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Trecho de livro

A Contagem dos Sonhos

No seu primeiro romance em mais de uma década, nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie explora a natureza do amor por meio da história de quatro mulheres

Leonardo Neiva 17 de Março de 2025

Após mais de uma década do lançamento de “Americanah” (Companhia das Letras, 2014), seu livro de maior sucesso até hoje, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie finalmente lança um novo romance, “A Contagem dos Sonhos” (idem, 2025). Nesse meio tempo, Adichie se tornou uma das autoras mais celebradas da literatura contemporânea, com seu olhar sensível para questões raciais, para o feminismo, a realidade dos imigrantes, o amor e a resistência aos diversos tipos de opressão. Olhar que esteve presente tanto em romances como “Meio Sol Amarelo” (Companhia das Letras, 2017) e “Hibisco Roxo” (idem, 2011) quanto nos contos de “No Seu Pescoço” (idem, 2017).

A autora explora no novo romance vários desses temas, mas no contexto de urgências e indefinições da pandemia. A obra acompanha o cotidiano de Chiamaka, uma escritora de livros de viagens que, navegando sozinha em sua casa durante esse período, pondera escolhas e arrependimentos, relembrando o contato com amigas, familiares e parceiros amorosos. E é por meio dessas memórias que a escritora vai construindo uma colcha de retalhos sobre mulheres cujas escolhas levaram a realidades bem diferentes.

Ao explorar os amores, saudades e desejos de quatro dessas personagens, Adichie fala das relações entre amigas e também entre mães e filhas num mundo interconectado, que vive em constante mudança. Também autora do potente “Sejamos Todos Feministas” (Companhia das Letras, 2015), manifesto sobre o feminismo no século 21 adaptado de uma palestra popular da escritora, e do autobiográfico “Notas Sobre o Luto” (idem, 2021), em que aborda a morte do pai na pandemia, Adichie desfila aqui mais uma vez a sensibilidade e urgência emocional que vêm fascinando leitores no mundo todo. Desta vez, observa com beleza as pulsões muitas vezes contraditórias que movem o coração humano em sua eterna busca pela felicidade.


O silêncio lá fora me assustava. O noticiário me assustava. Li sobre homens e mulheres mais velhos morrendo sozinhos, como se não fossem amados, enquanto as pessoas que os amavam choravam do outro lado de barreiras de vidro. Na televisão, vi corpos sendo carregados como manequins rígidos envoltos em pano branco, e chorei a perda de estranhos. Fuçava o Twitter em busca de hashtags sobre o coronavírus, e joguei no Google Tradutor tuítes de médicos italianos que pareciam saber o que diziam. O que não era muito, pois no fim das contas todo mundo sabia tão pouco, todos tateavam no escuro. Achava que estava sentindo qualquer novo sintoma sobre o qual tinha acabado de ler, e os sintomas mudavam toda hora — a cada dia uma nova surpresa, de irritações no rosto a feridas no pé, como um apocalipse desgovernado, sem sinal de um fim. Se sentia uma coceira no dedo do pé ou a garganta arranhando de manhã, ficava em pânico e dizia a mim mesma “Respire, respire”, imitando os aplicativos de meditação que nunca tinha levado a sério antes.

Com frequência, sentia uma dormência surda que entorpecia meu corpo e, às vezes, a crescente febre da inquietação. Falar pelo Zoom soava artificial devido ao esforço para demonstrar alegria, principalmente nas chamadas em grupo com amigos, em que cada um empunhava uma taça de vinho. Comecei a evitá‐las, e a evitar as chamadas de vídeo com a família. Ignorava até as com Omelogor, e ninguém era mais próximo de mim do que Omelogor, mas conversar com ela se tornou um esforço porque falar se tornou um esforço. Ficava deitada na cama sem fazer nada, e me sentia mal por não fazer nada, mas ainda assim não fazia nada. Mandava mensagens para amigos para dizer que estava escrevendo e, por estar mentindo, dava detalhes demais em vez de ser breve. Para apaziguar aquela sensação de ruína, decidi parar de acompanhar o noticiário. Ignorei a internet e a televisão e li os livros de mistério da Agatha Christie, feliz em escapar para sua improbabilidade refinada. Então, o noticiário voltou a me engolir. Bebi água morna com gengibre, acrescentando suco de limão de uma garrafa velha e rachada do fundo da geladeira e pimenta‐caiena, alho e açafrão‐da‐terra do meu porta‐temperos, até que a mistura me deixou enjoada. A cada manhã não queria levantar, porque sair da cama era voltar a me aproximar da possibilidade de sofrer.

