Este mundo precisa de mais poesia — Gama Revista

Este mundo precisa de mais poesia

Clube de assinaturas Círculo de Poemas quer popularizar a leitura de poesias e transformar sua publicação em negócio autossustentável

Leonardo Neiva 13 de Setembro de 2022

“Foi poeta sonhou e amou na vida.” O verso integra o texto “A Morte do Poeta” e chegou às mãos dos leitores brasileiros em janeiro de 2022, depois de mais de 80 anos de esquecimento da obra de sua autora, a modernista Julieta Barbara (1908-2005). Nessas circunstâncias, o título desses versos, que fazem parte do livro “Dia Garimpo” (Círculo de Poemas, 2022), pode soar um tanto irônico. Foi justamente a obra que deu pontapé inicial no clube de assinatura Círculo de Poemas, que tem como uma das principais metas fazer com que, senão os poetas, ao menos a poesia siga com o coração batendo por muito tempo. A iniciativa, feita numa parceria entre as editoras Fósforo e Luna Parque — esta especializada em textos poéticos –, foi lançada com o projeto, ambicioso principalmente no Brasil, de se pagar publicando versos uma vez por mês.

MAIS SOBRE O ASSUNTO
Dia Garimpo
Qual o seu livro da vida?
Sérgio Vaz: “A Cooperifa é quando a poesia desce do pedestal e beija os pés da comunidade”

A fundadora e diretora editorial da Fósforo, Rita Mattar, conta que o projeto nasceu em 2021, quando Marília Garcia, fundadora da Luna Parque, mencionou como editoras europeias usavam clubes de assinatura para garantir um retorno financeiro a seus lançamentos de poesia, geralmente mais difíceis de sair das prateleiras. “No fundo, é disso que se trata”, afirma Mattar. “Garantir uma venda mínima por mês para diminuir um pouco do desafio que é vender livros de poesia só na livraria. Senão, a conta não fecha.”

A ideia é que o poema seja um lugar de reflexão sobre o agora, a história, as autorias e subjetividades

A ideia era recriar o espírito do Círculo do Livro, clube literário de assinatura que foi sucesso no Brasil entre as décadas de 1970 e 1990 — só que desta vez numa versão exclusivamente poética. Seguindo uma tendência dos clubes atuais, porém, era preciso também ter um brinde exclusivo para acompanhar cada caixinha. “Mas a gente não queria fazer um brinde que a pessoa ia jogar de lado, um plástico ou alguma coisa assim.” A solução foi dobrar a dose: duas publicações numa só. Ou seja, além do livro de poemas, todo mês também vem uma plaquete — livreto com um poema encomendado a um poeta brasileiro especialmente para o assinante. E, se o livro chega às livrarias no mês seguinte, a plaquete fica só para quem faz parte do clube.

A cada ano, essa publicação terá um formato e proposta diferentes. No atual, o poeta convidado precisa escolher uma obra de arte visual anterior ao século 20 para inspirar seu texto. Em uma delas, por exemplo, o brasileiro Marcelo Ariel evoca um quadro holandês retratando a peste para poetizar sobre luto e pandemia. “A ideia é que o poema seja um lugar de reflexão sobre o agora, a história, as autorias e subjetividades”, resume Leonardo Gandolfi, outro dos fundadores da Luna Parque.

Uma biblioteca básica e variada

A lista de autores, que inclui uma poeta pouco lembrada do modernismo, uma artista plástica contemporânea que publica poesia pela primeira vez e até Godard falando de cinema certamente coloca a multiplicidade de vozes entre suas principais características. Boa parte dessa curadoria, por enquanto focada em obras dos séculos 20 e 21, fica a cargo de Leonardo Gandolfi e Marília Garcia, casal à frente da editora independente Luna Parque.

A conversa inicial e o convite para entrar no projeto vieram depois que Marília, que é tradutora, passou para o português os intensos relatos pessoais que compõem a obra da escritora francesa Annie Ernaux, como “O Lugar” (Fósforo, 2021) e “Os Anos” (Fósforo, 2021). O casal já vinha inclusive desenvolvendo um trabalho de reedição de livros antigos que não foram republicados ou que saíram totalmente de circulação. Não à toa, o Círculo de Poemas começou com uma obra típica do modernismo brasileiro, mas que pouquíssima gente conhecia: o “Dia Garimpo”. “Na época, a autora era casada com Oswald de Andrade. O livro saiu, teve poucas leituras e nunca mais se ouviu falar. Apesar de ser de 1929, ele tem uma ligação forte com o modernismo de 1922”, explica Gandolfi. Pesou também na escolha o fato de ser um livro escrito por uma mulher, o que permite levantar discussões sobre o apagamento feminino na história da literatura.

