As Pequenas Doenças da Eternidade
Livro de contos do moçambicano Mia Couto lida com os grandes males da sociedade, numa edição exclusiva para o público brasileiro
Um homem escreve uma carta à mãe da qual foi separado ainda bebê; uma mulher aguarda angustiada o retorno do marido; um jovem tenta proteger a mãe enquanto teme seguir os violentos passos do pai. É desse mosaico de histórias curtas mas impactantes que se monta “As Pequenas Doenças da Eternidade” (Companhia das Letras, 2023), coletânea de contos que o autor moçambicano Mia Couto publicou na revista portuguesa Visão, cujo trecho sai com exclusividade na Gama.
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Autor de romances como “Terra Sonâmbula” (Companhia das Letras, 2016) e “Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra” (idem), o autor vai desfiando a poesia cotidiana numa prosa fluida e carregada de beleza, da maneira que fez em livros de contos como “O Fio das Missangas” (idem). Desta vez, no entanto, a obra foi pensada especialmente para o público brasileiro pelo escritor, que revisitou, incluiu e retirou histórias na comparação com a versão que saiu em terras portuguesas em 2021.
Biólogo, jornalista e autor de mais de 30 livros entre a prosa e a poesia, Couto foi premiado em 2013 com o Camões, a mais prestigiosa distinção na língua portuguesa, e indicado para o Man Booker International Prize em 2015. Assim como a mãe que pede continuamente a Deus que lhe dê a felicidade das pequenas doenças, postergando o próprio fim, no conto que empresta o título à obra, as páginas do livro estão repletas de histórias sobre os grandes males que assolam a humanidade: a pandemia, preconceitos, traições, o abandono e a finitude. À maioria dos personagens criados por Couto, resta a súplica por saúde, paz e dignidade.
O meu primeiro pai
Todos os domingos o meu pai anunciava que ia à missa. Nunca chegou a entrar na igreja. Pelo caminho, parava nos bares. Eram vários os bares e, mais ainda, as paragens que ele fazia. Encontrava as tabernas de olhos fechados como um devoto adivinha a presença da cruz no escuro. A gente, dizia ele, começa a beber antes de ter boca. O meu velhote bebia pelo cheiro. O nariz dos bêbedos ocupa o corpo todo. A sede da boca pode ser saciada. A do corpo não se resolve nunca.
Em cada taberna, o nosso pai ajoelhava-se e benzia-se de copo na mão. Fazia-o lentamente para não entornar a bebida. Perante um altar pejado de garrafas, misturava orações, impropérios e encomendas de mais aguardente.
Regressava a casa ao final da tarde. A nossa mãe espreitava por trás das cortinas. Quem me dera que
faça calor, suspirava ela. Nos dias quentes, o marido entrava em casa já meio adormecido, sapatos na mão, os olhos à procura do olhar. Com o calor, a maldade saía-lhe do corpo, diluída em suor. No geral, porém, a chegada dele era temida, prenúncio de uma guerra sem panos brancos. O pai surgia no topo da rua, a mãe alertava-nos: ele aí vem, vão para o quintal. E corria a recebê-lo como quem se apressa a se entregar a um carrasco.
Por detrás das moitas, adivinhávamos a ágil dança da nossa mãe, escapando aos murros e pontapés. A arte de quem apanha, dizia ela, é evitar marcas. Dói mais exibir essas nódoas que o sofrimento da pancada. Era assim que ela falava.
A arte de quem apanha, dizia ela, é evitar marcas. Dói mais exibir essas nódoas que o sofrimento da pancada
Regressávamos quando os gritos viravam choro. Depois, quando reinava o silêncio, rodávamos com mil cuidados a maçaneta da porta. O pai esperava-nos na cozinha. Ocupava esse aposento que ele, com desdém, chamava o lugar das mulheres. A cozinha ficava ainda mais pequena com o nosso pai ali sentado, as pernas longas não cabendo dentro da casa. Havia uma destilaria dentro do hálito dele.