Um dia, em meio a essa nova vida suspensa, encontrei um cabelo branco na cabeça. Apareceu da noite para o dia, perto da minha têmpora, bem crespo, e, no espelho do banheiro, a princípio achei que fosse um fiapo de roupa. Um fio branco solitário, com um leve brilho. Estiquei‐o completamente, soltei e depois estiquei de novo. Não arranquei. Pensei: Estou ficando velha. Estou ficando velha, o mundo mudou e ninguém nunca me conheceu de verdade. Uma torrente de pura melancolia encheu de lágrimas meus olhos. Isso é mesmo tudo, esse frágil inspirar e expirar. Para onde foram todos os anos, será que aproveitei a vida ao máximo? Mas qual é a medida absoluta de aproveitamento máximo da vida, e como eu poderia saber?

Ficava deitada na cama sem fazer nada, e me sentia mal por não fazer nada, mas ainda assim não fazia nada

Olhar para trás, para o passado, era ser inundada de pesar. Não sei o que veio primeiro — se comecei a nutrir arrependimentos e então dei um google nos homens do meu passado, ou se procurar os homens do meu passado me fez afundar num mar de arrependimentos. Pensei em todos os começos, e na leveza de ser que surge com eles. Lamentei pelo tempo perdido na esperança de que aquilo que eu tinha se transformasse em maravilhamento. Lamentei por uma coisa que nem sabia se era verdadeira: que, em algum lugar, havia alguém que cruzou meu caminho e que poderia não apenas ter me amado, mas ter me conhecido de verdade.

Tinha um menino coreano numa aula de música que fiz quando era caloura, há tanto tempo, no meu primeiro ano nos Estados Unidos, quando tudo ainda era novo. Introdução à música. A franzina professora branca falava depressa, empolgada, e a torrente de seu inglês americano, com um forte sotaque regional, era tão estranha, como um infindável som de broca, que muitas vezes eu ficava perdida. Um dia, olhei para o aluno ao meu lado, para ver se ele tinha compreendido as últimas palavras dela, e na página dele havia não letras que eu reconhecia, mas imagens delicadas, feitas de traços muito breves e elusivos. Fiquei encarando, fascinada pela linda caligrafia do coreano, impressionada por ele conseguir escrever aquilo e fazer com que tivesse significado. Na minha cabeça, foi assim que o notei pela primeira vez, mas nossas memórias mentem. Como soube que era coreano se não sabia a diferença entre japonês, chinês e coreano? Não sei como, mas soube, e também soube que, se ele escrevia em coreano, então devia vir da Coreia; não era americano, éramos similares, e, portanto, seus dias, assim como os meus, deviam ser repletos de solidão. Quis muito que ele me notasse, mas não fiz nada para atrair a sua atenção. Ele era bonito, atarracado e sólido, com um cabelo bem curto e espetado, que me pareceu de uma rebeldia maravilhosa. Sempre entrava na sala com o rosto baixo, como se fosse tímido ou estivesse preocupado, deixando a mochila cair no chão antes de se sentar. Eu imaginei a gente de mãos dadas, sentado na grama onde os estudantes americanos comiam sanduíches no sol.

