As Flores do Bem
Novo livro do neurocientista Sidarta Ribeiro apresenta a trajetória da maconha e destaca motivações políticas de sua proibição até seu retorno atual
Você sabia que o cânhamo, fibra obtida a partir da cannabis sativa, foi usado nos séculos passados como matéria-prima para produtos navais na Europa e até teares na China? Ou que as propriedades medicinais da planta já eram conhecidas, inclusive sendo aplicadas em unguentos em regiões da Índia e África? São esses e outros detalhes da existência e utilização da maconha pré-proibição que abrem o novo livro do neurocientista, biólogo e escritor Sidarta Ribeiro, “As Flores do Bem” (Fósforo, 2023), em que até mesmo o título funciona como campanha para subverter décadas de desinformação e preconceito.
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Na obra, o autor afirma que motivações políticas, racistas e conservadoras levaram ao proibicionismo da maconha sem nenhuma base científica ao longo do século 20. Segundo ele, a campanha global que uniu os interesses de indústrias têxteis como a do algodão e do náilon às políticas racistas e excludentes em países como Brasil e Estados Unidos levou à criação de livros, filmes e peças publicitárias que criaram um pânico moral e solidificaram a imagem negativa da droga — finalmente levando à sua proibição oficial em quase todo o mundo.
Tudo isso Sidarta narra com sua tradicional clareza, numa linguagem acessível e envolvente. Como forma de entender melhor o consenso que levou à impopularidade da maconha, o neurocientista ainda defende que, se não foi o rigor da ciência que marcou a queda da planta, é ele hoje o principal responsável pelo seu retorno, não apenas no uso medicinal, mas em vários setores em diferentes partes do mundo, constituindo uma indústria multibilionária e com grande potencial de desenvolvimento. Ele debate também as dificuldades de avanço desse mercado aqui no Brasil, que já teve chance de ser uma de suas principais lideranças.
“Os verdadeiros problemas são a falta de acesso e o estigma social. Por essa razão, cada vez mais pessoas acionam a Justiça para garantir a importação e fornecimento pelo SUS de caríssimos medicamentos à base de maconha, apesar do custo bastante reduzido de produção do óleo de amplo espectro em território nacional, que permanece ilegal”, escreve na obra.
Apesar do amplo reconhecimento de suas propriedades terapêuticas, a maconha foi progressivamente estigmatizada durante as décadas de 1920 e 1930, até ser completamente banida da medicina hegemônica. Infelizmente o Brasil desempenhou um papel importante nesse processo, por meio do testemunho enganoso prestado pelo médico Pernambuco Filho durante a II Conferência Internacional do Ópio, promovida pela Liga das Nações em 1924. Falando em Genebra como representante de um país com uso endêmico de maconha, Pernambuco Filho afirmou que a maconha seria “ainda mais perigosa que o ópio”. Essa opinião estapafúrdia foi veementemente apoiada pelo representante do Egito, outro país em que o uso da maconha era prevalente. A partir desse evento, começou a firmar-se em fóruns internacionais a noção de que a maconha deveria ser globalmente banida.
Ao contrário do que muita gente supõe, entretanto, esse expurgo não foi causado por nenhuma legítima razão científica ou biomédica, mas sim por interesses comerciais contrários ao cânhamo — as indústrias do algodão e, logo depois, do náilon — e por interesses políticos racistas, contrários aos negros e pardos no Brasil, e aos negros e mexicanos nos Estados Unidos. Filmes e livros de propaganda enganosa começaram a ser produzidos e disseminados com recursos públicos.
Em 1932, os Estados Unidos criaram o Departamento Federal de Narcóticos, e seu diretor, Harry Anslinger, passou a propagar a ideia de que a maconha seria uma fábrica de pervertidos e criminosos. Em 1935, um cartaz produzido por essa divisão estatal mostrava um baseado e dizia: “Cuidado! Jovens e velhos — pessoas em todas as fases da vida! Isso pode ser entregue a você por um estranho amigável. Ele contém a droga assassina ‘Marihuana’ — um poderoso narcótico no qual espreita Assassinato! Insanidade! Morte!”. Outro cartaz da mesma época mostrava uma mulher vestindo lingerie e penhoar e outra, de visual similar, sendo injetada por um homem com uma seringa, ao lado dos dizeres: “Marihuana: A erva daninha tem raízes no inferno. Orgias estranhas, festas selvagens, paixões desenfreadas. Fumaça que entra nos olhos dos jovens. O que acontece nas festas de maconha?”. No centro do cartaz, uma mão demoníaca segurava cigarros com os rótulos “luxúria”, “crime”, “tristeza”, “ódio”, “vergonha” e “desespero”. Ao lado, uma seringa estampava “miséria”.