Aguardávamos em silêncio, prontos para escutar o que nunca chegou a dizer. Os bêbedos têm medo das
palavras. Magoam-se mais ainda com o silêncio, esse fundo de copo irremediavelmente vazio. A luz tornava mais justa a sua apertada camisola interior. Temíamos a sua ferocidade, mas receávamos ainda mais tornarmo-nos parecidos com ele.
Sobre os joelhos o pai pousava os velhos sapatos, os únicos que tinha. A ponta dos dedos afagava as solas e era como uma desajeitada carícia, esse afago que ele nunca dedicou a ninguém. Depois de um tempo, os dedos impregnados de poeira, anunciava:
— Vão lá, crianças, vão lá ter com ela!
Corríamos a reconfortar a mãe, que jazia embrulhada nos lençóis. Eu sacudia o pó da almofada e nunca entendi por que o fazia, uma vez que, naquele leito, tudo era imaculado.
— Durma, mãe.
— Não posso, meus filhos.
— Finja que dorme — implorava eu. — Assim ele não a importuna mais. E sonhe, mãe.
— Ultimamente — dizia ela — tenho-me esquecido de sonhar.
Estranho paradoxo: a nossa família só se tornou completa quando a nossa mãe ficou viúva
Na manhã seguinte a mãe confessou à vizinha que o seu primeiro marido era totalmente diferente do atual. A vizinha sorriu, complacente. Estremeci, em pânico. O primeiro marido? Não tinha havido homem, nem outro casamento. A mãe sorriu quando lhe disse o quanto me magoava essa mentirosa lembrança. E explicou-se. Esse primeiro marido que ela inventava era, afinal, este nosso pai num outro tempo, antes do desemprego e da bebida. E nós éramos filhos, aliás, órfãos desse outro que se extinguiu dentro do atual esposo. Tantas vezes ela tinha rezado para que esse homem regressasse das brumas e, como um príncipe exilado, tomasse posse do nosso castelo.
Estranho paradoxo: a nossa família só se tornou completa quando a nossa mãe ficou viúva. Diz-se que um casal se torna perfeito quando os dois juntos continuam a ser apenas uma metade. Com a viuvez a mãe tornou-se metade de nada. Fomos visitá-la ao hospital. Segurámos as suas mãos e lamentámos o quanto o nosso pai a fez sofrer. O meu irmão mais velho chegou a dizer algo terrível:
— O nosso maior receio é termos herdado a violência dele.
— Engano vosso, meus filhos — declarou a mãe. — O vosso pai nunca ergueu um dedo contra mim.
— Como pode protegê-lo depois de tantos anos?
— Alguma vez viram uma nódoa negra no meu corpo?
— Então, de quem eram os gritos? — perguntou o meu irmão. — De quem era o choro?
— Eu gritava e chorava — respondeu a mãe — porque o vosso pai se agredia a si mesmo.
Nunca houve outro homem e o vosso pai sabia. O que ele não perdoava era eu estar mais viva do que ele
O facto de a raiva do nosso pai se dirigir exclusivamente contra ele mesmo era uma prova de amor tão verdadeiro que, em prantos e soluços, a mãe implorava que o homem, nesses acessos de raiva, a agredisse apenas a ela.
— O vosso pai só me tocou para me amar.
O seu verdadeiro vício não era o álcool. O seu vício éramos nós, a sua família, que ele amava e que não
sabia o que fazer com esse amor. O nosso pai nunca aprendera a exercer a ternura que havia nele. Tinha medo de se entregar e não regressar. A bebida afastava-o dessa carência.
— Não era de sede — murmurou a mãe — que ele sofria. Morria, sim, de ciúmes da vida que havia em mim. Nunca houve outro homem e o vosso pai sabia. O que ele não perdoava era eu estar mais viva do que ele. — Foi assim que ela falou e não havia lamento na sua voz.
Ainda hoje, na solidão da minha cozinha, passo lustro aos velhos sapatos que foram a minha herança
paterna. E os meus trémulos dedos são os dele, os do meu primeiro pai, ciumentos da vida que é sempre dos outros. E calço os sapatos para me dirigir à taberna onde os meus filhos me virão buscar.
- As Pequenas Doenças da Eternidade
- Mia Couto
- Companhia das Letras
- 176 páginas
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