Trecho de Livro: Assim Nasceu uma Língua, de Fernando Venâncio — Gama Revista

Trecho de livro

Assim Nasceu uma Língua

Linguista lusitano Fernando Venâncio disseca raízes da língua herdeira de pastores de ovelha espanhóis, quebrando mitos como o da “pureza” da origem latina

Leonardo Neiva 10 de Maio de 2024

Você sabia que a língua portuguesa só passou a ser conhecida dessa forma ao menos 300 anos depois da criação do reino de Portugal? Que sua “certidão de nascimento”, a diferenciação das outras línguas latinas, aconteceu no momento em que começou a se perder o uso do l e n entre as vogais (por exemplo: dolor e color se transformando em dor e cor)? E que, na verdade, boa parte daquilo que conhecemos como língua portuguesa vem do galego, língua dos pastores de ovelha do noroeste da Espanha, e não do latim?

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Essas e muitas outras questões sobre a origem do português o linguista, escritor e crítico literário lusitano Fernando Venâncio explora a fundo em seu “Assim Nasceu uma Língua” (Tinta da China Brasil, 2024). Numa mistura de vasto conhecimento linguístico e histórico, delicadeza narrativa e uma atenção sobrenatural aos detalhes, o autor conta de forma instigante a história e as histórias da língua portuguesa, seja a que se fala hoje em Portugal ou mesmo suas variantes, como a nossa versão nacional.

A obra também quebra alguns mitos que sobrevivem até hoje, como o da “pureza” da origem latina. Ao apontar a forte influência do galego, Venâncio esclarece que esse ideal de falarmos uma versão direta do latim não passa de um discurso construído para servir a projetos nacionalistas — e que faz ainda menos sentido com a língua tomada e reapropriada por falantes de várias partes do mundo.

“Ninguém nos tira a ideia de que tudo em Portugal é único. Assim fomos instruídos”, reflete o autor em trecho da introdução da obra. “É-nos, assim, difícil admitir que a existência do país ficou a dever-se a circunstâncias históricas e sociais inteiramente fortuitas.” Ainda com prefácio do linguista brasileiro Marcos Bagno, a obra ajuda a quebrar parte desses mitos, colocando em seu lugar uma rica e talvez até menos coesa, mas sempre complexa história.


Quando o português se chamou “português”

Na década de 1430, mas em ano que não conseguimos precisar, um príncipe português, Pedro, que já vimos ser tradutor, verteu do latim uma obra de Cícero, o Livro dos ofícios, e dedicou‐a ao irmão, o já rei Duarte. À época, “livro” era um molho de folhas manuscritas, soltas ou atadas, um exemplar único que depois seria, ou não, copiado por outras mãos, e assim difundido num círculo habitualmente pequeno e endinheirado. A invenção da imprensa, com a sua capacidade de larga e mais barata difusão, ainda demoraria. O primeiro livro português impresso só apareceria em 1488, em Chaves.

Naquela dedicatória ao irmão rei, escrevia d. Pedro este trecho, que levemente aqui se actualiza:

Não sei por que ventura se acertou que um livro que Túlio [Cícero] compôs, e chama‐se Dos ofícios, neste ano passado tomei afeição a ler por ele. E quanto mais lia, tanto me parecia melhor e mais virtuoso, e não somente a mim, mas assim parecia a alguns outros a que eu lia em português alguns seus capítulos, em tanto que por eles algumas vezes fui requerido que tornasse este livro em esta linguagem.

Este tornar em linguagem significava, então, ‘traduzir para a língua vulgar’. E, mais adiante, Pedro insistirá: “Não embargando que o latim na cristandade é mais geral que o português, em Portugal esta linguagem é mais geral que o latim”. Daí a vantagem de traduzir o referido livro de Cícero.

Estas passagens contêm duas preciosidades: “eu lia em português” e “mais geral que o português“. É esta a primeira vez que achamos o idioma assim identificado, e já o reino de Portugal levava trezentos anos de existência.