Lamentei por uma coisa que nem sabia se era verdadeira: que, em algum lugar, havia alguém que cruzou meu caminho e que poderia não apenas ter me amado, mas ter me conhecido de verdade

Seríamos como eles, que iam até a praia de carro, voltavam e estacionavam na frente do alojamento estudantil, levemente bêbados, sem inquietações, pingando areia e água salgada. Toda quarta e sexta antes da aula de música, eu ensaiava anotar meu telefone num pedaço de papel; aquilo parecia ousado e promissor, algo que as pessoas faziam nos filmes, pessoas que sabiam como as coisas eram feitas. Durante semanas, me sentei ao lado do menino na aula, sua proximidade sendo uma corrente elétrica no ar, mas só anotei meu telefone no papel uma semana antes das provas finais. Escrevi também Quer se encontrar comigo mais tarde?. Então rasguei o papel e, quando estávamos nos preparando para fazer a prova, escrevi só meu nome e telefone no verso da nota de um café. Não entreguei a ele. Devolvi minha prova e fui embora. Nunca mais vi o menino, meu coreano bonito do cabelo espetado. Procurei em salas e corredores ao longo de todo o semestre seguinte e, uma ou duas vezes, vi um asiático com traços angulares que encarei até ter certeza de que não era ele. Talvez tenha voltado para a Coreia. Estaríamos juntos agora, eu e meu coreano, com um ou dois filhos, visitando Seul e Lagos, e morando em Nova York? Não gosto de Nova York. O ar de lá tem um toque azedo; seu anonimato queima a pele. A cidade faz eu me sentir à deriva, como uma pedrinha chacoalhando em uma grande cabaça qualquer. Morei um ano lá, logo depois de me formar na faculdade, num apartamento de um quarto na esquina da rua 42 com a Lexington Avenue, depois de convencer meu pai de que aspirantes a escritores precisavam morar em Nova York. Então o que na cidade me dava o impulso de me esconder, de modo que eu passava dias encolhida no apartamento, pedindo delivery e evitando o olhar do porteiro simpático? Quando desisti de escrever o romance, arrumei um emprego numa agência de publicidade e me mudei, sem nunca mais querer voltar. Mas Nova York muitas vezes fazia parte das minhas vidas imaginadas, talvez por ser a cidade que deveria fazer parte das vidas imaginadas. Paris aparecia também, outra cidade de que não gosto. Paris se gaba demais do distintivo de cidade especial, e, portanto, com deselegância, presume que vai te encantar simplesmente por ser encantadora. E os negros parisienses têm a aparência acinzentada, como se o desprezo cordial que a França reserva para os negros franceses tivesse formado uma camada de cinzas sobre a pele deles. Essa descrição de parisienses negros vem de um homem que pensei ter amado durante três anos da minha vida. Não, um homem que amei durante três anos, mas, depois que tudo terminou, desejei não ter amado. Darnell. O nome dele era Darnell.

Os franceses tratam os negros que nem merda, mas se você é afro‐americano eles meio que te toleram

“Eles têm a pele cinza e desbotada. Os franceses tratam os negros que nem merda, mas se você é afro‐americano eles meio que te toleram”, disse ele. Darnell me contou que uma vez tinha acabado de sair de um trem em Paris quando homens de uniforme chegaram de repente e começaram a pedir os documentos só das pessoas negras: Les papiers! Les papiers! Após uma olhada rápida no passaporte americano azul dele, eles acenaram para Darnell seguir; quando olhou para trás, viu quatro caras negros franceses humilhados e reunidos ao redor da pilastra da estação de trem, enquanto outros franceses passavam, indiferentes. Eu quis que Darnell dissesse que tinha ficado comovido, arrasado ou furioso com isso, mas ele explicou que era a reificação do paradigma neorracial subjetivo. Ou alguma coisa assim.

Produto

  • A Contagem dos Sonhos
  • Chimamanda Ngozi Adichie (trad. Alceu Chiesorin Nunes)
  • Companhia das Letras
  • 424 páginas

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