Coluna da Maria Homem: Democracia cansa? — Gama Revista
COLUNA

Maria Homem

Democracia cansa?

O jogo democrático está em crise. Voltamos ao modelo do Pai Superpoderoso ao qual delegamos e obedecemos?

08 de Novembro de 2024

Somos uma espécie curiosa: individualmente frágil, mas coletivamente quase indestrutível (e destrutiva também). Por isso, as formas de auto-organização que praticamos são muito importantes.

Depois de milênios de crença na eficácia de uma lógica hierárquica com líderes do tipo “mais forte”, nos últimos séculos estávamos tentando desenvolver um novo sistema, mais participativo. A premissa mental básica era a seguinte: somos adultos e temos (todos) a capacidade de pensar sobre a realidade e seus desafios. Depois de uma boa discussão – organizada e honesta – esses seres racionais iriam chegar às ações mais adequadas para encaminhar os problemas que a vida impõe. Resumindo: realidade (sempre problemática) > debate racional > soluções. Parece um workflow razoável, certo?

E assim seguimos, caminhando e cantando a bela canção democrática.

Até que foi ficando difícil. Quais os bons acordos para fazer uns 100 milhões de pessoas se ajustarem? Uns 8 bilhões que respiram o mesmo ar e compartilham o mesmo sistema de água? Muito difícil. Nem precisamos ir tão longe: os combinados básicos no interior de um casal podem implicar DRs infinitas, além do desafio das reuniões de condomínio, esse parlamento cotidiano.

Os problemas reais — problemas são sempre reais, sejam concretos, sejam psíquicos —
exigem um não tão óbvio processo mental para começar a esboçar alguma solução. Voltando ao workflow: primeiro o desejo de encarar a realidade e minimamente se colocar de acordo quanto a ela. Depois, a postura mínima para conversar sobre o que vemos, sentimos, propomos. Depois a construção de uma série de consensos sobre o que fazer, e como, e quem faz, e quem paga e por quanto tempo e por aí vai.

E o que a grande eleição norte-americana nos ensinou? E as nossas eleições municipais? E as mais recentes no planeta?

A primeira coisa é que todo esse jogo democrático está em crise. As pessoas estão achando “muito chato tudo isso” e não estão mais obedientes, querendo jogar. Ou sequer ter que pensar em política, instituições, representações… Não gosto de ninguém, não confio em ninguém, não quero votar. Aliás, não acredito mais em toda essa palhaçada. Vamos explodir o sistema. Chega.

Está se esvaindo a vontade de permanecer na realidade e pensar sobre ela, o que contribui para o problema

Está se esvaindo a vontade de permanecer na realidade e pensar sobre ela, o que contribui para o problema. E esse sentimento é tão profundo que Trump disse em julho para um grupo de cristãos —que classicamente não gostam muito de sair para votar e se imiscuir nessas picuinhas da vida terrena — que era pra fazer um esforcinho só dessa vez. “Vota agora em 2024, que vou consertar esse país que está imerso no mal e aí você não vai precisar votar nunca mais. Deixa comigo que resolvo tudo. Eu sou o enviado de Deus.” E muita gente acredita.

Imagina se não é gostoso acreditar que existe sim uma espécie de deus salvador —ou ao menos resolvedor. O slogan da campanha era o surpreendente “Trump will fix it”. Eu conserto tudo.

Maravilha. Quero sim alguém que me tire o peso de ser adulto e responsável e trabalhador da democracia. Eu resolvo tudo por você e ainda trago de volta tudo o que você devia ter mas não tem. MAGA. Make America great again.

“Aliás, pode deixar que vou expulsar daqui do nosso paraíso todos aqueles que estão tirando de você justamente tudo o que você deseja e merece. Eles estão roubando o que é seu. Eles estão devorando seu emprego, seu gato, seu cachorro, sua saúde, sua vontade de viver. Pode deixar comigo. O Superpapai aqui resolve.”

Acabou o breve ensaio histórico dos irmãos adultos da democracia e voltamos ao modelo do Pai Superpoderoso ao qual delegamos e obedecemos?

A realidade hoje parece sombria. Cada vez mais guerra, mais pobreza, mais inflação. E menos clima, menos conhecimento e menos emprego

Voltamos assumidamente ao Big Father, ao Big Brother. Quando o outro é Big, eu sou pequeno. Que alívio. Sou conduzido, sou bebê, sou infante. O Grande Outro — que justamente é o que a gente quereria limitar no final de uma longa, corajosa, sofrida psicanálise — agora volta com tudo.

Eu me jogo nos teus braços, Ó Enviado. Contra todas as evidências de que tudo isso não funciona, que é uma triste farsa, eu dobro a aposta e truco: faço um malabarismo mental e continuo crendo em Ti, Ó Deus todo poderoso, líder supremo e bilionário. Se você conseguiu acumular tanto dinheiro, você só pode ser o deus moderno, o novo Olimpo que não quer largar o meu imaginário.

Por favor, me ajude a acreditar em um Futuro. Um lugar qualquer, mesmo que de mentirinha, em que eu possa me sentir grande de novo. Em que eu possa sonhar grande. Dream Big Again, essas palavras que brilhavam em letras garrafais na festa da comemoração.

A realidade hoje parece sombria, problemática ao extremo. Cada vez mais guerra, mais pobreza, mais inflação. E menos clima, menos conhecimento e menos emprego. Ainda mais para mim que sou mediano e estou na iminência de perder o novo bonde tecnológico humano que está criando a nova casta dos reis poderosos, os cada vez menos discretos tiranos acima da lei.

Nasce pleno o novo modelo na política. Vai lá Papai Grande, Bravo e mesmo Escroto. Vai lá e bota o pau na mesa por mim, por todos nós os coitados, ofendidos e humilhados. Vai lá e mostra para eles como é que se mente, rouba, engana, mata e manda matar. Vai lá e faz tudo o que está cada vez mais difícil de fazer: sonhar e crescer.

Me devolve minha vida. Estou desesperado.

Agora me diz, com toda a sinceridade: como não cair na tentação de acreditar em toda essa baboseira maravilhosa?

Maria Homem é psicanalista, pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP e professora da FAAP. Possui pós-graduação em Psicanálise e Estética pela Universidade de Paris VIII / Collège International de Philosophie e Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Foi professora visitante na Harvard University e palestrante no MIT, Universidade de Boston e de Columbia. É autora de “Lupa da Alma” (Todavia, 2020), “Coisa de Menina?” (Papirus, 2019) e coautora de "No Limiar do Silêncio e da Letra" (Boitempo Editorial, 2015), entre outros.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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