Marihuana: A erva daninha tem raízes no inferno. Orgias estranhas, festas selvagens, paixões desenfreadas. Fumaça que entra nos olhos dos jovens
No ano seguinte, em 1936, o filme A porta da loucura, em inglês Reefer Madness, encenou de forma apelativa a narrativa oficial sobre a maconha, propagando para grandes plateias a ideia de que o consumo da planta leva à insanidade mental e à morte. O filme mostra jovens estudantes que se tornam “viciados” em maconha por traficantes sedutores, o que os leva a uma espiral descendente de crimes que vão da lesão corporal por negligência até o estupro, o assassinato premeditado e o suicídio. Com toda essa propaganda agressivamente negativa, não surpreende que o público em geral tenha desenvolvido um imenso temor à maconha. O terreno ideológico estava afinal preparado para o Marihuana Tax Act de 1937, que proibiu oficialmente a maconha em todo o território dos Estados Unidos.
A despeito de todas as suas utilidades têxteis e terapêuticas, milenarmente conhecidas, no transcorrer da década de 1930 a planta foi caluniada, vilipendiada e acabou por ser totalmente proibida no Brasil, México, África do Sul, Canadá, Indonésia, Tailândia e Reino Unido, entre diversos outros países. Em 1961, as Nações Unidas firmaram uma convenção internacional para banir diversas substâncias, entre elas a maconha. Para a maior parte das pessoas do planeta, a maconha passou a ser considerada um tóxico terrível, um entorpecente perigoso. Cultivou-se essa propaganda negativa até enraizar-se um persistente
pânico moral.
Mas como foi que começamos a superar todo esse retrocesso? A revolução que transformou a erva maldita em remédio cada vez mais valorizado pela sociedade não teria acontecido sem uma revolução correspondente no conhecimento científico relacionado à maconha e suas incríveis moléculas. Se um dia o prêmio Nobel for concedido pelas descobertas que hoje embasam a terapêutica canábica, dois geniais cientistas serão certamente lembrados por merecerem o prêmio, mesmo já não estando entre nós.
O israelense Raphael Mechoulam (1930-2023) liderou as principais descobertas mundiais sobre os mecanismos biológicos e psicológicos da maconha. Nos anos 1960, ele identificou que o THC era o principal constituinte psicoativo da planta. Mechoulam esteve também associado às descobertas pioneiras do brasileiro Elisaldo Carlini (1930-2022), seu amigo e colaborador, na demonstração durante os anos 1970 e 1980 dos efeitos antiepilépticos do CBD — primeiro em camundongos, e depois em seres humanos. Recentemente, esses resultados foram confirmados por rigorosos ensaios clínicos controlados, aleatorizados e duplo-cegos, ou seja, por testes em que os pacientes testados foram divididos em grupos aleatórios, nos quais nem pesquisadores nem pacientes sabiam qual substância estava sendo ministrada. Já nos anos 1990, Mechoulam e sua equipe descobriram a anandamida, a primeira molécula identificada como endocanabinoide, isto é, um canabinoide endógeno, produzido pelo próprio corpo, mas capaz de se ligar ao mesmo receptor CB1 ao qual se liga o THC produzido pela planta.
A despeito de todas as suas utilidades têxteis e terapêuticas, no transcorrer da década de 1930 a planta foi caluniada, vilipendiada e acabou por ser totalmente proibida
Depois de décadas reprimida, a pesquisa biomédica sobre a maconha e seus constituintes finalmente alçou voo. Durante o ano de 1992, quando Mechoulam e sua equipe descobriram a anandamida, 123 estudos sobre canabinoides foram publicados em todo o mundo. No ano de 2022, três décadas depois, foram publicados 2662 estudos, um aumento de mais de vinte vezes.
- As Flores do Bem
- Sidarta Ribeiro
- Fósforo
- 184 páginas
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