Até então, a noção de língua era reservada para o latim. Qualquer outro tipo de expressão era referido como linguagem. Existe disto uma primeira documentação, de 1318, num Livro de alveitaria (a ‘arte de curar cavalgaduras’, ou veterinária), no qual o autor Mestre Giraldo informa (e tenha‐se em conta que a ortografia era, às vezes, um tanto fantasiosa): ‘E eu com ajuda de deos assy trelladey e hordeney todo per linguagem portugues [sic] o mjlhor que pude e entendy”. Com “linguagem portugues” se designava, então, a maneira portuguesa de expressar‐se. Mais de um século depois, ainda se falará de “esta nossa linguagem português” (1455).

O castelhano foi, nesse autodesignar‐se, bastante mais precoce. Já por 1250 era corrente dizer‐se não só “en el lenguaje castellano”, mas igualmente “en castellano” ou “en el castellano”. O português precisará, pois, de esperar duzentos anos para expressá‐lo desta forma directa.

Um apontamento sobre o emprego de espanhol. Durante bastante tempo não foi clara, entre os falantes da Península, a noção de que, nos vários reinos, se falavam línguas diferentes. No terreno, as diferenças eram graduais, ainda pouco marcadas, não permitindo cortes abruptos na percepção. Também em Portugal essa consciência só paulatinamente se desenvolveu. Por 1570, Duarte Nunes de Leão, um destacado linguista, de quem adiante falaremos, designava como “lingua hespanhol” [sic] o conjunto de castelhano e português. Nada estranho, sabendo‐se que, pela mesma altura, Luís de Camões reconhecia a pertença dos portugueses a uma Espanha, ou Hespanha, como nação espanhola que também eram. E ainda em 1734, o já citado Madureira Feijó fazia de Ibéria e Hespanha sinónimos, sendo a meridional Ayamonte uma cidade… “de Castela”.

Por vezes, certa palavra seria tão prática, está mesmo a pedir para existir, e que acontece? O idioma simplesmente não a possui

Noutros estudos, escolhi denominar o idioma centro‐peninsular castelhano até cerca de 1650, e a partir de então espanhol, quando um Estado espanhol se acha constituído. Nesta obra de divulgação, optei pela perspectiva do leitor actual, adoptando a terminologia entre nós em maior voga: espanhol.

Uma língua não tem todas as palavras

Quando ainda não existiam rápido, nem veloz, e muito menos célere, a língua, como vimos, dispunha duma óptima solução: ligeiro. Na verdade, bem poderíamos hoje estar ainda nessa exacta situação.

Com efeito, nem sempre há recursos disponíveis. Por vezes, certa palavra seria tão prática, está mesmo a pedir para existir, e que acontece? O idioma simplesmente não a possui. Exemplo disso em português é o contrário de tardio. É isso: na nossa língua há um adjectivo para tarde, mas falta‐nos um para cedo. Ele já existiu, mas sempre com pouquíssimo uso, e acabou mesmo esquecido: era temporão. Actualmente, é uma espécie de “cultismo popular”, desses que servem ao escritor para mostrar a sua afinidade com o que é simples e genuíno na vida.

É certo que prematuro e precoce servem, sempre que precisamos de dizer o contrário de “uma hora tardia”, “um jantar tardio”. Mas ambos soam inelutavelmente “cultos”. O espanhol tem, sim, essa palavra prática, corrente, temprano, e o galego também, temperán. Já o francês debate­-se com o mesmo problema que nós: o da falta duma palavra utilizável no dia-a-dia.

Outra palavra inexistente é compensa. Seria um perfeito regressivo do verbo compensar. O facto é tanto mais estranho quanto existe, de há muito, recompensa, de recompensar. E não faltam derivações, como compensação, compensador, compensável, compensatório. Console‐nos não existirem igualmente um esp. compensa, um fr. compense, um ital. compensa.

Para tradutores, esse problema — a inexistência numa língua dum termo correntio noutra — é um pesadelo recorrente. Sim, como verter o esp. alámbrico (‘relativo a ligação com fios’), ou callejero (‘relativo a rua’)? Sirva‐nos de algum consolo imaginar o que será traduzir para espanhol o nosso desconversar, ou o tão celebrizado desenrascanço.

