Um fotógrafo americano no Brasil dos anos 1970 — Gama Revista
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Um fotógrafo americano no Brasil dos anos 1970

George Love: além do tempo”, no Mam-SP, acaba de ser prorrogada até setembro. Mostra reúne fotografias e documentos inéditos que revelam fase importante da produção fotográfica no Brasil

Luara Calvi Anic 21 de Maio de 2024
O fotógrafo George Love na época da revista Realidade, 1968. Foto: autor desconhecido

Com mais de 550 fotos, a exposição “George Love: além do tempo” traz um panorama da carreira do fotógrafo norte-americano que se mudou para o Brasil em 1966, a convite de Claudia Andujar, fotógrafa suíça radicada brasileira. Na faixa dos 30 anos, os dois se conheceram em Nova York, quando ela viajou à cidade por conta de contatos profissionais, e lá iniciaram um romance. Andujar, então, que havia planejado uma viagem com o intuito de registrar indígenas isolados, o convidou para ir junto.

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Nascido em Charlotte, na Carolina do Norte, George Leary Love (1937-1995) desembarcou primeiro em Belém, depois morou em São Paulo e continuou no país pelos próximos 19 anos, se tornando uma figura importante na fotografia e no jornalismo do Brasil. O casal manteve uma relação por quase uma década, realizando diferentes exposições e eventos no Museu de Arte de São Paulo (Masp) e colaborando para publicações como “Realidade”, “Claudia” e “Quatro-Rodas”, da Editora Abril. “Na época, as revistas eram um ambiente efervescente”, lembra Zé De Boni, fotógrafo, pesquisador e curador da mostra. “Ele criava imagens que não podiam ser rotuladas de ilustração nem de registros. Elas enfatizavam o mood e a expressão, expandindo fronteiras.”

“Yanomami”. Fotografia da capa do livro “Alma e Luz”, de 1995
George Love, 1974

Há na exposição a edição histórica de “Realidade”, de 1971, toda feita na Amazônia. Na época, a Editora Abril, responsável pelo título, mandou uma grande equipe cobrir a região — em uma entrevista a De Boni, George Love estimou que 50 a 70 pessoas foram enviadas para essa única edição, algo impensável nos dias de hoje. “Nossa mais longa, custosa e apaixonada reportagem”, escreveu Victor Civita, então diretor da empresa, no prefácio de “Realidade”.

Essa incursão rendeu as incríveis fotografias aéreas feitas por Love que vemos nas páginas do especial e nas paredes do Mam. Além de retratos como o que estampa a capa da edição, esse assinado por Andujar. Anos depois, o material ali produzido também daria origem ao livro “Amazônia”, de Love e Andujar, lançado em 1978. O livro teve design de Wesley Duke Lee e textos assinados pelo poeta Thiago de Mello, que foram censurados pela ditadura.

Era uma tentativa de explorar visualmente, encantar as pupilas, a retina das pessoas

A mostra reúne ainda registros das reportagens “Poder para o povo preto” (1968) e “Eu vivi o racismo nos EUA” (1969), publicadas em “Realidade”. Love fotografou a comunidade do bairro nova-iorquino do Harlem e reuniões e encontros dos Black Panthers, ou o Partido dos Panteras Negras para Autodefesa — organização política que surgiu em Oakland, na Califórnia, como resposta à brutalidade policial e à opressão racial direcionada a população negra.

Monte Roraima, do livro
Monte Roraima, do livro “Amazônia” (1978), obra em conjunto com Claudia Andujar
George Love, 1974

A impressão dessas e outras imagens que vemos na mostra foi produzida sob o olhar de Zé De Boni, contemporâneo dessa geração e pesquisador da técnica fotográfica. Em 1977, ele abriu a galeria Álbum, inaugurada justamente com uma exposição de Love. Ambos se tornaram amigos, e o americano confiou seu arquivo pessoal a De Boni, que passou mais de uma década organizando negativos e documentos e carrega a missão de divulgá-los. “Ele me elegeu e é importante mostrar, preservar isso para o futuro. Não tenho como um patrimônio meu, é um patrimônio da cultura brasileira”, diz.

A seguir, confira trechos da entrevista que o curador concedeu a Gama.

“Poder para o povo preto”, reportagem da revista “Realidade”, da Editora Abri, 1968
George Love, 1968
  • G |George Love era um nome muito conhecido no período dos anos 1960 e 70 especialmente no circuito fotográfico. Por quê?

