Como as imagens de uma guerra podem influenciar a opinião pública — Gama Revista
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Repertório

Ver a dor dos outros

Nunca antes uma guerra foi tão documentada quanto a invasão da Ucrânia pela Rússia. Como acompanhar o sofrimento de civis pode influenciar a opinião pública e colaborar para a resolução desse conflito  

Luara Calvi Anic 13 de Março de 2022
new york times capa guerra

Ver a dor dos outros

Nunca antes uma guerra foi tão documentada quanto a invasão da Ucrânia pela Rússia. Como acompanhar o sofrimento de civis pode influenciar a opinião pública e colaborar para a resolução desse conflito  

Luara Calvi Anic 13 de Março de 2022

A fotografia mais emblemática até agora da invasão Russa na Ucrânia parece ter sido aquela em que uma mãe e seus dois filhos aparecem mortos no asfalto, vestidos com roupas de inverno e acompanhados de suas malas. Eles seguiam um corredor humanitário quando foram surpreendidos por um ataque de morteiros que lhes custou a vida.

A fotógrafa americana Lynsay Addario não imaginava que faria essa foto naquele dia. Mais cedo ela inclusive comentou com a irmã, por telefone, que não estava conseguindo capturar imagens suficientemente representativas dos civis porque ela e outros fotojornalistas se mantinham em Kiev, área mais protegida da guerra até então.

E foi justamente pensando que estaria a salvo ao acompanhar a fuga dessas pessoas que ela foi surpreendida com o fato trágico que renderia a imagem de capa do The New York Times no dia seguinte (7/3, reprodução no topo desta matéria) e de tantos outros jornais do mundo. A imagem denunciou a morte de uma família e também o que pode ser considerado um crime de guerra: o ataque a civis que evacuavam a região.

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Os especialistas em imagem ouvidos por Gama citam essa foto como exemplo de uma cena marcante desse conflito. Na internet, ela também se manteve relevante ao longo da semana. “Chama a atenção o fato dessa ser a primeira grande guerra que está acontecendo nas mídias sociais. As redes são na verdade mídias de imagem. O Instagram é uma fotografia conectada”, diz o professor e pesquisador da Escola de Comunicações e Artes da Usp (Eca-Usp) Wagner Souza e Silva. “Estamos tendo a possibilidade de imaginar com mais precisão os detalhes do que acontece numa guerra.”

Um soldado se despede de seu filho enquanto sua família foge do avanço das tropas russas. Ucrânia, em 8 de março de 2022.  REUTERS/Thomas Peter

Diante da quantidade inédita de material produzido por fotógrafos, civis e soldados, temos hoje um nível de intimidade com esse fato nunca antes experimentado, como afirma Silva. Conseguimos assistir a maneira como famílias inteiras se escondem dentro de estações de metrô. Vemos despedidas de toda sorte, mísseis chegando, o desespero de inocentes em imagens nítidas e coloridas. “A imagem de guerra tem essa chave da emoção que desperta uma curiosidade e talvez um desejo de querer ver mais”, diz a Gama o jornalista e pesquisador Leão Serva, autor de “A Fórmula da Emoção na Fotografia de Guerra” (2020, Edições Sesc SP), em que investiga como certos modelos de gestualidade e expressões humanas que aparecem nas fotos podem nos tocar.

Para ele, a função de uma imagem produzida na guerra é reportar o que ali acontece mas principalmente causar algum tipo de impacto em quem vê. “A função principal é provocar rapidamente emoções impactantes que tragam o interesse do espectador”, diz Serva, que foi correspondente de guerra da Folha de S.Paulo, onde cobriu conflitos em países como Angola, Somália e ex-Iugoslávia.

A imagem de guerra tem essa chave da emoção que desperta uma curiosidade e talvez um desejo de querer ver mais

O objetivo é emocionar, mas também causar algum tipo de mobilização. “O fotógrafo sabe da importância daquela imagem para mobilizar a opinião das pessoas. Embora os meios de intervenção estejam nas mãos de poucos, os que controlam são levados pela opinião pública. Essa imagem da família morta certamente foi decisiva para a Rússia ficar atenta aos corredores humanitários”, acredita o professor da Eca Wagner Souza e Silva. Após a divulgação da foto, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, prometeu vingança contra as forças russas. “Encontraremos todos os bastardos”, disse.

A surpresa ao assistir a uma guerra desse porte e com imagens chocantes em solo europeu, algo que não acontece há quase 8 décadas, também acabou suscitando nas últimas semanas comentários que foram considerados racistas e eurocêntricos por especialistas e usuários das redes sociais. “Isto revela a mentalidade eurocentrista para quem a tragédia das áreas periféricas é apenas uma notícia banal”, diz Boris Kossoy, pesquisador e professor livre-docente e titular da Eca-Usp, autor de livros como “Fotografia e História” (Ateliê Editorial, 1988).