As palavras viajam de idioma para idioma

O estudo da origem das palavras chama‐se etimologia. Habitualmente é uma tarefa facilitada. Um adjectivo como subserviente só poderia derivar duma palavra latina: subserviente. É, de resto, um termo desconhecido noutras línguas provenientes do latim: no espanhol, no francês, no italiano. Mas não no inglês, em que apareceu em 1630, enquanto a presença em português está atestada em 1687, num livro de espiritualidade. E a pergunta é: chegou‐nos ele directamente do latim, ou o inglês serviu de intermediário? Para tentar sabê‐lo, importaria algum conhecimento da obra do autor, o jesuíta Manuel Fernandes. Pois bem, o que é conhecido da sua biografia nada permite concluir, sendo a procedência latina a mais segura.

Nada problemática é, em contrapartida, a origem espanhola de airoso, italiana de imbróglio, francesa de bistrô. Certo é que a origem do próprio fr. bistro, ou bistrot, é enigmática. Poderia provir do russo, poderia ser autóctone. Muito nosso é rapapé. O Brás Cubas das Memórias póstumas, de Machado de Assis, aspirava a um lugar governamental e por ele tudo fazia: “Cortejava a pasta por meio de rapapés, chás, comissões e votos”. Rapapés são louvores exagerados. Mas também significa ‘mesuras, ademanes, salamaleques’. E aqui temos uma palavra vinda do fr. mesures, outra do esp. ademanes, por sua vez talvez do árabe, e outra seguramente do árabe salam halayk, ‘a paz esteja contigo’.

Numa palavra: o português nunca se fez esquisito, mesmo quando jurava que sim

Mudemos de cena. Por volta de 1370, um português cunha percalço,’transtorno’. Era uma excelente criação. O quatrocentista Fernão Lopes irá usá‐lo em várias das suas crónicas. Mas havia, pelos vistos, necessidade de mais. E assim tomámos revés (ainda no século XV) do espanhol, donde também depois importámos desaire (1555), soçobro (1560), malogro (1673), transtorno (1859) e, entretanto, do italiano, fracasso (1707). Assim se vai enriquecendo uma língua.

Numa palavra: o português nunca se fez esquisito, mesmo quando jurava que sim, como quando, afrancesando‐se largamente entre 1750 e 1950, afirmava estar alerta e crítico no que tocava a galicismos.

Certo é, também, que a etimologia está cheia de surpresas. Diria mesmo: a etimologia é uma eterna surpresa. Foquemos no ano 100. Para um romano, era inconcebível que a segunda palavra de “Domus plena est” (à letra, “Casa cheia está”) fosse modificar‐se no futuro — sim, para quê? — e que isso resultasse, não em uma, mas numa multiplicidade de formas. Assim, plena tornou‐se na Toscana piena, na Île‐de‐France pleine, no condado de Barcelona ficou plena (mas com o masculino ple) e na Rioja fez‐se llena. O mais inesperado estava reservado para o Noroeste ibérico: aí se chegou a chea, pronunciado tchêa. Não é tudo ainda. Piena, plena, llena e chea fizeram‐se também substantivos, todos relacionados com uma subida das águas, enquanto plein, masculino de pleine, se substantivava, dando, por exemplo, em faire le plein ‘encher, encher‐se’.

Mais tarde, em território português, chea voltou a modificar‐se, e não pouco: perdeu o t de tch, adquiriu um i entre as vogais e fechou o a final, acabando em cheia. Acabando? Certezas, aqui, é o que menos há. Em grande parte de Portugal, já soa châiâ. E, partindo das pronúncias bâjo para beijo e pâxe para peixe (correntes, vinque‐se, já nos anos de 1940!), não podem excluir‐se inesperadas remodelações.

