A Pedra da Loucura
Alinhado aos tempos, novo livro do chileno Benjamín Labatut questiona nossa capacidade de entender a loucura e o caos que vêm dominando o mundo
O escritor chileno Benjamín Labatut já vinha em ascensão no universo literário até publicar em 2020 o livro “Quando Deixamos de Entender o Mundo” (Todavia, 2022). Desafiando todos os gêneros e classificações, protagonizado por cientistas como Einstein e Schrödinger, com traços de ensaio, biografia e também desenvolvimentos estéticos puramente ficcionais, o livro foi definido de forma curiosa pelo também escritor irlandês John Banville como um raro “romance de não ficção”.
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Após o sucesso da obra, que chegou a ser finalista do International Booker Prize e entrou para listas de melhores do ano elaboradas desde pelo New York Times até o ex-presidente Obama, o novo livro do chileno a aportar no Brasil faz uma intensa reflexão sobre a demência e o caos. Em dois ensaios, “A Pedra da Loucura” (Todavia, 2022) parte de uma pintura do artista flamenco Hieronymus Bosch (1450-1516), do terror do autor H.P. Lovecraft (1890-1937), dos delírios do escritor de ficção científica Philip K. Dick (1928-1982) e da lógica inabalável do matemático David Hilbert (1862-1943) para questionar a nossa compreensão da realidade.
Num mundo parcialmente mergulhado no caos, em que a loucura e a paranoia invadem o cotidiano de forma cada vez mais frequente, a racionalidade pode não ser suficiente para abarcar as notícias inacreditáveis que recebemos todos os dias. Neste livro ao mesmo tempo criativo e extremamente conectado ao nosso tempo, Labatut mostra que a loucura às vezes é uma simples resposta à realidade e que o conhecimento nem sempre nos impede de deixar de compreender o mundo, o outro e a nós mesmos.
Por que somos perseguidos pela sensação crescente de que nada tem sentido? Por que sentimos que o mundo vai acabar? Até pouco tempo atrás, a maioria de nós podia facilmente ignorar a loucura; homens e mulheres alienados, com suas visões distorcidas da realidade, tinham pouco a nos dizer. Mas as coisas mudaram. Certa demência se infiltrou no mundo, gota a gota, e está ganhando cada vez mais força. Já não podemos simplesmente desdenhar a paranoia, nem podemos confiar, com absoluta certeza, que a ciência — ou mesmo nossos próprios sentidos — será capaz de nos mostrar o mundo como ele é. Devemos aprender a ver as coisas sob uma nova luz, porque a chama da razão já não é suficiente para iluminar o complexo labirinto que vai se formando devagar (embora alguns diriam que está sendo construído) à nossa volta.
Até pouco tempo atrás, a maioria de nós podia facilmente ignorar a loucura; homens e mulheres alienados, com suas visões distorcidas da realidade, tinham pouco a nos dizer. Mas as coisas mudaram
Em 2020, publiquei o livro Quando deixamos de entender o mundo, no qual entrelaço alguns dos fios que formam a rede de associações, ideias e descobertas que deram origem à química, à física e à matemática modernas, porque essas disciplinas — junto com a súbita explosão das tecnologias de comunicação, da biologia e da computação — encontram-se na base da nossa atual visão de mundo. Embora essa perspectiva racional e douta ainda seja poderosa e imponente, ela está desmoronando. As bordas da realidade começaram a sangrar, e muitos de nós temos a suspeita — uma suspeita que confirmamos toda noite ao sonhar, ou toda vez que ligamos a televisão — de que essa pequena cidadela, o castelo de razão e ordem que construímos, está cercada por todos os lados, e que seus muros, por mais altos que os levantemos, podem ser facilmente derrubados, não apenas por aqueles que os assaltam de fora, mas também pelas forças que investem contra eles de dentro. Desde que meu livro apareceu, muitas vezes me fizeram a pergunta do título: “Quando deixamos de entender o mundo?”. Alguma vez compreendemos a realidade? Podemos sequer aspirar a isso, ou talvez seja algo completamente fora do nosso alcance, um sonho infantil, um resquício da era da razão que agora avança de maneira desenfreada para o seu fim? Essas perguntas, que se tornaram tão urgentes, foram, até bem pouco tempo atrás, se não impensáveis, facilmente ignoradas, porque o planeta inteiro parecia estar viajando sobre trilhos, hipnotizado por uma única maneira de fazer as coisas.
O país adormeceu e nossos sonhos revolucionários, a ideia de que podíamos construir um mundo melhor e mais justo, foram sepultados sob a ideologia do crescimento econômico
Senti isso com particular intensidade no Chile, país onde vivo: aqui, depois dos anos de pesadelo da ditadura de Pinochet, todos entramos na fila, baixamos a cabeça e seguimos as regras. Só havia um caminho por onde seguir, e quase ninguém se atreveu a questionar o que estava acontecendo enquanto uma forma de capitalismo neoliberal especialmente perverso começava a se apropriar da nossa nova democracia, enredando cada fio do nosso tecido social em torno de suas garras. Quase todos ficamos calados, porque quase todos sentíamos medo. Medo da mudança, medo de retornar à barbárie, medo de que voltassem os homens armados no meio da noite, medo de que arrombassem nossas portas aos chutes e nos arrastassem às câmaras de tortura que os serviços secretos haviam deixado espalhadas por todo o país, dentro de casas que, se você olhasse de relance, juraria de pés juntos que eram lares comuns e corriqueiros, sem saber que em seu interior haviam ocorrido cenas infernais que nem mesmo Lovecraft poderia imaginar. Jovens e velhos, mulheres grávidas, meninos e meninas: a eletricidade correu através de todo mundo, enquanto cães e ratos eram treinados para fazer coisas indescritíveis. No entanto, os militares não voltaram. Pinochet finalmente morreu e entramos em um longo período de calma e normalidade. O país adormeceu e nossos sonhos revolucionários, a ideia de que podíamos construir um mundo melhor e mais justo, foram sepultados sob a ideologia do crescimento econômico. Mas os bebês acordam aos berros e, em outubro de 2019, uma gigantesca erupção de fúria social deixou o país de joelhos. Foi um cataclismo que nos atingiu com uma violência tão repentina que, quando meus compatriotas e eu olhávamos à nossa volta, éramos incapazes de nos reconhecer.
- A Pedra da Loucura
- Benjamín Labatut
- Todavia
- 72 páginas
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