Ainda existe uma visão muito antiga sobre o que é poesia, uma expectativa de um tema que tenha relação com sentimentos, com rima e métrica, o que não condiz com a poesia contemporânea

A ideia, além desse garimpo num passado praticamente esquecido, diz o editor, é publicar livros inéditos de autores contemporâneos, traduções de poetas estrangeiros e também escritores de língua portuguesa não brasileiros. Este último é o caso do livro de junho, “Ondula, Savana Branca” (Círculo de Poemas, 2022), obra de 1981 de Ruy Duarte de Carvalho (1941-2010) que transcreve manifestações orais e rituais africanas em forma de poemas. Trata-se de um clássico dentro da literatura angolana, mas nunca antes publicado por aqui.

A ousadia de publicar um livro como o “História(s) do Cinema” (Círculo de Poemas, 2022), de Jean-Luc Godard, numa coleção poética — a obra, afinal, nunca tinha sido visto dessa forma — revela uma prática que está no DNA do projeto desde a sua concepção: desafiar aquilo que os leitores esperam da poesia. “Tem um crítico francês que diz que não tem nada mais poético do que quando algo que a gente não espera se transforma em poesia”, exemplifica Gandolfi. Outro exemplo é o livro de maio, “A Água É uma Máquina do Tempo” (Círculo de Poemas, 2022), obra de estreia na poesia da artista visual carioca Aline Motta. Ela foi selecionada para o projeto por seu trabalho, que mescla pesquisa genealógica sobre as origens da própria família com a produção de obras, instalações e videoarte, sempre numa relação muito forte com o texto escrito.

Mesmo com essas misturas nem sempre intuitivas, a meta do clube é montar uma biblioteca básica que sirva tanto para quem já lê poesia quanto para quem tem vontade de começar, mas não sabe exatamente por onde. “Se pensar num público que não costuma ler poesia, a gente oferece curadoria, uma escolha a partir de alguns critérios”, afirma Gandolfi. “Tem sim esse caráter de atingir os leitores, mas também tentar ir além. É como uma amostra múltipla.”

Desbravando novos caminhos

Além de abrir as portas para muitos leitores ainda perdidos nesse mundo de estrofes e versos, o modelo de assinatura oferece oportunidade para autores estreantes ou menos conhecidos do público geral de ser lidos e discutidos de forma mais ampla — o livro do mês costuma ser tema constante de discussão em perfis literários nas redes sociais. A poeta paulista Ana Estaregui publicou seu terceiro livro, “Dança para Cavalos” (Círculo de Poemas, 2022), em março pelo clube. Segundo ela, que diz estar satisfeita com os resultados até aqui, dá para acompanhar de forma muito mais próxima a repercussão da obra pelas redes sociais. Por ter esse caráter variado mas também conjunto, ela considera que os livros mensais acabam ganhando uma força coletiva que fortalece as obras.

“Ainda existe uma visão muito antiga sobre o que é poesia, uma expectativa de um tema que tenha relação com sentimentos, com rima e métrica, o que não condiz com a poesia contemporânea. O clube acaba sendo uma chave para quem quer entender o que está sendo feito hoje”, diz Estaregui, que também é assinante. Foi através do clube que ela conheceu a obra de Julieta Barbara e também de um autor contemporâneo como Floresta, poeta e tradutor paulistano cujo livro “Rio Pequeno” (Círculo de Poemas, 2022) foi enviado em julho. A autora sente que hoje, assim como no seu caso, a maior parte dos leitores de poesia no Brasil são aqueles que também escrevem, um público que acaba se retroalimentando.

Também aguardam no futuro da coleção alguns nomes ilustres e premiados da poesia. Em agosto, saiu o “Poema de Amor Pós-Colonial”, vencedor do Pulitzer 2021 escrito pela autora mojave norte-americana Natalie Diaz. Já em outubro, o Círculo reedita um livro do poeta e letrista Torquato Neto, identificado com a Tropicália, e que teve uma circulação bastante restrita no início da década passada. Para 2023, a equipe também está trabalhando numa tradução do “Paterson”, livro do célebre escritor estadunidense William Carlos Williams — talvez mais conhecido por aqui pelo filme de 2016 dirigido por Jim Jarmusch.

“Estamos muito felizes, orgulhosos e super confiantes com os resultados”, conta Rita Mattar, da Fósforo. Nesses primeiros sete meses, o clube alcançou 25% da meta total de assinantes, calculada para que o projeto se torne autossuficiente. Daqui para a frente, diz a editora, o caminho deve ser sempre para cima, de crescimento constante. “É muito desafiador, a gente nunca achou que ia ser fácil. Nossa ideia nem é ganhar dinheiro, mas pagar a conta. Se crescermos ainda mais do que o esperado, aí até teremos algum lucro, mas o objetivo nunca foi esse.”

Para assinar: entre no site da Círculo de Poemas para mais informações. Há o modelo mensal, semestral e anual.

Quer mais dicas como essas no seu email?

Inscreva-se nas nossas newsletters

  • Todas as newsletters
  • Semana
  • A mais lida
  • Nossas escolhas
  • Achamos que vale
  • Life hacks
  • Obrigada pelo interesse!

    Encaminhamos um e-mail de confirmação