O estudo da etimologia — seja, contudo, sublinhado — traz um perigo: o de confiarmos em palpites. Mesmo quanto à origem de palavras menos transparentes, vem‐nos a convicção de acertarmos à primeira. O melhor exemplo que conheço disso é barafunda, e ele convida a uma digressão.

O dicionário electrónico Houaiss, na sua primeira edição, de 2001, dava a seguinte informação etimológica: “Barafunda. Origem obscura; Nei Lopes propõe o quimbundo mbala ‘aldeia’ e o topónimo angolano Funda, aglomerado populacional onde havia confusão e balbúrdia”. Uma sugestão impagável, essa, do etimologista brasileiro. Ora bem, a palavra apareceu em português em 1554, numa peça de Ferreira de Vasconcelos, autor conhecido pelo seu vernaculismo, mas não menos castelhanizante. Outra informação: por 1435, barafunda era já palavra espanhola (mais tarde passaria a barahúnda), e com o exacto sentido que lhe conhecemos. Não se lhe conhece a proveniência, é certo, mas, em tão recuada época, estão excluídos influxos da África Austral. Mais: pela mesma altura, o espanhol conhecia um vocábulo com semelhanças, barafustar (mais tarde barahustar), também passado ao português, por volta de 1560, perdendo uso na língua original. Em edição posterior do Houaiss, desapareceu para barafunda a imaginativa proposta.

Uma interessante circunstância: certas palavras derivam do nome de personagens existentes. Exemplo clássico é o fr. pasteuriser, port. pasteurizar. Deriva do nome de Louis Pasteur e designa uma operação a que submetem alimentos líquidos ou sólidos. Foi criada e difundida ainda em vida do químico e biólogo. Os adjectivos dantesco, freudiano, gongórico, kafkiano, maquiavélico, platónico, quixotesco e socrático são exemplos dessa eternização dum indivíduo marcante.

Mas o português tem três termos desse género que são únicos: o substantivo despautério ‘dislate’ e os adjectivos espampanante ‘espalhafatoso’ e marialva. O primeiro liga‐se a Despauterius, nome latinizado do gramático flamengo Van Pauteren, cuja obra tinha fama de absurda. O segundo recorda Spampani, companhia acrobática que, em finais do século XIX, deslumbrou Lisboa. O terceiro é produto nacional: marialva ‘sedutor, conquistador de mulheres, dom‐joão’, como ensina o Priberam, provindo do marquês de Marialva, destro cavaleiro setecentista.

O estudo da etimologia traz um perigo: o de confiarmos em palpites. Mesmo quanto à origem de palavras menos transparentes, vem‐nos a convicção de acertarmos à primeira

Vimos como barafunda não teve a origem africana que se propôs. Nas primeiras edições deste livro, especulava‐se sobre igual origem para minhoca. Com efeito, e segundo informação prestada ao gramático brasileiro Marcos Bagno por um aluno congolês, o nome do dito verme faz, no quicongo,
o singular em nhoca e o plural em minhoca. Uma circunstância deveras assombrosa.
Lembrei, então, que a datação de que dispunha, num auto de Gil Vicente de 1522, tornava essa origem algo problemática.

Um artigo do linguista galego Paulo Gamalho, no Portal galego da língua, de finais de dezembro de 2019, permitia recuar a primeira ocorrência conhecida de minhoca até à primeira metade de Quatrocentos. O conhecido Livro da montaria, do rei João I, refere por várias vezes o dito verme. Mas não era tudo ainda. Em comentário ao artigo, o autor citava mensagem do professor viguês Martinho Montero Santalha com informação de que minhoca figura no já acima aludido Livro de alveitaria, de 1318. Reproduzo e destaco: “Para adelgaçar e desfazer sobrossos [ferimentos em animais de carga], outrossi presta para isto a cebola assada e malhada com as minhocas da lama”. Tudo parece indicar que, na realidade, o vocábulo é bem mais antigo, tendo circulado oralmente por séculos.

Produto

  • Assim Nasceu uma Língua
  • Fernando Venâncio
  • Tinta da China Brasil
  • 304 páginas

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