As Abandonadoras
Numa série de ensaios, a jornalista catalã Begoña Gómez Urzaiz investiga mães que abandonam os filhos, assim como os próprios preconceitos sobre o tema
Mesmo se considerando feminista, parcial conhecedora da complexidade humana e empática com desvios da norma, a jornalista e escritora catalã Begoña Gómez Urzaiz ainda enfrenta uma dificuldade: a de entender que uma mãe queira viver longe dos filhos. Para lidar com essa profunda e pessoal inquietude a respeito das maternidades que fogem do esperado é que ela decidiu escrever “As Abandonadoras” (Zahar, 2024), livro onde reflete também sobre a culpa materna e as mães como sujeitos independentes e criativos.
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Da personagem de Cate Blanchett em “Carol” (2015), filme baseado na obra de Patricia Highsmith, à protagonista vivida por Olivia Colman em “A Filha Perdida” (2021), adaptação do romance de Elena Ferrante, as mães abandonadoras seguem com destaque na ficção, mas não só de hoje. Se, em ambos os casos, as personagens se vão para viver de forma plena e independente suas vidas e sexualidades, há também os clichês literários como o da criança que vive sem pais ou da marca deixada pela mãe no pequeno protagonista, sinalizando um emocionante reencontro final, como lembra a autora. Porém, em todos os casos, fato é que o estigma recai sempre muito mais na mulher. “Dos pais, pode-se esperar que sumam; das mães, não”, reforça Urzaiz no trecho logo abaixo.
Mas não é só na ficção que estão as mães abandonadoras. Seja a atriz Ingrid Bergman, a escritora vencedora do Nobel Doris Lessing ou Gala Dalí — que largou a filha para se casar com o surrealista Salvador —, os casos da vida real também são muitos. É com esses e outros exemplos que a jornalista se debate ao longo dos instigantes ensaios contidos em “As Abandonadoras”, onde trata dos diversos recantos da maternidade com autocrítica e surpreendente leveza — também mãe e filha, Urzaiz deixa claro que não foi abandonada nem pretende abandonar os filhos; por enquanto, trata-se de mera espectadora no tema.
Passando pela carreira, o arrependimento da maternidade e a necessidade de viver os próprios desejos, Urzaiz explora a ainda enigmática figura da mãe abandonadora para falar também da construção social da maternidade e do impacto onipresente da culpa sobre a figura materna. Afinal, por que, ao contrário dos pais, o abandono só é possível para elas em caso de necessidade maior, visão até então compartilhada pela própria escritora? “Uma de minhas intenções ao escrever este livro é pesquisar de onde me veio esse impulso censurador.”
Quando eu era criança e via a série da Píppi na televisão, não sabia que a criadora dessa personagem, Astrid Lindgren, foi mãe solteira aos dezoito anos, depois de uma relação com o diretor do jornal onde trabalhava como estenógrafa. Seu amante era trinta anos mais velho e casado. Astrid, que tinha pouquíssimo dinheiro, teve que deixar seu filho, Lars, com uma família de acolhida na Dinamarca, durante três anos. A autora costumava referir-se ao período em que viveu sozinha em Estocolmo, sem o filho, como seu “passeio no inferno”. Quando conseguia juntar dinheiro suficiente, dava uma escapada até Copenhagen para vê-lo, e quando finalmente conseguiu recuperar sua guarda e custódia, substituiu a culpa por tê-lo abandonado pela culpa por tirá-lo daquela família tão estável — semelhante à de Tommy e Annika —, que também amava e tratava bem o menino.
Ser mãe, afinal, é um acúmulo de culpas que vão se sobrepondo sem medo de entrar em contradição entre si. No universo da mãe, a culpa por deixar o filho, mesmo que temporariamente, é compatível com a culpa por recuperá-lo. Toda a obra de Lindgren está cheia de crianças sem pais, que inventam biografias alternativas para explicar essa ausência, assim como a própria Píppi, que conta para todo mundo que sua mãe é um anjo e seu pai, um pirata náufrago.
