Isabelle Moreira Lima
Nas piores condições, o melhor da humanidade
O chef espanhol José Andrés montou uma cozinha especializada em atender vítimas de desastres naturais e conflitos. No Brasil, iniciativas semelhantes também chamam atenção
“Nas piores condições que você puder imaginar — depois de furacões, terremotos, bombas e tiros —, o melhor da humanidade aparece. Não uma ou duas vezes, mas sempre.”
As palavras acima são do chef espanhol José Andrés. Foi assim que ele começou o artigo “Deixe as pessoas comerem”, que publicou no começo de abril no jornal norte-americano The New York Times, dois dias depois que sete integrantes da World Central Kitchen, organização que ele criou e pela qual trabalha até hoje, foram mortos em Gaza. Com a atual tragédia climática no Sul do Brasil, é impossível não pensar nas palavras de Andrés e no trabalho que sua organização e outras com o mesmo espírito fazem em locais e momentos de tragédia.
O World Central Kitchen nasceu depois do terremoto que assolou o Haiti em 2010. José Andrés estava em um festival de gastronomia nas ilhas Cayman com o escritor e apresentador de TV Anthony Bourdain e Eric Ripert, chef e coproprietário do Le Bernardin, restaurantes estrelado de Nova York. “Eu estava bebendo margaritas e piñas coladas na praia com os amigos. Mas o Haiti não era longe, eu estava ali do lado. Comecei a sentir essa necessidade ardente de ajudar”, contou ao podcast WTF do comediante Marc Maron.
Chegar no meio da destruição ofereceu desafios a mais, mas ele já tinha experiência em trabalhar com pessoas em estado desolador e atender algumas de suas necessidades
Andrés voltou para Washington DC, onde vivia, avisou ao sócio que sumiria por uns dias e saiu rumo ao país. Nascido na Espanha, filho de pais enfermeiros, ele havia se mudado pros Estados Unidos aos 21 anos e logo depois de se firmar como cozinheiro, passou a trabalhar como voluntário na DC Central Kitchen, que atendia pessoas em situação de rua e com fome na capital norte-americana. Alimentava essas pessoas e ensinava o ofício de cozinheiro, dando uma profissão a muitos deles, que conseguiram mudar de vida. Claro que chegar no meio da destruição ofereceu desafios a mais, mas ele já tinha certa expertise em trabalhar com pessoas em estado desolador e atender algumas de suas necessidades. A parte da comida era a mais fácil.
“Eu aprendi a fazer fogo com meu pai na floresta no meio do ano. Como um cozinheiro profissional, você sempre dá um jeito de acender o fogo, até no meio do nada, de reunir os ingredientes e de entregar a comida. No final das contas, o que a gente faz de mais importante [em lugares onde há catástrofe ou conflito] não é nem cozinhar, mas distribuir”, ele conta no podcast. “Se não há infraestrutura, estradas, energia, combustível, nós conseguimos criar uma infraestrutura emergencial para entregar a comida a quem está com fome”, explica.
Ao voltar do Haiti depois de ajudar quem precisava, interagir com as pessoas em seus momentos mais difíceis e aprender com eles — o chef conta que foi assim que enfim passou a cozinhar feijões pretos à maneira haitiana —, Andrés entendeu que podia repetir e adaptar a receita do que acabara de fazer. Assim nascia a World Central Kitchen, organização sem fins lucrativos e não-governamental que já alimentou vítimas de desastres e guerras em diferentes partes do mundo, da Turquia à Ucrânia, do Brasil (nas enchentes de 2022 nos estados do Rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia) à Síria.
Com o agravamento da crise climática, eles esperam ter ainda mais trabalho nos próximos tempos. Em 2021, lançaram um fundo que tem como objetivo arrecadar US$ 1 bilhão a serem usados para responder rapidamente a crises causadas por enchentes, incêndios ou qualquer outro desastre natural. Em 2022, primeiro ano de fundo, atenderam vítimas de 30 eventos extremos climáticos, incluindo diferentes estados brasileiros. É possível tornar-se um apoiador mensal aqui.
Na área dos conflitos, em Gaza, há uma semana, um mês depois que o bombardeio atingiu os sete heróis — como Andrés os chama — da WCK, já foram servidos 2 milhões de refeições por suas equipes. A expectativa, segundo texto publicado no site da entidade, é que consigam levar muito mais enquanto for necessário. Em janeiro, membros do partido democrata assinaram uma carta de recomendação do nome do chef espanhol para o Nobel da Paz de 2024. “Comida é um direito humano universal. Não é uma condição para se você é bom ou mal, rico ou pobre, de direita ou de esquerda”, escreveu Andrés no artigo do NYT.
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No Brasil, também vemos o melhor da humanidade nos piores momentos. No ano passado, durante as chuvas incessantes no litoral norte paulista, o chef Eudes Assis mobilizou cozinheiros, conseguiu doações e administrou uma cozinha para alimentar os desabrigados pelas enchentes. Em menos de 24 horas, contou no seu Instagram o que estava acontecendo, reuniu 200 voluntários na cozinha do projeto social Buscapé, e montou uma vaquinha online com uma meta alta (R$ 1 milhão que virou R$ 1,5 milhão) de contribuições para a reconstrução das áreas e estruturas comuns da comunidade. Com vídeos diários, ele mostrava o trabalho, os “anjos” que o cercavam (como chamava os voluntários), e pedia mais ajuda. “Eu sei na pele o que é não ter comida, o que é ter casa invadida pela água”, contou a Gama nesta entrevista.
Durante a pandemia, o projeto Quebrada Alimentada, da historiadora Adriana Salay, estudiosa da fome do país, com o chef Rodrigo Oliveira, do Mocotó, alimentou a comunidade da Vila Medeiros, na zona norte de São Paulo, durante os 20 meses mais difíceis do isolamento. Pela iniciativa, receberam o prêmio Macallan Icon Award for Latin America promovido pela instituição que elege os melhores restaurantes do mundo, o 50 Best Restaurants. “Nosso lema é que a gente compartilha o que tem e não o que sobra”, contou Salay em entrevista a Luara Calvi Anic.
A mobilização no Rio Grande do Sul está apenas em fase inicial, mas a campanha nas redes sociais por doações começou. A Cozinha Solidária da Azenha, do MTST-RS, é um dos lugares mais citados pelos profissionais da gastronomia que se pronunciaram e pediram doações. Por enquanto, água é o que mais se precisa. Informações sobre doações estão neste post no perfil da Gama no Instagram.
Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador
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