    Zé de Boni |

    Sim, especialmente em 1970, quando ele explode no Masp. George e Claudia Andujar organizam muitos eventos juntos no museu, como happenings, instalações e cursos. As exposições deles eram sempre surpreendentes. Eles tendiam a fazer alguma coisa além do tempo, com as últimas tecnologias, antenados ao que estava acontecendo no mundo. Mostravam as coisas com multimídia, som, luzes e efeitos visuais que George fazia. E foram muito influentes para essa geração porque o audiovisual artístico começou exatamente nessa época.

  • G |Então além de um casal, eram uma dupla que influenciava aquela geração.

    ZDB |

    Sim, eles fizeram a Semana de Fotografia, em 1974, no Masp. Além de um ciclo de fotografia chamado “A Paisagem Brasileira” (1977), um outro trabalho longo, “Grande São Paulo” (1976), que era uma pesquisa com vários fotógrafos jovens que documentaram a cidade, e hoje você vê a lista de nomes e 50% se tornaram importantes na fotografia. Tudo era um pouco adiante do tempo, meio informal demais, mas marcante.

Imagem do livro
Imagem do livro “São Paulo – Anotações”, de 1982
George Love, 1982
  • G |Esse período é considerado importante para a fotografia, apontado por pesquisadores como a consolidação de uma cultura fotográfica no Brasil. E é justamente nessa época que você decide abrir uma galeria e com uma exposição de George Love na abertura. Como isso se deu?

    Zé De Boni |

    Sim. O meu interesse foi despertado a partir da escola de fotografia Enfoco, do Claude Kubrusly. Na minha turma de doze pessoas, seis se tornaram grandes fotógrafos de São Paulo. Quando a Enfoco fecha, em 1977, senti um vazio porque eles tinham uma galeria pequena, mas que fazia coisas preciosas. Quando abro a Álbum, é quando a Fotoptica também abre, quando o Mis [Museu da Imagem e do Som] dedica-se especialmente à fotografia. Então tinham na cidade vários espaços e várias alternativas ou propostas para o movimento [fotográfico] que estava acontecendo. Como proposta eu comecei a convidar pessoas expoentes, ou influentes na fotografia. Falei com o George e ele “vamos fazer!”. Ele escolheu mostrar “São Paulo”, um projeto que ele estava trabalhando há muito tempo. E foi a exposição que inaugurou a galeria.

  • G |É definidora no trabalho de George Love a experiência com luz e cores no papel fotográfico, a maneira como ele imprimia e fazia sobreposições. Como isso era recebido na época?

    ZDB |

    Esse jeito de fotografar era justamente o mais vanguardista que se fazia nos anos 1970, que é quando a publicidade passou a não precisar mostrar todos os vincos, detalhes da roupa, mas trazer mais o mood, a atmosfera. E é o que ele fala do livro “Amazônia”. Curiosamente, ele descreve exatamente desse jeito, em que o objetivo não era mostrar a Amazônia em si, mas um trabalho em que a atmosfera te faz penetrar no assunto; não é o assunto que tem que ser enquadrado. Não era uma tentativa de ilustrar o texto. Mas de explorar visualmente, encantar as pupilas, a retina das pessoas. Gravar na retina uma impressão que você pode transmitir do assunto ou até intensificar isso.

  • G |Há na mostra registros das comunidades negras do Harlem, em Nova York, e de integrantes do Panteras Negras. Esses eram temas que ele trazia com frequência no trabalho?

    ZDB |

    O Martin Luther King tinha sido assassinado nessa época [em 1968]. George tem um texto sobre a mãe dele, “A portrait of Rose”, em que ele lembra da mão carinhosa dela quando ele era pequenininho enquanto pergunta “eu quero tomar sorvete, por que não podemos?”; e ela “isso aí não é coisa pra nós”. Ele passou sua juventude bem próximo aos epicentros segregacionistas, mas em toda sua trajetória quase não tocou no tema. Uma rara oportunidade em que George se referiu à questão racial foi no ensaio fotográfico “Uma Raga para o Crepúsculo”, da revista Íris, de 1979, em que escreve: “A agressão é real. O ato da morte paira permanentemente no ar”.

A exposição “George Love: além do tempo” vai até 1 de setembro de 2024 no Museu de Arte Moderna de São Paulo (Mam). Av. Pedro Álvares Cabral, s/n°, Parque do Ibirapuera

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