Nos livros de internato de Enid Blyton, produtos racistas, classistas e absolutamente irresistíveis que eu devorava em criança, os pais tampouco apareciam muito, embora nesse caso sua ausência fosse uma ausência socialmente aceita, porque as famílias tinham dinheiro suficiente para subsidiar o cuidado de seus filhos, como sempre se fez em toda parte.
Ser mãe é um acúmulo de culpas que vão se sobrepondo sem medo de entrar em contradição entre si
As famílias de Darrell Rivers, protagonista da saga Malory Towers, e de Patrícia e Isabel O’Sullivan, de As gêmeas, internas no Colégio Santa Clara, deixavam as meninas na plataforma da estação do trem que as levaria à escola no início de cada livro e, no máximo, apareciam de novo no último capítulo para pegá-las. Quando criança, desconhecendo o sistema de classes britânico e suas particularidades educacionais, eu perguntava sempre por esses pais ausentes e questionava como aquelas meninas podiam aceitar de bom grado ir para um colégio interno na Cornuália para jogar lacrosse e fazer festas noturnas com leite condensado e latas de sardinhas e em troca não ver a família nunca. Sardinhas em lata e uma piscina congelada em troca de uma mãe? Não me parecia que as meninas saíssem ganhando, na verdade.
Malory Towers, o internato em que Blyton situou os seis romances originais da saga, é inspirado no Benenden School, colégio para o qual a autora mandou as próprias filhas graças à fortuna acumulada com os livros infantis. Ela teve duas filhas, Gillian e Imogen. Quando eram pequenas, apareciam algumas vezes na imprensa, fotografadas junto à mãe famosíssima, acariciando seus cães e brincando no jardim da casa familiar.
Já adultas, as duas irmãs romperam relações uma com a outra, e a cada vez que davam entrevistas aos biógrafos da mãe apresentavam versões completamente contraditórias da infância e da mãe.
A filha mais velha, Gillian, que era professora e morava numa casa cercada de memorabilia de Enid Blyton, tomando chá toda tarde na mesa em que ela escreveu The Famous Five e Secret Seven, dizia sempre que ela era uma mãe maravilhosa. A filha mais nova, em compensação, disse a um biógrafo que Blyton era “arrogante, insegura, pretensiosa, uma mestra na hora de dizer coisas desagradáveis e difíceis e desprovida de qualquer traço de instinto maternal”. “Quando criança eu a via como uma autoridade estrita. Adulta, tive pena dela”, acrescentou Imogen.
Não há quase nenhum ambiente que considere o abandono de um pai comparável ao abandono de uma mãe. Dos pais pode-se esperar que sumam; das mães, não
Ocorre que tanto Enid Blyton quanto suas filhas perderam o contato com seus pais biológicos. O pai da autora, vendedor de facas Sheffield — a mulher que tanto contribuiu para perpetuar o estilo de educação das classes altas britânicas não nasceu nesse mundo e ganhou seu lugar ao sol escrevendo sobre a classe à qual queria pertencer —, abandonou a família quando ela ainda era pequena, e sua mãe fez com que mentisse aos vizinhos sobre o assunto. Muitos anos depois, o primeiro marido de Blyton, Hugh, também sumiu de cena, e as filhas perderam contato com o pai.
A experiência de perder um pai não por morte, mas porque ele desapareceu numa nova vida incompatível com a anterior — como aconteceu com Enid, primeiro, e com Gillian e Imogen depois — é comum. Pais que viram fumaça é algo que acontece o tempo todo e em todo lugar. Como dado biográfico, chega aos três ou quatro em cada dez na escala de fatos capazes de marcar uma vida. Mais que sofrer uma longa doença infantil, porém menos que passar por desastre econômico monumental. Não há quase nenhum ambiente que considere o abandono de um pai comparável ao abandono de uma mãe. Dos pais pode-se esperar que sumam; das mães, não.
Dizemos que é antinatural, mas isso não é certo, pois a natureza está cheia de mães ruins e de mães que desaparecem. As focas abandonam suas crias. Os cucos deixam os ovos nos ninhos de outros pássaros e fogem voando — enganam, assim, as outras mães para que criem seus filhotes. Existem centenas de espécies animais para as quais é normal ou habitual comer os próprios filhotes.
