ouço comentários do tipo: “Estou esgotada, simplesmente não aguento mais, e ainda sinto que é minha culpa, porque eu deveria estar cuidando de mim mesma”. O autocuidado acaba sendo um fardo, só um item a mais na lista de coisas pelas quais as mulheres se sentem culpadas por não fazer direito. Chamo isso de “tirania do autocuidado”.

Minhas pacientes se sentem derrotadas e confusas, assim como eu. Além do mais, muitas de nós, com razão, consideram essas estratégias um insulto e se ressentem delas, ou porque simplesmente não têm tempo de colocá-las em prática, ou porque, quando as colocam, as estratégias não entregam o alívio prometido, ou ainda porque, quando entregam, o alívio não dura muito. É ridículo que um banho de espuma caríssimo seja a solução que tentam nos vender para as exigências impossíveis que recaem sobre a mulher do século XXI. Nossa cultura sempre impôs o bem-estar ao indivíduo — porque assim ele pode ser comprado, medido e considerado um sucesso pessoal —, em vez de investir em sistemas sociais saudáveis.

Conheço pessoalmente o poder de atração dessas supostas soluções — compartilhei na nota no início do livro minha imersão profunda em um culto do bem-estar. No entanto, antes mesmo dessa decisão dramática, aos vinte e poucos anos, elegi a ioga como solução para minha vida de estudante de medicina esgotada. A princípio, ajudou — minha aula de ioga semanal era uma pausa muito necessária à memorização do ciclo de Krebs, e passei a me sentir melhor no meu corpo. Porém, seguindo um padrão que observei em diversas pacientes, eu reproduzia na prática de ioga o mesmo perfeccionismo da faculdade de medicina. Quando não consegui cumprir a rígida programação que me impus, me achei um fracasso na mesma hora.

Também houve uma vez que assinei a revista Real Simple, convencida de que, se dominasse meu guarda roupa exagerado, chegaria a uma sensação de satisfação interna. (Fico um pouco constrangida ao admitir que ainda tenho uma pilha dessas revistas juntando pó no fundo do armário.)

Os dados confirmam que o bem-estar mercantilizado não funciona. As mulheres americanas não só relatam níveis mais altos de estresse que os homens como também sentem que não estão fazendo um bom trabalho administrando esse estresse. Um estudo canadense de 2018 com mais de 2 mil trabalhadores descobriu que as mulheres relatavam níveis mais altos de esgotamento do que os homens. Uma revisão sistemática da Universidade de Cambridge conduzida por toda a Europa e a América do Norte descobriu que mulheres têm duas vezes mais chance que os homens de sofrer de ansiedade, e que há uma discrepância similar quando se trata de depressão. Uma em cinco mulheres de 40 a 59 anos e quase uma em cada quatro mulheres acima de 60 receberam prescrição de antidepressivos nos Estados Unidos, de acordo com dados de 2015 a 2018. Com mulheres entre 18 e 39 anos, o número ficava próximo de uma em dez.

O autocuidado acaba sendo um fardo, só um item a mais na lista de coisas pelas quais as mulheres se sentem culpadas por não fazer direito

Curiosamente, quem faz uma busca no Instagram encontra mais de 60 milhões de posts com a hashtag #SelfCare [autocuidado]. Ela é usada para tudo, desde ioga na praia até mães triunfantes e receitas de vitaminas “curativas”. Se usarmos as redes sociais como guia, autocuidado parece ser qualquer coisa que sai bem na foto.

Como mencionei antes, esse é o falso autocuidado — comportamentos e práticas de bem-estar que costumam ser vendidos como remédios para os problemas das mulheres. Em muitos casos, o falso autocuidado é só um barato passageiro, que serve de válvula de escape da vida cotidiana e nos distancia mais um pouco de nosso verdadeiro eu. O falso autocuidado também é um grande negócio. Um relatório do Global Wellness Institute identificou que a indústria mundial do bem-estar, voltada principalmente para as mulheres, valia mais de 4,5 trilhões de dólares em 2017. Embora produtos como uma garrafa de água com um cristal dentro ou sprays de travesseiro para estimular o nervo vago possam provocar uma sensação de calma temporária (ignorando o fato de que são caros demais para a maioria das mulheres americanas), eles não fazem nada para mudar os sistemas sociais que nos fazem ansiar por alívio, e assim o ciclo do consumismo segue ininterrupto. O falso autocuidado é falso porque, quando sozinho, sem o trabalho crítico interno abordado neste livro, não faz nada para mudar o quadro mais amplo.

Um comentário sobre influenciadores

Se você é como eu, às vezes se pega olhando o Instagram ou outras redes sociais e se perguntando como é que as outras mulheres conseguem tempo para ter uma casa perfeita, filhos maravilhosos e cabelo e maquiagem impecáveis. É muito fácil ver perfis de influenciadores e pensar: Nossa, olha só o que essas pessoas fazem, e parece tão fácil. Por que pra mim é tão difícil? Quando influenciadores falam de um produto de bem-estar, é compreensível que você fique curiosa e pense: Talvez seja a solução perfeita para todos os meus problemas!

Quando você se pegar pensando assim, faça uma pausa. Como os influenciadores estão no celular e as pessoas carregam o celular o tempo todo, é fácil se sentir artificialmente próxima deles. Mas lembre que as redes sociais são um recorte. Quando você vê um influenciador divulgando um produto de bem-estar, verifique se ele está sendo pago para promovê-lo (se é uma publicação patrocinada, por exemplo). Influenciadores têm a oportunidade de desempenhar um papel na quebra da dinâmica do bem-estar mercantilizado, mas, embora alguns defendam uma mudança política e social, nem todos são críticos à indústria do bem-estar. Preste atenção: de que assuntos tratam, como divulgam os bastidores da própria vida e o tipo de avaliação que fazem ao promover produtos de bem-estar. Se notar que um influenciador não é transparente ou zeloso, considere se segui-lo faz com que você se sinta melhor ou pior. Embora haja um número de influenciadores cada vez maior tomando decisões informadas e conscientes sobre como se relacionam com a indústria do bem-estar, as redes sociais ainda são bastante parecidas com terra de ninguém. Como alvo principal da indústria do bem-estar, você deve exercer sua autonomia — e, portanto, seu poder — e ser crítica em sua relação com influenciadores e marketing nas redes sociais.

O falso autocuidado é só um barato passageiro, que serve de válvula de escape da vida cotidiana e nos distancia mais um pouco de nosso verdadeiro eu

Produto

  • Autocuidado de Verdade
  • Pooja Lakshmin
  • Fontanar
  • 272 páginas

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