Maria Homem
Aos amores perdidos
A sorte do encontro, a coragem de sustentar e a dor da perda depois do grande recebimento
Você pode chorar por aquele garoto que aos 15 anos tentou te seduzir numa festa da forma mais desajeitada possível, dizendo que você era tão irrelevante como um limpador de rodapé de piscina. Ou outra estupidez qualquer. Você foi embora e deixou ele falando sozinho o seu papo de 3º ano primário. Talvez ele já tivesse 23 anos. Você chora por ele ser tão bonito e inteligente e ao mesmo tempo tão tonto. Ou talvez chore por ter ido embora e uma parte de você se pergunta até hoje se deveria ter ficado e insistido na velha pedagogia que as mulheres praticam se fingindo de mais bobas que os homens enquanto eles crescem e vão criando o hábito de serem homens.
Você pode lamentar o fato de ter perdido a chance do encontro quando o homem que te interessava, com a idade certa no momento certo, te convidou para jantar e você disse que não podia aquele dia. Porque não podia mesmo ou porque achou que deveria valorizar o passe e não ser tão disponível, tanto faz. O caso é que você até tentou se disponibilizar outras vezes mas ele nunca mais ousou repetir o convite, com medo de receber o que ele interpretou como um estridente não. E era um sim.
Você pode sofrer ou quebrar a sua cabeça (quase sempre sinônimos) tentando entender um ex-pretendente que casou e teve filhos e por algum motivo não estava feliz e te procurou 20 anos depois para dizer isso, que não estava feliz. Mas ele não queria nada mais do que isso: ficar falando com você enquanto ficava casado e com filhos. Provavelmente falava com você, habitante de um lugar mágico e clandestino, para que ele continuasse no mesmo lugar em paz: casado, com filhos e infeliz.
Elas são ensinadas a amar e a aceitar que o amor dói; e são ensinadas a suportar essa dor
Essa história é muito comum. Acontece com velho amigo da escola ou do trabalho, com alguém que você conheceu na festa de ontem ou qualquer um que quer e não quer ser seu amante ao mesmo tempo. Pode ser alguém por quem você se apaixonou e, pasme, também se apaixonou por você mas que se apaixonou por você para ajudá-lo a ter certeza da importância do pacto simbólico que ele mantém em seus laços institucionais – observados por todos os olhos daqueles que lhes são caros na vida ‘em sociedade’. Se ele ‘decepcionasse’ esses outros, seu valor narcísico cairia e assim é você quem vai cair nessa bolsa de valores afetivos. Você finalmente entende as engrenagens e chora mais uma vez. Ele também, talvez. Escutando uma música bem bonita.
Outra história comum, mas talvez nem tanto, e que te aconteceu também é a do cara cuja mulher está grávida e começa a ter uma vontade irresistível de sair cortejando inúmeras mulheres. Ou mesmo uma em particular. Quanto mais cresce a barriga daquela (sua) mulher-mãe, mais ele tem tesão em se fazer homem diante de uma fêmea, outra. Você é essa outra, no caso. Chora por isso também quando recebe a foto do fofo bebê, que entrou na história só agora e não tinha nada com isso. Aliás, ele tem tudo a ver com esse pai e vai descobrir isso a duras penas em sua análise futura, quiçá, um dia.
Todas essas são histórias de amores perdidos. Amores mais imaginários que reais. Amores abortados.
Na coluna deste mês eu gostaria de homenagear todas as mulheres – que sofrem todos os tipos de dor de amor. Elas são ensinadas a amar e a aceitar que o amor dói; e são ensinadas a suportar essa dor. No mínimo três camadas de culto ao amor e ao sofrimento.
E queria também homenagear todos os amores reais que foram perdidos. Todos aqueles encontros em que Kayrós foi agarrado em seu instante preciso e o Sim pode se fazer. O Sim é o descuido do Não. O descompasso cedeu e você parou de bater a cabeça na parede, ou na trave. Todos os vetores estavam lá, prontos e maturados. E a coisa se fez, linda sharp potente, de vento em popa.
Você dessa vez chorou a dor da perda, mas a dor mais crua, que é a da perda depois do grande recebimento
Se fez o tempo que foi possível. Até que cessou. E você perdeu de novo. Você dessa vez chorou a dor da perda, mas a dor mais crua, que é a da perda depois do grande recebimento. Aí é o encontro com o trágico. O real.
Que talvez não tenha poção ou mertiolate ou elaboração que cure totalmente. É uma cicatriz com a borda que de repente está em carne viva e não tem meios de parar de te encher a paciência. Fica ali, latejando.
Mas de vez em quando dá para esquecer. Quando por exemplo você se depara com uma supresa boa, o amor do filho ou uma obra que te seduz. Como o papel fotográfico que fez um desenho capturando a luz dos vagalumes. Como as linhas orgânicas e únicas a cada vez que a inteligência artificial conseguia mimetizar as ondas do mar em movimento. Como o jardim abstrato das flores que cada um de nós desenhava e a máquina misturava infinitamente. Isso tudo está em alguns andares de um farol cultural que fica não à beira mar mas no centro da selva de pedra paulistana. Farol de luz e algum sublime.
Nessa hora você até pode chorar um pouco escondido. Mas logo vai esquecer e se maravilhar com o fato de que você pode até estar cansada mas a vida é incansável.
Que haja a sorte do encontro, a coragem de sustentar o desejo e a graça de não definhar com a perda.
Maria Homem é psicanalista, pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP e professora da FAAP. Possui pós-graduação em Psicanálise e Estética pela Universidade de Paris VIII / Collège International de Philosophie e Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Foi professora visitante na Harvard University e palestrante no MIT, Universidade de Boston e de Columbia. É autora de “Lupa da Alma” (Todavia, 2020), “Coisa de Menina?” (Papirus, 2019) e coautora de "No Limiar do Silêncio e da Letra" (Boitempo Editorial, 2015), entre outros.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.