As mães humanas também vão embora, às vezes. Aconteceu em todas as épocas e acontece hoje também, com todo tipo de motivação. A maior parte das mulheres que deixam seus filhos faz isso por pura necessidade, para conseguir ganhar algum dinheiro em outro lugar, muitas vezes cuidando
dos filhos dos outros ou fugindo de desastres geopolíticos. Algumas dessas mulheres tiveram a generosidade de contar-me suas histórias, que aparecem no penúltimo capítulo dessa pasta que levei muito tempo para conseguir chamarde “livro”.
A natureza está cheia de mães ruins e de mães que desaparecem. As focas abandonam suas crias. Os cucos deixam os ovos nos ninhos de outros pássaros e fogem
Há também mulheres, poucas, que renunciam à custódia dos filhos assim que nascem. Não é crime e pode ser feito de maneira anônima. Os profissionais de saúde são treinados e sabem que o protocolo nesse tipo de parto aponta que é necessário retirar o bebê rapidamente para evitar o contato com a mãe. E ela deve ser transferida para outro andar para que não ouça o choro dos bebês nem veja os corredores cheios de orquídeas. Nos hospitais, recomenda-se retirar as plantas do quarto durante a noite para que não roubem oxigênio dos recém-nascidos, e sempre me intrigou essa competição entre seres vivos delicados.
É fácil entender tudo isso instintivamente como um gênero de desgraça, que classificamos como mais um elemento do grande self-service de atrocidades gerado pelo turbocapitalismo. Podemos até romanceá-lo em nossa cabeça, com a ajuda de toda a ficção que nos rodeia desde crianças, rica em mães que renunciam a seu pequeno e põem-lhe no pescoço uma correntinha que 25 capítulos depois servirá para reconhecê-lo.
Quando subimos mais um degrau na pirâmide de necessidades, a coisa se torna moralmente mais nebulosa. Concordamos em aceitar que se deixe uma criança para não a condenar à pobreza ou para tentar a vida no exterior quando não há outro jeito, mas deixar uma criança para escapar de um casamento infeliz? Infeliz como? Havia violência?, começa a perguntar a fiscal moral que carregamos dentro de nós. Deixar uma criança para não ter que reprimir a própria sexualidade, como acontece em Carol? Renunciar ao cuidado individual dos filhos e coletivizá-lo, como faziam, por exemplo, as mulheres nos kibutzim de Israel, como requisito para a utopia comunal? Deixar uma filha para viver um amor tórrido em outro país, como fez Ingrid Bergman? Deixar uma criança para poder escrever como fizeram, em algum momento da vida, Muriel Spark, Doris Lessing e Mercè Rodoreda? Deixar uma filha não se sabe muito bem por quê, como fez Gala Dalí?
Por que é tão difícil para mim assumir que alguém queira se separar por um tempo ou para sempre de seus filhos, posto que me considero tão trabalhada no feminismo?
Nesses casos as dúvidas desaparecem e corremos o risco de acabar — como aconteceu comigo, que fui, constato agora, uma menina pró-establishment — emitindo juízos morais um tanto revoltantes.
Uma de minhas intenções ao escrever este livro, que a rigor e segundo as regras da escrita moderna não estou totalmente autorizada a escrever — comunico desde já que meus pais não me abandonaram nem eu abandonei meus filhos; sou uma mera espiã nesta calamidade —, é pesquisar de onde me veio esse impulso censurador. Por que é tão difícil para mim assumir que alguém queira se separar por um tempo ou para sempre de seus filhos, posto que me considero tão trabalhada no feminismo, acho que compreendo bem a complexidade humana e empatizo com todo tipo de desvio da norma?
Escrever permitiu que eu passasse um tempo explorando essa pasta, “As abandonadoras”, que se transformou em outra coisa. Tentei entender os porquês dessas mulheres reais e fictícias, assim como os seus quandos e comos. Quis também me perguntar por que continua causando tanto medo a ideia de uma mãe que, por um tempo, faz como se não o fosse. Tentei ser generosa e não dogmática ao responder à pergunta que me persegue: que tipo de mãe abandona um filho?
- As Abandonadoras
- Begoña Gómez Urzaiz
- Zahar
- 280 páginas
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