Outros jeitos de cobrir uma guerra

Nessa guerra do século 21, estão no front registrando os conflitos não apenas fotojornalistas, mas também civis. “Essa fotografia feita por civis é a fotografia dos nossos tempos, estão registrando com seus celulares o que vão encontrando na frente, num looping infinito. Possibilidade impensável há três décadas”, diz Kossoy. “Embora as imagens de profissionais tenham um diferencial estético, dramático, um conhecimento de corte e a preocupação com uma luz adequada, numa dada medida você não é capaz de saber se aquela imagem é de um civil que tem uma câmera ou de um profissional, que cobre a guerra para um veículo de imprensa.”

Civis em uma travessia improvisada de um rio abaixo de uma ponte destruída enquanto fogem do avanço das tropas russas cujo ataque à Ucrânia continua na cidade de Irpin, nos arredores de Kiev, Ucrânia, em 8 de março de 2022.  REUTERS/Thomas Peter

Essa enorme quantidade de material que circula pelas redes torna também mais fácil a proliferação de informações falsas. Entre as que viralizaram está um vídeo que mostra um piloto ucraniano derrubando um caça russo – o que, na verdade, é a cena de um videogame. “As fake news são também sobre velocidade. Até você provar que é fake, já tem mil imagens sendo discutidas”, diz a Gama o documentarista e antropólogo visual romeno Mihai Leaha, que em 2013 lançou “Valley of Sighs”, um documentário sobre ciganos deportados para a Ucrânia. “A gente está vivendo uma crise de confiança, você vai acreditar em quê? É preciso buscar fontes confiáveis e desconfiar de todas as coisas que estão se espalhando. Quem é o fotógrafo que você está acompanhando? Para onde ele trabalha? É preciso pesquisar.”

Hoje é possível entrar no instagram e acompanhar os profissionais que estão cobrindo determinada guerra. Os comentários nas fotos publicadas por grandes nomes da fotografia são cheios de agradecimento. Em diferentes línguas, seguidores dizem obrigado aos que botam suas vidas também em risco. “Meu foco é nos civis, contar a história das pessoas que estão sendo impactadas nessa guerra”, diz a Gama o jornalista e fotógrafo brasileiro Yan Boechat, que hoje cobre a guerra como freelancer para veículos como Band e O Globo. Ele já registrou conflitos em lugares como Gaza, Etiópia e Sudão. “Os agredidos em geral não se importam em ser fotografados porque eles entendem que é preciso chamar a atenção do mundo. As pessoas querem mostrar ao mundo a sua história, elas não se sentem agredidas de serem fotografadas.”

Boechat traz um velho dilema ético, que foi discutido por diferentes pensadores da imagem, entre eles a americana Susan Sontag (1933-2004), com o clássico ensaio “Diante da Dor dos Outros” (2003), em que ela reflete sobre o efeito das imagens de sofrimento em nossas vidas. Em dado momento do livro, a autora é taxativa ao dizer que sim, “as vítimas têm interesse na representação de seus sofrimentos”.

“São os simbolos que dão uma narrativa na imagem. É simbólico a pessoa deitada, a bandeira, o fuzil”, diz Boris Kossoy. Na foto, um membro da Guarda de Honra ao lado de um caixão com um corpo de um membro das Forças Armadas Ucranianas, que foi morto durante a invasão da Ucrânia pela Rússia, durante uma cerimônia fúnebre em Kiev, Ucrânia, em 8 de março de 2022.  REUTERS/Valentyn Ogirenko

Uma reportagem no New York Times, posterior a publicação da imagem feita por Addario, entrevistou o pai da família morta em Kiev e perguntou o que ele achava de ter sua família retratada. Segundo o jornal, ele disse que achava importante que suas mortes tenham sido registradas em fotografias e vídeos. “O mundo inteiro deveria saber o que está acontecendo aqui.”

Independentemente da carga emocional que as fotos carregam, no front certamente não há uma escolha calculada de quão tocante pode ser uma imagem, afinal a guerra em si já basta como tragédia. “As coisas são tão dinâmicas e tão difíceis que eu tento mostrar o que está acontecendo, não tenho uma questão muito filosófica ou ideologia. Eu busco mostrar que há um conflito neste momento sem fazer um tipo de julgamento, ou adotar um lado”, diz Boechat. “A verdade é que uma única imagem icônica não conta a história, mas sim o trabalho de vários profissionais.”

A fotografia chega para tentar aproximar a guerra de quem vê seus horrores, como bem pontuou Sontag em seu livro: “Nós não percebemos. Não podemos, na verdade, imaginar como é isso. Não podemos imaginar como é pavorosa, como é aterradora a guerra; e como ela se torna normal”.